Arcabouço fiscal: as dúvidas do mercado sobre as regras propostas pelo governo

Para economistas, as novas regras fiscais não são suficientes para alcançar as projeções apresentadas pelo governo, o que sugere que pode haver aumento de carga tributária

Projeções da equipe econômica deixaram dúvidas
31 de Março, 2023 | 04:47 AM

Bloomberg Línea — A apresentação do novo arcabouço fiscal nesta quinta-feira (30) deixou dúvidas entre economistas do mercado financeiro consultados pela Bloomberg Línea. A principal delas, ressaltada pela maior parte dos especialistas, é de que as novas regras, por si só, não são suficientes para se chegar à trajetória de dívida/PIB e ao resultado primário apresentados pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Nas contas do governo, a dívida bruta do governo central chegaria a 76,54% do PIB em 2026 com as novas regras num cenário base. Com uma eventual queda de 2 pontos porcentuais da taxa de juros, o número poderia cair a 73,58% no mesmo ano. O governo também prevê zerar o déficit primário em 2024, e indica que haverá superávit primário de 0,5% do PIB em 2024 e 1% do PIB em 2026.

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Os cálculos de economistas, no entanto, mostram uma trajetória mais elevada da dívida aplicando as novas regras fiscais. Para os especialistas, isso pode indicar que o governo está contando com três possibilidades que não são consideradas por eles: uma expansão do Produto Interno Bruto (PIB) acima do projetado, uma queda dos juros maior do que a estimada pelo mercado; ou um aumento de receitas por meio de uma elevação da carga tributária - hipótese mais comum levantada pelos economistas.

Sergio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados, avalia que a proposta apresentada pelo governo de estabelecer um intervalo de 0,6% a 2,5% de crescimento das despesas acima da inflação indica que haverá um piso para a expansão de gastos, mesmo em situações de queda de receita, o que obrigará a Fazenda a “correr atrás de arrecadação”.

“Dado que vai ter um crescimento de receita acima desse crescimento de gasto real, que já é acima da inflação e potencialmente acima do PIB também, tem um cenário de que, muito provavelmente, para fechar a equação, precisará de aumento de carga tributária”, afirma.

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Outra possibilidade, como afirma a economista-chefe da gestora Armor Capital, Andrea Damico, é de que as projeções do governo estejam levando em consideração uma projeção muito otimista de expansão da atividade econômica nos próximos anos, o que levaria a um aumento de arrecadação, ou também uma redução da taxa Selic a um patamar menor do que se espera, reduzindo a conta de juros do governo.

“Com os nossos números de atividade, a gente não consegue chegar nesses mesmos números apresentados de trajetória de dívida”, diz a economista. Uma estabilização da dívida poderia ser alcançada, segundo ela, com uma receita extra de R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões que poderia vir com a tributação de dividendos, que ainda não está sendo discutida. “Com reforma da renda, a gente conseguiria uma estabilização de dívida nos próximos anos, no médio prazo. Isso é um resultado razoável.”

A economista ressalta que, objetivamente, as novas regras são positivas e mostram compromisso com a estabilização do crescimento da dívida - uma avaliação que também é compartilhada por outros especialistas consultados pela Bloomberg Línea.

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Damico elogia o fato de o governo ter indicado um teto para o crescimento das despesas (de 2,5% acima da inflação) e também a limitação de a despesa crescer na proporção de 70% do aumento das receitas, além da possibilidade de ter um fator contracíclico. No entanto, a falta de clareza sobre os cálculos usados pelo governo deixou uma interrogação.

Outros dois pontos de atenção são levantados por Marco Caruso, economista-chefe do banco Original. Um deles é sobre a proposta do governo de destinar para investimentos todo o excedente do superávit primário que superar a meta, e também o fato de haver um piso para os investimentos públicos. São medidas que, na visão dele, ajudariam a turbinar a economia em momentos de forte expansão, o que seria uma fragilidade.

Além disso, o fato de a regra prever um aumento real das despesas em qualquer situação pode deixar as contas públicas em uma situação frágil numa eventual recessão.

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“É uma regra que faz o seu papel de não fazer a despesa ser explosiva, que poderia ser o caso se a gente seguisse a subir receitas e despesas, como era antes do teto de gastos. Mas não suficiente para a estabilização com essas n dúvidas sobre como vão ficar essas outras despesas”, afirma Caruso.

