Bloomberg — Um candidato outsider à presidência da Argentina está ganhando força ao explorar a raiva do eleitor diante da economia e da inflação crescente.
Javier Milei, um economista que se tornou um congressista mais conhecido por suas aparições combativas na televisão, sente uma abertura para sua estratégia de retórica cheia de raiva. Visto por especialistas como um acólito de Donald Trump com uma reputação de teatralidade política, ele tem a seu favor pesquisas que dizem que sua posição de postulante precisa ser levada a sério nas eleições de outubro.
O seu estilo de ataques duros e o discurso anti-sistema remetem também ao adotado por Jair Bolsonaro no Brasil em sua campanha vitoriosa nas eleições presidenciais de 2018.
Uma razão é que a classe política profundamente polarizada da Argentina está em crise, com a coalizão governista peronista e a principal oposição cada uma em desordem e ainda com o desafio de identificar um respectivo candidato presidencial.
Mas o verdadeiro bônus de Milei é que nenhum dos blocos estabelecidos, populista ou pró-mercado, conseguiu consertar uma economia que se afunda cada vez rumo ao abismo.
“Obviamente, com o aumento da inflação, mais pessoas pretendem votar em mim”, disse Milei, 52 anos, em entrevista em Buenos Aires em fevereiro.
A mensagem de explosão do sistema de Milei é calibrada para ressoar em tempos como estes, e o fluxo implacável de más notícias econômicas está funcionando a seu favor.
Dados divulgados na terça-feira (14) mostraram que a inflação anual ultrapassou 100% pela primeira vez desde o início dos anos 1990, trazendo de volta memórias da hiperinflação que devastou a segunda maior economia da América do Sul.
Com quase 40% da população atolada na pobreza, Milei se apresenta como um salvador em uma “revolução moral”. Suas respostas ao mal-estar são igualmente dramáticas e incluem a troca do peso argentino pelo dólar americano como moeda nacional e a redução dos gastos do governo. Ele até sugeriu queimar o banco central.
Tudo faz parte de seu estilo agressivo de política, que ele diz ter se cristalizado quando atraiu críticas gerais por suas visões conservadoras: “Percebi que a única maneira é lutar”.
‘Raiva dos eleitores’
É uma abordagem que parece estar conquistando os argentinos.
Mais de 31% dos eleitores têm uma imagem positiva de Milei, que tem uma pontuação mais alta do que o presidente Alberto Fernandez ou qualquer outro candidato peronista em potencial, revelou uma pesquisa de fevereiro da consultoria Management & Fit de Buenos Aires.
A avaliação positiva de Milei está empatada com um candidato da oposição, o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodriguez Larreta, e atrás apenas da ex-ministra Patricia Bullrich.
Embora as pesquisas tenham sido notoriamente ruins na corrida presidencial de 2019, ninguém duvida que Milei está recebendo votos de ambas as coalizões cujas respectivas bases até agora não foram tocadas.
Milei “reflete o fracasso da classe política argentina”, disse Julio Barbaro, ex-congressista peronista. “Ele expressa a raiva dos eleitores.”
Milei sabe que a turbulência econômica é sua pista de decolagem. A Argentina passou mais tempo em recessão do que qualquer outra nação desde a Segunda Guerra Mundial, com exceção da República Democrática do Congo, mostram dados do Banco Mundial.
Outra recessão está se aproximando neste ano, quando uma seca histórica destrói colheitas essenciais para trazer dólares americanos para os cofres do governo e alimentar o crescimento.
Monica Troncoso, 46 anos, lembra-se dos saques e da anarquia do passado durante a hiperinflação e diz que a Argentina está perto de voltar a esses dias. Vivendo na pobreza e trabalhando em vários empregos, Troncoso vê uma “explosão social” a menos que a Argentina melhore em breve.
E ela teme que isso possa criar condições para uma ascensão de Milei. Ela já testemunhou seu potencial eleitoral, morando no bairro pobre de Fátima, em Buenos Aires, onde ele registrou seu melhor desempenho nas eleições de 2021, resultado que ajudou a catapultá-lo para o congresso.
“Receio que possa haver algum tipo de ruptura e que as pessoas aceitem Milei como sua líder”, disse Troncoso, que descreveu sua preferência política como “muito esquerdista”, mas disse que ainda não decidiu em quem apoiar este ano. “Aquele que criar mais caos reinará.”
Base forte em áreas pobres
Milei vê sua base eleitoral mais forte nas províncias do norte da Argentina, em grande parte pobres, e não apenas no rico cinturão agrícola e na capital. E ele está ganhando terreno em áreas onde os peronistas, a força política dominante nos últimos 70 anos, há muito tempo dominam.
Sua estratégia eleitoral não é complicada: chegar ao segundo turno e acender o pavio. “Se chegarmos a um segundo turno, venceremos”, disse ele. “Não importa quem é nosso rival.”
