Bloomberg Línea — O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou na quarta-feira (05) dois decretos que promovem mudanças na regulamentação do marco legal do saneamento, que prevê a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033. Em um sinal claro de apoio às estatais do setor - e, portanto, em contraponto ao investimento privado -, Lula e seus ministros reforçaram a importância das empresas estaduais de saneamento, que enfrentam a concorrência, ainda que gradual, de operadoras privadas.
De acordo com as novas regras que entraram em vigor sem discussão com parlamentares ou aprovação pelo Congresso eleito, 1.113 municípios que estavam com contratos irregulares terão mais tempo para comprovar capacidade econômico-financeira para atingir a universalização dos serviços de água e esgoto e, assim, garantir recursos federais para alcançar as metas.
Anteriormente, o prazo para comprovação encerrava em 31 de dezembro de 2021, agora foi prorrogado para o final de 2023. As agências reguladoras terão até 31 de março de 2024 para avaliar os documentos submetidos.
Há, ainda, a flexibilização dos critérios para comprovação, permitindo que o prestador apresente um plano de metas, no prazo máximo de cinco anos, dos referenciais mínimos adotados. Também haverá prorrogação do prazo para regionalização, antes previsto para 31 de março de 2023. Agora, os municípios terão até o final de 2025 para aderir a mecanismos de regionalização.
Outra mudança prevê o fim do limite de 25% para a realização de Parcerias Público-Privadas (PPPs) pelos estados. Com essa medidas, o governo afirma que a participação da iniciativa privada no setor deve aumentar, trazendo novos investimentos.
O modelo que vinha sendo majoritariamente adotado nos últimos leilões de saneamento era o de concessão plena dos serviços, o que reduziu o protagonismo do Estado nos contratos. Ainda em dezembro, o governo do Rio Grande do Sul promoveu a venda do total das ações da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), a primeira privatização de uma empresa estadual do setor na história do país. A Aegea, maior operadora privada de saneamento do Brasil, arrematou o certame.
Dispensa de licitação
Outra mudança prevê que as estatais poderão regularizar contratos que estavam vencidos ou irregulares até 2025. No entanto, a mudança do governo Lula que gerou mais polêmica é a licença para que empresas estaduais prestem serviços, sem licitação, em regiões metropolitanas, microrregiões ou aglomerações urbanas. Segundo os sócios de infraestrutura e regulatório do Demarest Advogados, Renan Sona e Bruno Aurélio, esse modelo é equiparado à prestação direta de serviços.
“Com a possibilidade de prestação direta equiparada, as estatais terão a liberdade de prestar os serviços de saneamento básico sem a necessidade de realização de um procedimento licitatório”, afirmam.
Na prática, o governo estadual – controlador das companhias estatais – poderá definir quais municípios irá atender sem a necessidade de licitação.
Antes da publicação dos decretos, havia receio no mercado de que o governo federal traria de volta a possibilidade de celebração dos chamados “contratos de programa”, firmados entre estados e municípios sem licitação. Embora os decretos não permitam esse mecanismo, a nova regra de prestação regionalizada trouxe um receio ainda maior ao mercado.
“A nova regra dá ainda mais poder às companhias estaduais, já que estabelece a possibilidade de o estado decidir, sozinho, o que vai fazer com todos os municípios”, afirmou Rafael Vanzella, sócio de infraestrutura do escritório Machado Meyer.
Segundo o especialista, a Constituição define o saneamento como serviço do município. “A situação agora é pior do que a anterior ao novo marco, aprovado em 2020″, avaliou.
Perdão para contratos irregulares
Em relatório do BTG Pactual (BPAC11), os analistas João Pimentel, Gisele Gushiken e Maria Resende afirmam que os decretos assinados por Lula são um waiver (espécie de perdão) para companhias estatais “ineficientes” e para contratos irregulares.
Os analistas acrescentaram que as mudanças visam preservar as companhias estatais, especialmente em estados onde governadores são contra a privatização.
“Apesar do barulho, não acreditamos que essas mudanças têm o poder de travar as privatizações em curso na Sabesp e na Copasa, já que os governadores Tarcísio [de Freitas, em São Paulo] e [Romeu] Zema [em Minas Gerais] têm se manifestado favoravelmente sobre o processo”, disseram.
