Ex-diretores da Americanas relataram que não havia empréstimo de risco sacado

Documentos vistos pela Bloomberg News apontam como a dívida da Americanas se expandiu por anos, fora da vista do público

Varejista reportou R$ 42,3 bilhões de dívida total em sua proposta de reestruturação à Justiça
Por Cristiane Lucchesi - Jessica Brice
24 de Março, 2023 | 08:14 AM

Bloomberg — Os diretores da Americanas (AMER3) disseram ao auditor externo e ao seu comitê de auditoria interno em um período até dezembro de 2022 que não havia empréstimos do tipo “risco sacado” tomados pela empresa.

Ao mesmo tempo, os executivos forneceram informações conflitantes à CVM, xerife do mercado de capitais brasileiro, e um sistema do Banco Central mostrou que esses empréstimos haviam ultrapassado R$ 17 bilhões.

PUBLICIDADE

Poucas semanas depois, um novo presidente, Sergio Rial, revelou enormes inconsistências contábeis que levaram a um colapso histórico para a empresa sediada no Rio de Janeiro.

Documentos vistos pela Bloomberg News fornecem o relato mais detalhado até agora de como a dívida da Americanas se expandiu por anos, fora da vista do público. Os materiais foram compilados por um administrador judicial, com base em relatórios de auditoria e informações provenientes da Americanas.

Os detalhes mostram que os executivos da varejista estavam fornecendo números muito diferentes sobre transações de “risco sacado” do que as informações que poderiam estar disponíveis nas contas bancárias da empresa.

PUBLICIDADE

A PwC, a mais recente auditora externa da varejista, disse que foi informada pela administração de que não havia transações de risco sacado, de acordo com o relatório. Registros escritos do comitê de auditoria interna em maio de 2021 e dezembro de 2022 mostram executivos dizendo o mesmo. Registros escritos do comitê de auditoria interna em maio de 2021 e dezembro de 2022 mostram executivos dizendo o mesmo.

Mas documentos enviados pela própria Americanas à CVM, reguladora do mercado de capitais, mostram que a empresa começou a tomar esse tipo de financiamento em 2015, com cerca de R$ 3,5 bilhões, chegando a R$ 15,9 bilhões em 2002, disse o administrador.

“A Americanas reforça que seus órgãos sociais (conselho, diretoria e comitês) estão trabalhando conjuntamente para divulgar suas demonstrações financeiras revisadas, retificadas e auditadas, assim que forem concluídos os trabalhos das consultorias contratadas pela companhia, de seu auditor externo atual, a PwC, e do Comitê”, disse a empresa em resposta por email. A PwC não quis comentar.

PUBLICIDADE

Conhecido como “risco sacado” no Brasil, também chamado de compror, o financiamento ao fornecedor com garantia do comprador foi fundamental para o enorme buraco contábil de R$ 20 bilhões divulgado pela Americanas em janeiro, após a posse de Sergio Rial. Isso levou a um pedido apressado de recuperação judicial, para evitar que os credores tomassem ativos.

Os erros contábeis na empresa aumentaram artificialmente os lucros por até uma década e reduziram os passivos reportados pela metade sob o mandato de Miguel Gutierrez como presidente.

A Americanas reportou R$ 42,3 bilhões de dívida total em sua proposta de reestruturação, embora esse número fique mais próximo de R$ 50 bilhões se forem incluídos os empréstimos intracompanhia.

PUBLICIDADE

A Americanas é controlada majoritariamente pelos empresários mais ricos do país, os bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira, que juntos detêm uma participação de 30%. Sicupira é ex-presidente e membro do conselho.

Em sua única declaração pública desde o início do escândalo, eles disseram que não sabiam dos erros e acrescentaram que nem executivos, bancos ou auditores haviam notado irregularidades anteriores.

A PwC também apresentou documentos ao administrador que mostram que os credores bancários não listaram suas transações de risco sacado à Americanas ao conduzir a auditoria das demonstrações financeiras de dezembro de 2022, de acordo com o relatório.

Essa é uma contradição com o que havia sido relatado ao Banco Central pelos bancos, já que cerca de R$ 17 bilhões desse tipo de dívida foram reportados em setembro de 2022, acima dos quase R$ 13 bilhões em dezembro de 2021.

A KPMG, que era a auditora anterior da empresa, citou o Itaú Unibanco (ITUB4) e o Santander (SANB11) dizendo que tinham transações de compror no exercício de 2016 com a empresa, antes de retirar a informação nas respostas subsequentes.

Uma primeira resposta dos bancos mostrou que o Itaú tinha um total de R$ 1,27 bilhão em risco sacado da Lojas Americanas e B2W, enquanto o Santander tinha R$ 1,88 bilhão. Em segunda resposta ao auditor, eles alegaram não ter esse tipo de crédito com a empresa, conforme os documentos.

O Itaú disse que a informação é falsa, acrescentando que foi a Americanas que recebeu o documento e pediu ao Itaú que dele excluísse as informações sobre o risco sacado. O banco disse que não concordou com a prática e tem documentos para comprovar isso.

O Santander disse que as cartas dos bancos são apenas uma das muitas ferramentas de auditoria e que o banco sempre incluiu no sistema do Banco Central todas as informações sobre os créditos da Americanas.

Os dois bancos acrescentaram que as inconsistências ou fraudes contábeis são de responsabilidade exclusiva da empresa, de seus administradores e de seu conselho de administração, e que não faz sentido tentar culpar os credores.

A KPMG não quis comentar.

Embora a Americanas tenha divulgado uma versão pública do relatório do administrador em seu site de relações com investidores na quarta-feira, partes do relatório dizem “informação disponível em versão sigilosa”, incluindo os detalhes sobre os relatórios bancários conflitantes.

“O presente relatório é apresentado em duas versões, uma pública e outra versão sigilosa, uma vez que parte das informações e documentos analisados são revestidos de sigilo, conforme informações prestadas pelas recuperandas e pelos demais agentes consultados, devendo ser observado ainda que , parte da documentação analisada , é originária do incidente sigiloso”, escreveu o administrador no relatório.

A Americanas disse em comunicado na sexta-feira que o balanço de 2022, com divulgação prevista para 29 de março, não será publicado e não forneceu uma nova data.

-- Reportagem atualizada às 18h12 com comentários da Americanas e informações sobre relatório e balanço da empresa.

Veja mais em Bloomberg.com

Leia também

Softbank vê janela para IPOs de startups da América Latina no fim do ano

Volta dos IPOs? PicPay se vê pronto para oferta inicial após chegar ao lucro