Rafaela Vitória, economista-chefe do Inter, ressalta que as projeções apresentadas pelo governo parecem otimistas demais e deixam dúvidas sobre a execução das novas regras. A expectativa, segundo ela, é de que com a apresentação o texto do projeto no Congresso será possível conhecer a proposta mais em detalhes para avaliar o impacto real nas contas públicas e na dívida.

“Os mercados tiveram uma reação positiva ao anúncio, com o dólar e juros em queda. Melhoras mais profundas, no entanto, principalmente a esperada queda da taxa de juros real, vão depender da aprovação do projeto e melhora efetiva nos resultados fiscais ao longo de 2023 e 2024”, afirma.

Veja abaixo os comentários dos especialistas sobre o novo arcabouço fiscal, editados para fins de clareza:

Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados:

“É o arcabouço possível. Não é o melhor. Não é o ideal. Ele não é anticíclico. Ele é pró-cíclico. Tendo mais crescimento, o governo vai gastar mais. Tendo menos crescimento, o governo vai gastar menos. Não é o ideal.

Dado que vai ter um crescimento de receita acima desse crescimento de gasto real, que já é acima da inflação e potencialmente acima do PIB também, tem um cenário de que, muito provavelmente, para fechar a equação, precisará de aumento de carga tributária.”

Andrea Damico, economista-chefe da Armor Capital

“De início, a boa notícia é que, de fato, há um compromisso com um teto para as despesas. Dentro da parte mais crítica, o que a gente identifica é que há uma dependência muito grande da arrecadação e do crescimento.

Se está crescendo bem, a regra poderia até funcionar. Agora, se não cresce, está numa situação mais delicada porque, se não atingir a meta de primário, no ano seguinte, a sua despesa vai crescer menos ainda. Vai sair dos 70% do crescimento da arrecadação, para 50%. Isso fica difícil imaginar que essa punição, com todo o DNA que a gente vê de preocupação com o social, consiga garantir a redução das despesas.”

Felipe Salto, economista-chefe e sócio da Warren Renascença:

“A regra é positiva. A limitação do crescimento do gasto a 70% do crescimento passado da receita é boa diretriz, sobretudo porque terá um valor máximo de 2,5%.

Vale dizer que o novo arcabouço ganhou um peso muito maior do lado das receitas. A dinâmica da receita acabará sendo crucial para que se consiga viabilizar o desempenho mínimo do gasto obrigatório e ainda assim gerar resultado primário condizente com a estabilização da dívida a médio prazo.

A proposta é consistente e, claro, dependerá, como qualquer regra, do compromisso político em torno da regra. Mas, de saída, é possível dizer que os cenários fiscais melhoram na presença do novo arcabouço.”

Rafaela Vitória, economista-chefe do Inter

“As projeções de trajetória da dívida apresentadas foram bastante agressivas. Na nossa simulação, em um cenário de 1% de superávit a partir de 2026 e juros reais convergindo para 3%, a dívida estabilizaria em 79% do PIB a partir de 2026, enquanto o governo projeta, no cenário mais otimista, 73% de dívida/PIB em 2026.

Apesar das projeções do governo serem positivas, são também muito otimistas e deixam dúvidas sobre sua execução, principalmente pelo lado da recomposição de receita, que estimamos ser necessária entre R$50 bilhões a 150 bilhões/ano, entre 2023 e 2025, sendo que não há indicação específica de aumento de impostos nesse momento.”

Felipe Salles, economista-chefe do C6 Bank:

“Na nossa visão o resultado primário necessário para estabilizar a dívida como percentual do PIB é de cerca de 2,0% a 2,5%. No entanto, apesar de os objetivos serem claros, ainda faltam detalhes de como eles seriam alcançados.

Apesar do arcabouço fiscal estabelecer uma limitação ao crescimento das despesas, aparentemente a maior parte do ajuste acabaria recaindo sobre a necessidade de um aumento das receitas.”

Gustavo Sung, economista-chefe da Suno Research:

“De forma geral, o novo arcabouço é razoável. Tem regras claras e, como falamos anteriormente, tem mecanismos de correção. Mas, ainda estamos céticos com relação ao cumprimento das metas para o resultado primário - 0% para 2024, superávit de 0,5% em 2025 e de 1% em 2026. Esse será um grande desafio para o governo.

