Bloomberg Línea — A derrota da Petrobras (PETR3, PETR4) nesta semana em causa de R$ 5,7 bilhões em dois processos que discutiam a exigência de IRPJ e CSLL sobre os lucros da empresas controladas no exterior, na esfera do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), acendeu a luz amarela entre grandes empresas que atuam no país. A decisão terminou empatada e só foi decidida a favor da União com o chamado “voto de qualidade”, que voltou a existir neste ano no novo governo Lula.
O setor privado já começou a se articular para tentar ao menos reequilibrar a situação, uma vez que o “voto de qualidade” cabe ao presidente do colegiado, indicado pelo governo.
Um grupo de empresas apresentou ao Congresso propostas para alterar e aperfeiçoar a reforma promovida pelo governo no Carf.
O objetivo é “regulamentar o empate” para acabar com o voto de qualidade sem voltar ao regime anterior, em que discussões empatadas seriam resolvidas a favor dos contribuintes, conforme pessoa próxima ao assunto contou à Bloomberg Línea sob a condição de não ser identificada.
Pela proposta, toda vez que um julgamento da Câmara Superior, última instância interna do Carf, terminar em empate, a autuação fiscal poderia ser levada a uma câmara de negociação. A discussão seria em torno da cobrança do valor principal do tributo, sem multas e sem juros.
Se não houver acordo, o caso vai para a Justiça. Se o processo for iniciado pelo contribuinte, vira uma ação anulatória; se for pela Fazenda, vira uma execução fiscal. O processo judicial discutiria apenas o valor principal e a incidência de juros, com a queda automática da multa.
Também não seriam cobrados os chamados “encargos legais” de 20% sobre o valor em discussão, como ocorre hoje com as execuções fiscais.
O argumento é que, se houve empate em uma discussão no Carf, órgão composto por julgadores especializados, é porque há motivos técnicos para sustentar ambos os lados. Especialmente porque a maioria das discussões em que há empate nas Câmaras Superiores discute interpretações jurídicas sobre a aplicação de juros e multa, e não questões de fato, segundo essa fonte.
O mecanismo de negociação seria específico para esses casos e não se submeteria às regras da Lei 13.988/2020, que regulamenta as transações com a Fazenda Pública - essa lei proíbe negociações envolvendo o valor de tributos.
Reunião com Haddad
As mudanças serão apresentadas como formas de propostas de emenda à medida provisória que reativou o voto de qualidade. Estão sendo defendidas pela Associação Brasileira de Companhias Abertas (Abrasca) e já foram apresentadas ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e ao secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, em reunião em Brasília na quarta-feira (1º).
Também participaram do encontro o empresário João Camargo, dono do Grupo Esfera, e o tributarista Roberto Quiroga, sócio do escritório Mattos Filho que foi à reunião como consultor do Esfera. Eles apresentaram a sugestão de emenda a Haddad e Barreirinhas, que teriam gostado da proposta e se comprometido a apoiá-la, segundo a fonte ouvida pela Bloomberg Línea.
Barreirinhas gostou da etapa prévia ao processo judicial. Segundo disse na reunião, a Fazenda consegue recuperar 5% dos valores que cobra na Justiça. O resto fica preso em processos não julgados, teses com discussão suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e derrotas.
Voto de qualidade: ida e vindas
O “voto de qualidade” é um mecanismo de desempate que havia acabado em 2020, na gestão de Paulo Guedes, quando o Congresso aprovou uma lei com reformas ao funcionamento do Carf. Voltou a vigorar em 12 de janeiro deste ano por meio de uma medida provisória do governo.
A decisão de acabar com o voto de qualidade vinha de uma interpretação do artigo 112 do Código Tributário Nacional, segundo o qual “a lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado”.
Já a decisão de voltar com o “voto de qualidade” veio da interpretação de que o empate a favor do contribuinte desequilibraria a disputa, algo que chegou a ser classificado por Haddad em entrevista como “uma vergonha”, pois favoreceria apenas grandes empresas.
Imparcialidade em xeque
Segundo as contas do governo, o favorecimento automático dos contribuintes reduziu o acervo de julgamentos do Carf em 10%. Mas aumentou o volume total dos valores em discussão nos processos pendentes de R$ 600 bilhões para R$ 1 trilhão entre outubro de 2020 e outubro de 2022.
Isso aconteceu porque os processos ficaram represados. Na exposição de motivos da medida provisória, o governo estima que R$ 59 bilhões deixem de ser exigidos por ano, embora alguns advogados digam que a causa foi a suspensão de julgamentos maiores na pandemia.
O governo também alega que, em 2022, os empates favoreceram os contribuintes em processos que discutiram R$ 24,8 bilhões. Desse total, no entanto, R$ 22,2 bilhões corresponderam a “apenas 26 empresas”, segundo comunicado do Ministério da Fazenda.
Esses dados, no entanto, não são consensuais. Segundo o Carf, até 2020, quase 98% dos casos eram definidos por unanimidade ou maioria (88% foram por unanimidade). Naquele ano, só 1,9% das decisões foi decidida pelo “voto de qualidade”.
Em 2022, com o regime do empate pró-contribuinte, novamente 1,9% das decisões foi definida pela regra do empate. E 95% dos casos foram por unanimidade ou maioria - o resto foram processos anteriores à regra do empate, decididos por “voto de qualidade”.
O “voto de qualidade” cabe ao presidente da câmara julgadora, que sempre é um conselheiro indicado pelo governo - na prática, o presidente da câmara vota duas vezes, em caso de empate.
Esse fato faz com que o Carf seja acusado de parcialidade por empresas e advogados: estudo do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV (NEF) registrou que, entre 2015 e 2016, o voto de qualidade foi proferido 347 vezes, nenhuma delas totalmente a favor do contribuinte - apenas decisões parciais, como desconto no valor da multa ou mudança no cálculo do prazo.
Tese dos lucros no exterior
Para o governo, isso significa vitória na disputa. Na exposição de motivos da medida provisória que voltou com o “voto de qualidade”, a Fazenda diz que, nos três anos que antecederam o fim da regra, saiu vitoriosa no desempate em processos que envolveram cerca de R$ 177 bilhões.
A chamada tese dos lucros no exterior, alvo da disputa que envolveu a Petrobras no Carf, já havia sido decidida a favor do contribuinte depois que o voto de qualidade foi abolido.
Isso aconteceu em pelo menos dois casos. Um resultou em vitória de R$ 1,5 bilhão para a Ambev (ABEV3). O outro eximiu a ArcelorMittal de pagar R$ 1,25 bilhão, entre cobranças envolvendo lucros no exterior e amortização de ágio decorrente da fusão entre as siderúrgicas - outra das grandes teses tributárias que o governo pretende rediscutir no Carf.
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