Onda de demissões ameaça transformar o trabalho nas big techs no Brasil

Os bastidores da busca por eficiência e de cortes em gigantes como o Google, que colocam em xeque modelo famoso por benefícios nos escritórios, de sorvete a sala de jogos

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Bloomberg Línea — Trabalhar em uma big tech como o Google, o Facebook ou a Amazon foi nos últimos anos o sonho de carreira de muitos profissionais, simbolizado por generosos benefícios muito além do que outros setores costumam oferecer - desde viagens e refeições a serviço de lavanderia de graça. Mas a onda recente de demissões ameaça transformar o modelo de trabalho que ficou consagrado no setor de tecnologia pelas regalias e que ajudou a atrair alguns dos melhores talentos profissionais do mundo.

Já são mais de 130 mil empregos eliminados no setor desde o começo de 2022, segundo levantamento da Challenger, Gray & Christmas noticiado pela Bloomberg News.

Enquanto a Alphabet (GOOG), holding do Google, que anunciou na sexta-feira (20) o corte de 12 mil funcionários, o equivalente a 6% de sua força global, mantém sua posição entre as melhores empresas para trabalhar em 2023 na lista do site especializado Glassdoor, a Meta (META), dona do Facebook, deixou a lista das top 10 empresas dos Estados Unidos preferidas pelos funcionários.

Em resposta à Bloomberg Línea no início da semana, o Google disse que, conforme o CEO Sundar Pichai anunciou em julho de 2022, a empresa estava “diminuindo contratações e aprimorando nosso foco como empresa”, mas que continua focada na contratação de engenheiros, técnicos e outras funções críticas.

“Continuamos procurando maneiras de aumentar nossa produtividade e garantir que estamos focados em nossas prioridades de longo prazo”, disse a big tech, por meio de nota.

Umas das prioridades é a área de engenharia. Em junho de 2022, o Google anunciou o segundo pólo de engenharia no Brasil, com um investimento previsto de US$ 1,2 bilhão para a América Latina.

A empresa tem 1.800 funcionários no Brasil, divididos entre o escritório de São Paulo, o Centro de Engenharia em Belo Horizonte e remotos - ainda não há informação de cortes no país.

Perda de agilidade

As demissões são o sintoma mais recente e visível de mudanças que ocorreram nos últimos anos, segundo especialistas e profissionais que passaram pela companhia de Mountain View.

“Até 2016 o Google ainda era uma empresa extremamente ágil, rápida, podia fazer muita coisa sem ‘dez mil aprovações’. Hoje em dia é tudo com aprovações paralelas, demora muito mais”, disse um profissional que conhece as operações do Google e que falou com a Bloomberg Línea em condição de anonimato.

O ano de 2022 foi especialmente duro com as empresas de tecnologia, mas 2023 não começou diferente. Antes do Google nesta sexta, a Salesforce (CRM) havia anunciado o cortes de 8 mil empregos na primeira semana do ano, enquanto Meta, Amazon (AMZN), Twitter e Snap (SNAP) somam mais de 30 mil demissões. Na quarta-feira (18), a Microsoft (MSFT) também disse que vai cortar 10 mil funcionários.

A Apple (AAPL), que no Brasil têm um escritório no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, e outro em Recife, é uma das poucas big techs que ainda não promoveu cortes massivos.

As demissões em massa já tinham sido adotadas pelas principais concorrentes do Google em publicidade online, área que afetou em especial as margens de empresas de tecnologia de 2022.

A publicidade tem sido a grande alavanca dos negócios do Google há tempos, com resultados vistos como “fenomenais” e crescimento de dois dígitos trimestre contra trimestre até alguns anos atrás. No mercado americano, isso tem sido colocado em atenção com a desaceleração da economia e a iminência de uma recessão, o que tem levado empresas de diferentes setores a reduzir investimentos.

Pelo menos na América Latina, o cenário para o Google pode ser um pouco melhor, uma vez que, segundo a empresa de pesquisas de mercado Emarketer, o crescimento da publicidade digital na região deve superar o crescimento global em 2023.

O que está acontecendo agora com as empresas de tecnologia - leia-se demissões e priorização de investimentos - é resultado do que aconteceu nos últimos três anos, avaliou Junior Bornelli, CEO e cofundador do StartSe, escola de negócios da chamada nova economia.

“Existiu um momento em que, na pandemia, houve o que chamo de miragens. O Facebook, que demitiu 11 mil pessoas, ou 13% da sua força de trabalho, acreditou em uma miragem chamada Metaverso, que parecia que funcionava enquanto estávamos trancados dentro de casa. Só que essa miragem durou até o momento em que começamos a sair de casa”, disse citando esse caso como exemplo.

Para Bornelli, o mercado funciona a médio e longo prazo como um pêndulo e, durante a pandemia, a tese de que todo mundo só iria comprar pelo e-commerce prevaleceu. “Quando o varejo físico voltou com força, aquele pêndulo que tinha ido para o extremo do e-commerce se adequou. Portanto, as demissões na Amazon têm a ver com uma demanda esperada por e-commerce que não existiu.”

Bornelli disse acreditar que os ajustes que foram feitos no ano passado para os valuations de tech já trazem essas empresas de volta para os patamares de 2019, corrigindo distorções da pandemia.

