Como Campos Neto abrandou a ‘fritura’ de Lula e preservou a meta (por ora)

Após aparição do presidente do Banco Central na TV, Lula parece ter suavizado críticas ao BC e às metas de inflação, em possível sinal de trégua

Em entrevista à TV Cultura, ele prometeu cumprir o restante de seu mandato, que termina em dezembro de 2024
Por Maria Eloisa Capurro
17 de Fevereiro, 2023 | 11:04 AM

Bloomberg — Com a política monetária sob ataque do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o chefe do Banco Central, Roberto Campos Neto, fez o que costumava fazer no mercado e assumiu um risco calculado.

Em uma rara aparição de duas horas no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, Campos Neto, de 53 anos, ficou na corda bamba ao responder uma bateria de perguntas duras de seis repórteres.

Ele expressou o desejo de boas relações com a equipe econômica de Lula, mas se recusou a ceder em duas reivindicações centrais do presidente: cortar juros e aumentar a meta de inflação. A julgar pela reação positiva do mercado na manhã seguinte, sua aposta valeu a pena.

O risco era azedar ainda mais as relações com o governo. Campos Neto é o único alto funcionário da área econômica nomeado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro que permanece no cargo. Desde que Lula assumiu em janeiro, o BC está sob ataque contínuo do presidente e seus aliados, que temem que uma política monetária restritiva vai sufocar o crescimento econômico.

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Campos Neto prometeu cumprir o restante de seu mandato, que termina em dezembro de 2024. Seu relacionamento com a equipe econômica de Lula terá um papel crucial na conquista da estabilidade nos próximos meses.

Após a aparição de Campos Neto na TV, Lula parece ter suavizado suas críticas, em um possível sinal de trégua.

“Não cabe ao presidente da República ficar brigando com o presidente do Banco Central”, disse Lula em entrevista à CNN Brasil, que foi ao ar na quinta-feira (16).

Histórico de Campos Neto no BC

Os quatro anos de Campos Neto à frente do Banco Central foram marcados por apostas ousadas, como na época em que era chefe da mesa de operações do Banco Santander (SANB11) no Brasil.

No início de 2021, ele supervisionou uma das primeiras e mais agressivas séries de aumentos de juros do mundo, mesmo quando a economia não havia se recuperado totalmente da pandemia. Valeu a pena: a inflação caiu mais de seis pontos percentuais em relação ao pico do ano passado.

Sob Campos Neto, o Banco Central está entre os mais “hawkish” (favoráveis a juros altos) do mundo. A Selic agora está em 13,75%, enquanto a inflação é de 5,8% e está caindo. No entanto, boa parte da queda foi graças a reduções do ICMS.

Essa política monetária restritiva deve causar uma forte desaceleração neste ano, matando as esperanças do boom prometido por Lula durante sua campanha. A economia deve crescer 0,76% este ano, abaixo dos 3% estimados em 2022. No Roda Viva, Campos Neto defendeu as ações do BC, argumentando que domar a inflação melhora o bem-estar dos brasileiros mais pobres.

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Para os investidores, o economista formado na Califórnia se tornou símbolo da independência do BC. Seu avô ajudou a fundar o Banco Central do Brasil, e ele ajudou a transformar sua autonomia em lei em 2021.

Logo após assumir, Lula questionou se a recém-conquistada autonomia da instituição é do interesse nacional. Seus comentários assustaram os investidores, que veem a autoridade monetária como principal guardião de uma política econômica sólida e um baluarte contra o tipo de volatilidade observada em alguns outros mercados emergentes.

“O único bastião da estabilidade no Brasil é Campos Neto”, disse Hari Hariharan, presidente da consultoria de investimentos NWI Management em Nova York.

Em São Paulo, nove gestores, economistas e executivos de bancos que falaram com a Bloomberg News disseram que o prestígio do chefe do BC só aumentou desde sua aparição no Roda Viva.

As reações entre os aliados de Lula foram mais mistas. O ministro da Fazenda Fernando Haddad recebeu bem os elogios de Campos Neto aos esforços do governo para reduzir o déficit fiscal. Mas Gleisi Hoffmann, presidente do PT, foi ao Twitter para dizer que há uma desconexão entre a política monetária e a realidade brasileira.

O Banco Central não quis comentar.

Autonomia questionada

Domar a inflação é uma coisa, mas navegar pelas correntes políticas do Brasil pode se tornar um desafio muito maior.

Muitos no PT desconfiam de Campos Neto, depois que ele foi visto votando nas eleições presidenciais com a camisa da seleção, prática associada aos apoiadores de Bolsonaro. Alguns questionaram se isso era condizente com a autonomia do BC, alegando que seria um aliado do ex-presidente.

Ele respondeu citando os aumentos de juros no ano passado — que não agradaram à equipe de campanha de Bolsonaro — e disse que o mandato de combate à inflação do BC sempre foi primordial.

O PT planeja convocar a presença de Campos Neto no Congresso, onde ele pode ser interrogado sobre a política monetária. Alguns membros do partido pedem sua renúncia.

Lula poderia tentar demitir o chefe do Banco Central, embora precisasse do apoio do Senado, e a maioria dos analistas acha que ele não estaria disposto a arriscar a turbulência do mercado que uma medida dessas provavelmente causaria. Os líderes do Congresso também disseram que não têm planos de eliminar a autonomia do banco central.

Um relacionamento melhor com o BC pode antecipar o dia em que Lula conseguirá os cortes de juros que deseja, disse Adriana Dupita, economista para América Latina da Bloomberg Economics.

“Quanto menos barulho em torno de seu relacionamento com o Banco Central, menos pressão sobre os preços dos ativos e expectativas — e mais cedo o Banco Central pode cortar juros, que é o objetivo final das farpas de Lula”, disse ela.

-- Com a colaboração de Daniel Carvalho e Martha Beck.

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