O fim do carro popular e o plano do setor com o governo Lula para revivê-lo

Preço médio do veículo novo mais em conta no país mais do que dobrou desde o início da pandemia, em 2020, e se aproxima de R$ 70 mil

Pátio alguns anos atrás com muitos modelos populares do passados, como Corsa, Ka, Uno, Fox e Gol: veículos de entrada hoje são mais caros
07 de Abril, 2023 | 08:41 AM

Bloomberg Línea — O carro popular alimentou por muito tempo o sonho de “motorização” de muitos brasileiros. Não muitos anos atrás, até 2019, era possível comprar um automóvel zero quilômetro por menos de R$ 30 mil, mas a indústria se transformou com os efeitos causados pela pandemia e outros fatores.

Atualmente as montadoras no país privilegiam margens de lucro em vez de escala, o que contribui para elevar ainda mais os preços dos veículos, que já vinham sendo impactados pela crise global na cadeia de suprimentos com a ausência de peças como semicondutores. Hoje, no Brasil, os modelos de entrada não saem por menos de R$ 70 mil, um patamar recorde. E não há expectativa de queda.

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A nova realidade do setor faz parte de uma preocupação do novo governo, do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que já fez consultas preliminares à indústria para entender a situação e avaliar o que potencialmente poderia ser adotado de medidas para tornar os carros mais acessíveis. É uma situação que interessa às duas partes, dado que pode significar incentivos para ampliar as vendas.

Segundo essa tese, um plano eventual atenderia ao desejo de milhões de brasileiros e estimularia uma das indústrias com a cadeia produtiva mais extensa da economia, com a geração de empregos.

De março de 2020, mês de início da pandemia, a dezembro de 2022, houve um aumento de 68% do preço médio dos automóveis no país (veja gráfico abaixo com a evolução desde 2016), segundo levantamento da consultoria automotiva JATO Dynamics, mas os preços já estavam em tendência de alta antes mesmo da pandemia. No mesmo período, para efeito de comparação, o IPCA calculado pelo IBGE, índice oficial de inflação do país e que serve como referência para o custo de vida do brasileiro, avançou 21%. Os salários em geral subiram abaixo disso.

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“Há um posicionamento da indústria de privilegiar modelos de maior valor agregado. O carro zero está se distanciando cada vez mais do brasileiro”, afirmou o diretor de desenvolvimento de negócios da JATO, Milad Kalume Neto, à Bloomberg Línea.

Historicamente, 70% das vendas de carros novos no Brasil eram dos chamados modelos de entrada – também conhecidos como “populares”. No entanto a indústria automotiva vem elevando a aposta em veículos mais caros, principalmente os utilitários esportivos (SUVs, na sigla em inglês).

“As montadoras estão privilegiando as margens e isso significa que, no Brasil, os SUVs vão ser dominantes no mercado”, disse Kalume Neto.

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De acordo com a Bright Consultoria Automotiva, o preço médio de um SUV está na casa dos R$ 164 mil, contra R$ 135 mil no início da pandemia em 2020. Um aumento de 21%, em linha com o IPCA.

O diretor da Bright, Murilo Briganti, disse que a indústria tem optado por readequar os volumes de produção. “Hoje, as montadoras estão trabalhando com estoques menores. Quando a oferta é reduzida, o preço praticado no mercado é maior.”

Ele disse que, além da crise de oferta na cadeia de semicondutores a partir de 2020, outros fatores impactam os preços dos automóveis, como o maior conteúdo de conectividade e tecnologia nos modelos e o avanço da legislação de emissões e segurança, o que acabou encarecendo os veículos. Alguns dos modelos mais baratos do país, como o Fiat Uno e o Onix Joy, saíram de linha no fim de 2021 porque as montadoras avaliaram que não compensava fazer as mudanças nesses motores.

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Para as indústrias automotivas globais com operação no Brasil, o trade off entre margens e escala já tem sido replicado de forma mais ampla e os números mostram que a conta fecha.

As grandes montadoras reportaram nos últimos dias resultados financeiros robustos globalmente. Na Volkswagen, o lucro aumentou em todas as marcas do grupo em 2022, incluindo aquelas consideradas de “massa”, apesar da queda de 7% das entregas. O lucro operacional (antes de itens especiais) alcançou 22,5 bilhões de euros no ano passado, um aumento de 12,5% sobre 2021.

A General Motors (GM) registrou lucro operacional ajustado recorde no ano passado, de US$ 14,5 bilhões. Já a Stellantis, dona das marcas Fiat, Jeep, Citroën e Peugeot, reportou em 2022 um resultado operacional ajustado de 23,3 bilhões de euros, alta de 29% em relação ao ano anterior.

Estudo do governo Lula

Levantamento da Bright mostra que, atualmente, os carros mais baratos do mercado brasileiro são subcompactos com motor 1.0: o Mobi, da Fiat, e o Kwid, da Renault, ambos a partir de R$ 68 mil (veja nesta matéria a tabela dos dez modelos mais baratos). Em meados de 2017, o modelo da montadora francesa estreou no Brasil a partir de R$ 29 mil.

“Hoje, as marcas colocam muito foco em conectividade e tecnologias como o motor turbo, por exemplo. Houve uma mudança, com SUVs e picapes já representando 50% do mercado, o que acaba impactando o preço final”, disse.