Do HSBC a Davos
Nascido e criado na cidade de Buenos Aires, Milei subiu na escada corporativa, atuando como economista sênior na Argentina para o HSBC e outras empresas antes de se tornar consultor da Corporación America, a holding administrada pelo bilionário Eduardo Eurnekian, e aparecer em Davos.
No início, ele escreveu análises e colunas de opinião moderadas, depois foi convidado para a TV como um comentarista conservador.
Após a eleição de 2019, que retomou uma coalizão peronista divisiva, ele começou a aparecer com mais frequência em programas de entrevistas, em que suas discussões furiosas com especialistas de esquerda se tornaram virais. Suas palestras logo passaram de hotéis silenciosos a comícios no estilo rockstar.
A favor de armas e contra o aborto
Apesar de sua crescente base de fãs, Milei enfrenta crescente resistência em frentes sociais. Como presidente, ele eliminaria o recém-criado Ministério da Mulher e uma instituição governamental que lutava contra o racismo.
Ele disse que se moveria para eliminar as leis de aborto da Argentina porque considera o ato um assassinato. Seus números nas pesquisas caíram no ano passado depois que ele expressou apoio à venda de órgãos humanos e ao afrouxamento dos regulamentos sobre a compra de armas em um país em grande parte desprovido de armas de fogo domésticas.
Milei tem poucos aliados, descrevendo os políticos como delinquentes, ladrões e criminosos por administrarem mal a economia. Ele considera a decisão de governos de imprimir dinheiro para financiar gastos um crime — não é — e lança uma narrativa de líderes políticos apaixonados pela inflação alta.
Para dolarizar a economia, ele sugere a aprovação de um tipo de referendo que não exija aprovação do Congresso e disse que processaria qualquer legislador que não respeitasse o resultado.
Sem ter anunciado todos os candidatos em sua chapa para governador, Senado ou Câmara, restam dúvidas sobre o alcance nacional que ele terá.
Martin Tetaz, congressista da principal coalizão de oposição, Juntos por el Cambio, ou Juntos pela Mudança, ainda vê uma chance clara de Milei ficar em primeiro lugar na votação primária de agosto se nenhum dos blocos principais apresentar um único candidato, e progredir a partir daí.
“Milei vai conseguir mais votos do que todo mundo pensa”, disse Tetaz.
Solteiro, sem filhos e nunca casado, Milei tem cinco cachorros, quatro com nomes de economistas. Ele diz que sua imagem — costeletas, cabelo despenteado, face carrancuda nas fotos — é natural. Se assim for, é meticulosamente trabalhada.
Seu maquiador cuidadosamente coloca seu cabelo de uma forma dramática. Ele dá instruções sobre como fotografá-lo. Milei insiste que não pode ir a um jantar em parte porque “120 pessoas viriam e me pediriam selfies”.
Cinthia Fernandez, uma mãe solteira da cidade de baixa renda de La Matanza, ao sul da capital, pediu uma dessas selfies. Ela abraçou Milei na sede de sua campanha em fevereiro, enquanto ele sorteava seu salário no Congresso, um golpe publicitário mensal. Sua mensagem dura contra o crime e a corrupção ressoou em Fernandez, cuja cidade natal é conhecida por sua pobreza.
“Meu presidente”, disse ela enquanto os dois se abraçavam.
Argentina: guinada à direita
Quer ele assuma o cargo principal ou não, o apoio de Milei mostra que, enquanto grande parte da América Latina, da Colômbia ao Brasil, mudou para a esquerda, a Argentina está indo para a direita.
Até mesmo o governo Fernández, que enfrenta índices de aprovação mais baixos, está começando a implementar políticas do chamado consenso de Washington, como cortes orçamentários e altas taxas de juros para cumprir um programa de resgate de US$ 44 bilhões com o Fundo Monetário Internacional.
Para os eleitores comuns, a mudança de Fernández do populismo para a austeridade não trouxe resultados econômicos. Nem para seu antecessor, Mauricio Macri, amigável aos negócios privados, cujo partido de oposição pode apresentar vários candidatos neste ano.
A vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, que governou por dois mandatos antes de Macri, também deixou um rastro de dificuldades econômicas.
O maior apelo de Milei pode ser o fato de ele não fazer parte dessa classe política.
Juan Germano, diretor da empresa de pesquisas Isonomia em Buenos Aires, disse que Milei pode ganhar poder político e assentos no Congresso, mesmo que não assuma a presidência. E isso pode impactar toda a Argentina.
Um Milei com 5% dos votos “não é grande coisa”, enquanto 10% de apoio “é um problema para a coalizão de oposição”, disse Germano. “Um Milei com 15% dos votos é um problema para todos.”
- Com a colaboração de Carolina Millan.
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