Bloomberg Línea — A lista completa de credores da Americanas, apresentada pela empresa na noite de terça-feira (24) em seu processo de recuperação judicial, trouxe mais perguntas que respostas. A começar pelo tamanho da dívida e pelo tamanho do débito com cada credor.
Para especialistas em Direito Empresarial e recuperação judicial ouvidos pela Bloomberg Línea, são mais indícios de descontrole da gestão interna da contabilidade da companhia. E pode até indicar atuação estratégica da companhia com suas movimentações na Justiça.
Antes de efetivamente pedir a recuperação judicial na última quinta-feira (19), a Americanas buscou uma semana antes na Justiça uma liminar que a protegesse contra medidas de execução de dívidas, como bloqueio de contas ou sequestro de bens - e conseguiu. Na ocasião, disse ter R$ 40 bilhões em dívidas.
Era uma espécie de “conta de chegada” que somava a dívida bruta de R$ 19,3 bilhões declarada no resultado do terceiro trimestre com as tais “inconsistências” contábeis de R$ 20 bilhões, reveladas uma semana antes, no dia 11, em episódio que deu início público à crise da empresa.
No pedido de recuperação judicial, a Americanas informou que sua dívida total era de R$ 43,1 bilhões, com 16.300 credores.
A lista completa das empresas com valores a receber apresentou números diferentes mais uma vez: R$ 41,2 bilhões devidos a 7.720 credores. E, assim que a lista apareceu nos autos do processo da recuperação judicial, credores começaram a contestar as cifras.
O Deutsche Bank, por exemplo, aparece como credor de US$ 1 bilhão, ou cerca de R$ 5,2 bilhões, conforme a lista da Americanas. Mas o banco alemão disse não ter crédito algum junto à empresa. Em nota, disse que “não foi afetado” pelo caso Americanas.
Segundo a Bloomberg News, citando uma fonte, na verdade uma unidade do Deutsche Bank atua como trustee (agente fiduciário) de US$ 1 bilhão em títulos emitidos pela varejista.
O BV (ex-Banco Votorantim) também contestou os valores divulgados. O banco está listado como dono de R$ 3,2 bilhões em créditos, mas, em comunicado divulgado nesta quarta, disse ser credor de cédulas de crédito bancário (CDB) de “aproximadamente R$ 206 milhões”.
E essas CDBs já “foram integralmente liquidadas com aplicações de titularidade da Americanas junto ao Banco BV”, o que está sendo “alvo de disputa judicial pela Americanas”, segundo o banco.
O BTG também entra na lista de credores que contestam o que diz a Americanas. No documento enviado à Justiça, o banco aparece como credor de R$ 3,5 bilhões. Mas, em petições apresentadas à Justiça, o BTG afirma que, desse total, R$ 1,2 bilhão são referentes a emissões de debêntures já compensadas com a Americanas, que não poderiam ser computadas como dívidas.
Desorganização e pressa
Para o advogado Renato Leopoldo, head de contencioso empresarial cível e recuperação de empresas do Donelli Abreu Sodré e Nicolai Advogados, esses “desecontros” de valores são novas amostras do que chama de desorganização interna da contabilidade da Americanas.
A própria empresa diz que seus problemas começaram depois que ela anunciou ter encontrado “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões nos balanços dos últimos anos.
“É uma situação que acaba demonstrando a falta de atenção maior e de controle da gestão interna da empresa”, disse Leopoldo em entrevista à Bloomberg Línea.
Segundo o advogado, esse “controle não tão atento” também pode denotar que a pressa para a recuperação judicial. “Muitas vezes a empresa prepara o pedido a toque de caixa porque precisa de um deferimento rápido e acaba não se atentando a pontos centrais do pedido.”
Ele se refere, por exemplo, à separação dos créditos que estão sujeitos à recuperação judicial, chamados de “concursais”, dos que não estão sujeitos, chamados de “extraconcursais”.
Todos eles se submetem ao período de 180 dias em que as dívidas não podem ser executadas, chamado de “stay period” ou “período de blindagem”, mas os extraconcursais “não se submetem aos efeitos da recuperação judicial”, conforme a Lei 11.101/2005.
Alguns exemplos de créditos desse tipo são os de alienação fiduciária de bens móveis e imóveis e cessão fiduciária de direitos creditórios, conforme o parágrafo 3 do artigo 49 da lei.
Mas quem separa os créditos por tipo é o devedor, e não o credor, disse Renato Leopoldo. “No caso da Americanas, como eles fizeram um pedido prévio para tentar negociar com credores e não deu certo, pode ter acontecido o seguinte: não houve tempo hábil para preparar a documentação. Já tive experiências desse tipo com recuperações de empresas de todo tamanho.”
Ação estratégica
Para o advogado Fernando Brandariz, sócio do Mingrone e Brandariz e especialista em recuperação judicial de empresas, há, de fato, “um descontrole”. “Até outro dia, a empresa não sabia o tamanho da dívida”, disse.
Mas ele apontou que também pode haver estratégia por trás disso: “Pode ser que a empresa não saiba exatamente qual o tamanho da dívida que tem com cada credor e está colocando valores mais altos para que o credor vá à Justiça e diga o tamanho real do crédito”.
É o contrário do que se costuma ver em qualquer situação em que há um devedor e um credor. Normalmente, quem deve tenta diminuir a dívida, e não aumentar. “Mas”, segundo Brandariz, “em casos como esse, se a devedora diz que a dívida é menor que a real, abre espaço para impugnação dentro do processo, o que envolve mais desgaste, mais gasto de tempo, gastos com honorários dos advogados etc”.
A Americanas foi procurada pela Bloomberg Línea para esclarecer as questões levantadas pelos especialistas, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
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