Para o presidente da Fenabrave (entidade que representa as concessionárias), Andreta Junior, hoje os carros zero têm muito mais itens de segurança e de controle de emissões, o que encarece os veículos.

“Os modelos de entrada de hoje não podem ser comparados aos do passado, não dá para produzir um carro sem airbag ou freio ABS”, afirmou o dirigente em relação a dois itens que se tornaram obrigatórios a partir de 2014. “Mas isso não significa que os automóveis não possam ser mais baratos. O governo pode abrir mão de impostos para trazer os carros populares de volta ao mercado”, disse.

Embora não haja uma proposta formulada nesse sentido, Andreta afirmou que técnicos do atual governo federal, do presidente Lula, procuraram o setor para pedir informações e números sobre essa fatia do mercado. O presidente tem ligações históricas com o setor por ter trabalhado em metalúrgicas na região do ABC, na Grande São Paulo, berço da indústria automotiva nacional.

Em caso de eventuais desonerações de tributos ou concessão de subsídios, o dirigente disse que um desafio é definir o que é carro popular nos dias de hoje. “É preciso qualificar esse carro, é o modelo 1.0? Tem motor flex? Quais conceitos serão levados em conta para receber o benefício?”

Ainda no início deste ano, dirigentes da indústria automotiva reclamaram das condições de crédito para a compra de automóveis, mais um entrave para a compra do tão carro zero por parte dos brasileiros. Atualmente, 70% das vendas de veículos no varejo são feitas à vista e, o restante, a prazo.

“A concessão de crédito está baixa no setor. Com os juros elevados e a confiança do consumidor afetada, não temos um cenário tão positivo para aquisição de carro”, disse Kalume Neto.

Segundo levantamento da JATO, em 2019, no ano anterior ao começo da covid, eram necessário o equivalente a 29,7 salários mínimos para o brasileiro conseguir comprar o carro mais barato do mercado. Em janeiro deste ano, esse número saltou para o equivalente a 50,4 salários mínimos.

Aluguel e vendas diretas

Briganti disse que a indústria automotiva brasileira tem operado com 50% de ociosidade há alguns anos, o que acaba restringindo novos investimentos locais por parte das matrizes.

Para este ano, a Anfavea (associação que representa as montadoras) projeta produção de 2,26 milhões de veículos leves e vendas de 2,04 milhões de unidades. A indústria brasileira tem capacidade instalada para produzir cerca de 4,5 milhões de veículos, de acordo com estimativas do mercado.

Além da ociosidade, quase metade das vendas tem sido direcionada para frotistas e locadoras de veículos, em um segmento conhecido como de “vendas diretas”. Nessa modalidade, os volumes são maiores, porém os preços praticados são menores devido aos descontos.

O diretor da JATO disse que o varejo perde força no Brasil há cerca de dez anos, embora ainda seja representativo em números absolutos. “As vendas diretas, sob a perspectiva do negócio das montadoras, são fundamentais. Fatalmente, vai ser um mercado de 60% de vendas diretas no futuro.”

Ele apontou ainda que, diante do preço mais alto dos veículos, o aluguel vai ganhar espaço entre os brasileiros, especialmente o modelo de carro por assinatura. É a modalidade em que o cliente paga um valor mensal por um pacote que inclui seguro, licenciamento, IPVA, manutenção preventiva, entre outros itens. “Não há perspectiva de queda dos preços dos veículos e isso estimula o aluguel.”

Há também a perspectiva de aumento da demanda por esse modelo pelo lado das gerações mais novas, que não veem a necessidade e não sentem o “desejo de uma vida” de ter um carro próprio como foi para os mais velhos. São gerações em que a posse de um bem não é algo fundamental.

De olho nesse segmento, muitas montadoras já lançaram seus próprios serviços de assinatura, como Volkswagen, Fiat e CAOA Chery, entre outras.

No entanto são as empresas de locação que ainda detêm o maior conhecimento sobre esse mercado. De acordo com a Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis (Abla), de 8% a 10% da frota atual das empresas do setor é composta de contratos de carro por assinatura.

“O veículo está caro e, com os juros altos e o crédito reduzido, a saída é o carro por assinatura. A tendência é a e crescimento do segmento”, afirmou o conselheiro gestor da Abla, Paulo Miguel Jr., que explicou que quase todas as locadoras já oferecem o serviço.

Ele ressalvou, contudo, que o mesmo cenário macroeconômico adverso pode limitar, por ora, o crescimento dessa modalidade.

“Neste momento, o carro por assinatura pode ser impactado pelo menor poder de compra da população. Como os contratos são longos, os clientes podem ter receio de contratar o serviço e não conseguir honrar no futuro”, afirmou Miguel Jr.

Briganti disse que algumas locadoras têm promovido a oferta de carro por assinatura sem análise de crédito. “O sonho do carro novo está cada vez mais distante do brasileiro e o aluguel é uma alternativa à aquisição do veículo, que hoje está muito difícil. Os preços não vão voltar ao que eram antes.”

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Juliana Estigarríbia

Jornalista brasileira, cobre negócios há mais de 12 anos, com experiência em tempo real, site, revista e jornal impresso. Tem passagens pelo Broadcast, da Agência Estado/Estadão, revista Exame e jornal DCI. Anteriormente, atuou em produção e reportagem de política por 7 anos para veículos de rádio e TV.