Opinión - Bloomberg

As 8.000 demissões da Salesforce não refletem exatamente valores familiares

Ao demitir dezenas de milhares de trabalhadores, o Vale do Silício está provando que a utopia dos valores nunca existiu e que já passou da hora de abandonar esse discurso

"Ohana" é o termo havaiano para família que a empresa de software usa para engajar seus trabalhadores (Foto: Bloomberg)
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Bloomberg Opinión — No Vale do Silício, aquela mágica e mística utopia em que CEOs e empreendedores de tecnologia descrevem suas empresas como uma grande família feliz, o maior pai de família de todos eles sempre foi Marc Benioff.

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Para o CEO da Salesforce (CRM), a empresa de software baseada na nuvem que ele cofundou não é apenas uma empresa, mas o que ele chama de Ohana – palavra havaiana que significa família e sistema de apoio. Seu grande evento anual Dreamforce, realizado em São Francisco, não é uma conferência, mas uma reunião de família. Até mesmo as divulgações de resultados e os dias do investidor – em que Benioff adota um ar poético para tudo, falando de golfinhos que retornaram aos canais de Veneza durante a pandemia até sua ascendência ucraniana – podem parecer como um jantar familiar presidido pelo pai de família.

Isso funcionou muito bem para Benioff durante o boom da Salesforce, quando a empresa e suas parceiras de tecnologia pensavam que a “aceleração permanente” era uma coisa real.

Mas o que acontece agora que Benioff e a Salesforce estão enfrentando os tipos de problemas que não têm soluções muito amigáveis: três investidores ativistas deixando a empresa, Wall Street questionando o preço dos negócios recentes, incluindo a aquisição de US$ 28 bilhões do aplicativo de comunicação empresarial Slack, críticas crescentes de que Benioff está se misturando com celebridades como Will.i.am e Matthew McConaughey e que isso é uma distração, e lucros que não acompanharam o ritmo de crescimento das vendas.

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Em 4 de janeiro, a empresa anunciou que demitiria 10% de sua força de trabalho, ou cerca de 8 mil pessoas. “Os funcionários afetados não são apenas colegas. São amigos, família”, escreveu Benioff em um memorando anunciando os cortes. “Por favor, fale com eles. Ofereça a compaixão e o amor que eles e suas famílias merecem e precisam agora mais do que nunca”.

As mensagens conflitantes no memorando de Benioff eram impressionantes. Pois bem, se as pessoas impactadas fossem realmente da família, não seria meio estranho e insensível deixá-las sem emprego? De acordo com a Insider, um funcionário escreveu no Slack durante uma reunião que “já que a ‘família’ foi demitida, deveríamos considerar a possibilidade de aposentar a frase ‘Ohana’?”

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A resposta é “sim”, em alto e bom som. E não apenas aposentar “Ohana”, mas todas as metáforas que o Vale do Silício agora usa para representar a cultura que quer projetar. É uma linguagem que pode ter sido eficaz e até atraente quando essas empresas eram as lendárias equipes de cinco pessoas que trabalhavam em uma garagem. Mas hoje em dia, muitas dessas empresas são gigantes de décadas que lideram a lista de algumas das maiores empresas e empregadores do mundo. Tentar se vender como uma “família” requer uma descrença que é um insulto aos funcionários que estão tentando atrair.

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Por mais que Benioff quisesse que sua base de funcionários pensasse o contrário, esse enquadramento é sobretudo uma decisão empresarial. A Salesforce admite isso prontamente em seu relatório anual, observando que o “senso de família” de sua cultura é parte do que “nos permite atrair e reter os melhores talentos, o que é fundamental para nosso sucesso contínuo”.

A Salesforce não está sozinha. O Projeto Stanford sobre Empresas Emergentes, lançado nos anos 90 e que durante anos acompanhou as startups do Vale do Silício, relatou que boa parte dos fundadores queria que a cultura de suas empresas seguisse um modelo de “compromisso” – “um forte sentimento familiar e um vínculo emocional intenso com a força de trabalho que inspirasse um esforço superior e aumentasse a retenção de funcionários”. Os pesquisadores descobriram que estas empresas que queriam “compromisso” eram as que tinham menor probabilidade de fracassar e as que tinham maior probabilidade de fazer IPOs.

Nos últimos cinco anos, à medida que o Vale do Silício evoluiu, o modelo de compromisso, tal como originalmente concebido, passou a ficar sob tensão e ceticismo. Esta forma de trabalhar baseia-se em uma indefinição dos limites entre trabalho e vida pessoal, com a expectativa de que você priorize sua “família do trabalho” às custas de sua família real. Três anos de pandemia levaram os trabalhadores, principalmente os mais jovens, a exigir limites mais definitivos entre estes dois mundos. As refeições gratuitas, massagens e mesas de pebolim que atraem funcionários ao escritório são agradáveis, mas poder trabalhar de casa e ficar longe do e-mail no fim de semana é, talvez, mais agradável. O aumento da organização sindical em tecnologia, há muito considerada um tabu, é mais um indicador da crescente cautela dos trabalhadores ao duvidar que seus empregadores cuidarão deles da maneira que prometeram.

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Embora o cinismo e a descrença na retórica familiar possam estar mais difundidos hoje em dia, deve ficar claro que este é um modelo que nunca funcionou para funcionários que não se encaixam nos moldes do Vale do Silício. Mesmo em 2002, muito antes da maioria das empresas falar sobre diversidade e inclusão, os pesquisadores de Stanford já apontavam que a dependência do modelo de compromisso em “se encaixar” dificultava a atração e a retenção de mulheres em cargos de importância e a construção de uma força de trabalho diversificada.

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Mas o verdadeiro teste de estresse está acontecendo agora, com uma geração de trabalhadores da área de tecnologia sendo demitida em massa pela primeira vez e o setor entrando em uma nova fase de seu ciclo de vida. Se as demissões no Twitter (TWTR) e no LinkedIn indicam alguma coisa, é que os funcionários do setor de tecnologia estão aprendendo rapidamente sobre outro conceito: a disciplina com carinho.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Beth Kowitt é colunista da Bloomberg Opinion e cobre o mundo corporativo dos Estados Unidos. Foi redatora e editora sênior da revista Fortune.

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