Já o analista Giuliano Ajeje, do UBS BB, afirmou em relatório que um giro de 360 graus “é quase uma boa analogia” para o que está acontecendo no Brasil no setor de saneamento. Segundo ele, o novo marco legal do setor, aprovado em junho de 2020, foi um giro de 180 graus “para a criação de um ambiente competitivo”, encerrando contratos de programa e exigindo metas de universalização.
“Acreditamos que as novas mudanças poderiam não só desacelerar os investimentos como colocá-los em risco, gerando maior litígio no setor”, disse o analista. Ele acrescentou ainda que as PPPs “são um exemplo de ineficiência” por permitirem que um ator estatal, menos eficiente, contrate um prestador mais eficiente a um preço mais baixo, cobrando uma conta mais alta dos consumidores na outra ponta.
Para o analista do UBS BB, as novas flexibilizações devem impactar diretamente os investimentos nos municípios irregulares, com o cenário mais provável passando a ser “a manutenção das atuais ineficiências e a desaceleração do investimento.”
Em nota, a Associação das Operadoras Privadas de Saneamento no Brasil (Abcon) afirmou que as empresas consideram o fim do limite de 25% para a contratação de PPPs um avanço. “Isso possibilita mais uma opção para o investimento em prol da universalização do saneamento no país. Companhias públicas e privadas têm mais uma opção para viabilizar os investimentos necessários para o setor.”
Em relação às demais mudanças, entretanto, a associação informa que está analisando o formato adotado para as regularizações dos contratos. “Tendo em vista quaisquer que sejam as opções, a segurança jurídica será fundamental.”
Visão da Câmara: retrocesso no setor
O presidente da Câmara, Arthur Lira, afirmou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo nesta quinta-feira (06) que os decretos assinados por Lula são um retrocesso e que as mudanças precisam ser votadas pelo Legislativo, cujos representantes foram igualmente eleitos pela população.
O ministro das Cidades, Jader Filho, disse que as medidas podem criar as condições necessárias para destravar investimentos da ordem de R$ 120 bilhões em obras de saneamento até 2033. “Esses recursos virão tanto da iniciativa privada quanto do setor público”, afirmou durante cerimônia de assinatura dos decretos na tarde de quarta-feira (5).
Segundo estimativas de entidades setoriais e do próprio governo federal até o ano passado, os investimentos necessários para universalizar os serviços de água e esgoto no país até 2033 ultrapassam R$ 800 bilhões.
“Existem diferentes estimativas e projeções sobre o valor de investimentos necessários para o atingimento das metas de universalização, mas as projeções do setor privado, próximas a R$ 800 bilhões, são mais realistas”, disseram os sócios do Demarest.
Presidente Lula: ‘voto de confiança’ às estatais
Em discurso, Lula reforçou o apoio do governo federal às companhias estaduais estatais. “Estamos dando um voto de confiança às empresas públicas. Se [essa mudança] não der certo, é um fracasso de todo mundo”, disse durante a cerimônia.
O ministro da Casa Civil, Rui Costa, disse que “muitos governadores” têm projetos de saneamento estruturados. “[São] bons projetos, mas não necessariamente têm volumes de fundo garantidor. Queremos mais investimentos, empregos, cidades sustentáveis e que as companhias estaduais possam modelar vários projetos. O BNDES será um agente financiador importante”, afirmou.
Lula disse que os bancos públicos terão papel fundamental no financiamento do setor a partir de agora. “Precisaremos da Caixa com muita vontade de emprestar, do BNB [Banco do Nordeste] com muita vontade de emprestar. O [Aloizio] Mercadante está com a faca e o queijo na mão para fazer o BNDES voltar a ser um banco de desenvolvimento”, afirmou.
Embora o discurso do atual governo federal seja de perda de protagonismo e competitividade das companhias estatais, os números mostram outra realidade: 19% da população brasileira é atendida por operadoras privadas de saneamento, conforme estudo publicado pela Bloomberg Línea.
- Matéria atualizada às 10h com informações sobre novos prazos estabelecidos pelos decretos.
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