E, ao olhar a simulação da trajetória da dívida pública em relação ao PIB, notamos que no cenário 1, que tem as metas citadas anteriormente, a trajetória da dívida estabiliza em 2026. E, somente, no cenário em que há cortes de juros, é visto uma queda na trajetória. Um arcabouço fiscal robusto não poderia depender dessa variável.”

Marco Caruso, economista-chefe do Banco Original

“É uma regra fiscal que não faz um ajuste fiscal, mas contém uma deterioração maior do endividamento, se não houver regra alguma. Um dos méritos é esse. Pelo menos existe uma regra de contenção de despesa, mas é uma regra de contenção de despesas insuficiente para reduzir ou estabilizar a dívida/PIB.

Outro ponto que me preocupa. Se é uma regra que contém o aumento do endividamento, mas ainda cresce, necessariamente é uma regra que nos deixa frágil numa eventual crise econômica.

Em condições normais, é uma dívida/PIB que sobe lentamente. Em havendo uma crise, a gente consegue voltar para uma trajetória saudável rapidamente? A resposta é não. São regras que desenham um aumento lento, mas ainda assim um aumento do endividamento.

Stephan Kautz, economista-chefe da EQI Asset:

“É uma carta de intenções ainda. Os números que a gente rodou nas contas que foram anunciadas, pelas regras, não alcançam as metas que o governo está se propondo de superávit primário para o ano que vem. Teria que haver algum outro ajuste. E por isso mesmo eles devem anunciar novas medidas na semana que vem, como foi ressaltado pelo ministro Haddad e pelos seus secretários.

O anúncio de hoje não completa a quantidade de medidas necessárias para alcançar as metas de primário que eles anunciaram. Para que a dívida se estabilize para que eles projetam, deveria haver necessariamente um corte de juros ao longo dos próximos anos, talvez já começando este ano, o que, por enquanto, a gente não vê o Banco Central fazendo isso.”

Tiago Sbardelotto, economista da XP:

“Em um cenário que consideramos mais razoável, com um crescimento do PIB mais próximo a 1,8% no médio prazo, a regra não é capaz de entregar os resultados primários nem de proporcionar a convergência da dívida pública, mesmo com a elevação de receitas em 1 pp. do PIB. Isso só é possível se considerarmos tanto os parâmetros oficiais, que entendemos mais otimistas em termos de crescimento potencial, quanto medidas que aumentem as receitas de forma permanente a partir de 2024 acima de 1% do PIB

Logo, nossa percepção é de que o anúncio da nova regra fiscal não ‘contou toda a história’. Embora o ministro tenha falado em medidas para incrementar receitas com a correção de distorções no sistema tributário, não foram apresentados maiores detalhes, exceto uma previsão preliminar de um ganho de R$ 100 a R$ 150 bilhões. Assim, a regra apresentada não encerra a discussão sobre o orçamento dos próximos anos.”

Silvio Campos Neto, economista da Tendências Consultoria:

“A intenção de controle das despesas se torna duvidosa quando são considerados todos os sinais emitidos pelo novo governo. A visão pró-expansionismo fiscal tem sido recorrentemente defendida nos últimos meses, sendo que também esteve presente no material de divulgação do novo arcabouço fiscal.

Além de uma renovada defesa pela retomada de níveis mais altos de investimentos públicos, uma das telas [da apresentação do governo] reitera os objetivos de ganhos reais do salário-mínimo, elevação de recursos para a saúde e o redesenho do programa Bolsa Família.

Nesse sentido, não há menções a eventuais punições ou implicações de não comprometimento com os limites de gastos, mas apenas a citação de que em caso de descumprimento das metas de primário, a expansão das despesas será limitada a 50% da alta das receitas (e não a 70%).”

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Filipe Serrano

É editor sênior da Bloomberg Línea Brasil e jornalista especializado na cobertura de macroeconomia, negócios, internacional e tecnologia. Foi editor de economia no jornal O Estado de S. Paulo, e editor na Exame e na revista INFO, da Editora Abril. Tem pós-graduação em Relações Internacionais pela FGV-SP, e graduação em Jornalismo pela PUC-SP.