“O Google também viu a sua receita cair, também teve o último trimestre pior do que era esperado e que tem pela primeira vez um grande competidor. Não um grande buscador, mas tem o TikTok, tem o Instagram, e as pessoas estão começando a fazer pesquisas de um jeito diferente”, disse.

Outra ameaça para a big tech de Mountain View, segundo especialistas, é o ChatGPT, robô de Inteligência Artificial capaz de produzir textos e imagens a partir de solicitações de humanos com precisão nunca vista e que pode transformar a indústria de tecnologia em muitas frentes, incluindo buscas.

Adeus, sala de videogame?

As ondas de demissões nas big techs - também conhecidas como FAANG, acrônimo para Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Google - e a mudança da chave para a busca de eficiência ameaçam transformar o que se tornou um estereótipo do que significa trabalhar em uma dessas companhias, que inspirou até filme em Hollywood - The Internship, de 2013, com os atores Owen Wilson e Vince Vaughn.

Os generosos benefícios que vão além de verbas para refeições e viagens para o Vale do Silício, não importa a base do trabalhador. Por muitos anos, a representação máxima de trabalhar em uma grande empresa de tecnologia se refletia em mesas com lanches e sorvete de graça, lazer como videogame e mesa de sinuca e “salas de descompressão” para relaxamento a qualquer momento.

Para Gianpiero Sperati, CHRO (Chief Human Resources Officer) da startup de RH Gupy, uma eventual mudança nas big techs virá também ao encontro das novas demandas de profissionais. “Estamos caminhando para um modelo mais customizado e flexível no RH, em que as pessoas querem benefícios que atendam a suas particularidades, que podem ser menos deslocamento, um plano de saúde melhor, flexibilidade de horário e outros que variam de acordo com o seu perfil.”

Lucas Fernandes, CHRO da plataforma de benefícios flexíveis Caju, tem avaliação semelhante. Ele disse à Bloomberg Línea que, se antes os funcionários identificavam como flexibilidade nas empresas a forma como os escritórios eram construídos, com espaços de interação e momentos de distração, hoje esse conceito está relacionado com a produtividade do trabalho remoto.

“Pessoas da Geração Z têm um engajamento 77% superior com publicações e vagas que mencionam a flexibilidade em modelos de trabalho e benefícios, segundo um estudo publicado pelo LinkedIn”, disse Fernandes.

Essa aparente transformação que concilia novo momento das empresas de tecnologia com as novas demandas dos trabalhadores da Geração Z pode deixar para trás os estereótipos que foram construídos com base em centenas ou milhares de casos reais do dia a dia dos escritórios.

“Por muito anos, as pessoas que trabalhavam em empresas como o Google esperavam por isso: queriam as salas de relaxamento, a sinuca, o Chokito de graça”, disse um profissional que trabalhou na companhia e que conversou com a Bloomberg Línea em condição de anonimato. Segundo essa pessoa, a cultura corporativa também teve, por um tempo, base no que descreve como “afrontamento”.

Em São Paulo, por estar no mesmo prédio de escritórios de advocacia e bancos como o BTG Pactual (BPAC11), em que bankers iam trabalhar de terno, o Google promovia um “dia do pijama” em que os googlers faziam questão de chegar pela manhã para, na visão deles, “chocar” o mercado financeiro.

“Benefícios como mesa de pingue-pongue e sinuca nos escritórios, que já foram uma tendência em startups, passam a ser elementos divertidos que não são mais tão importantes e decisórios no momento de uma pessoa escolher em qual empresa deseja trabalhar”, afirmou Sperati.

O trabalho remoto, que se tornou vital para os negócios durante os dois primeiros anos da pandemia, é algo que tem sido gradualmente reduzido pelas big techs, que ocupam andares em alguns dos prédios corporativos com aluguéis mais caros de São Paulo, na região da Faria Lima.

“Os profissionais estão valorizando muito mais uma flexibilidade do como trabalhar e onde trabalhar do que efetivamente a metodologia do trabalho e muitas vezes a própria remuneração”, disse Angela Brasil, diretora de pessoas e cultura da Open Co, uma das maiores startups do país.

“Muito mais do que rede, jogos e videogame, o escritório tem que ser planejado para promover momentos de colaboração entre as pessoas, visto que não estarão mais todos os dias no local”, afirmou.

A diferença é que as mudanças de cultura e de políticas de RH são mais complexas de promover em grandes empresas de tecnologia do que em startups dadas as dimensões, em que a escala do número de funcionários e de escritórios em diferentes países é muito maior.

Disputa por talentos ganha outros contornos

Para Bornelli, professores da StartSe que são executivos das empresas do Vale do Silício têm visto uma tendência de retorno ao escritório, feito de uma maneira gradual.

“Essas regalias dos escritórios devem diminuir. O Google tem uma uma série de benefícios que, em um cenário competitivo para contratação de talentos, fazia sentido: se a Apple oferecia, e eles, não, perdiam funcionários”, afirmou o CEO da StartSe.

“Mas, no momento em que todo mundo tem que apertar as contas e ninguém mais oferece, é fácil cortar esse tipo de benefício porque as pessoas não terão outro lugar pra encontrá-lo.”

Nesse cenário, propósito é muito mais valorizado pelos profissionais da Geração Z, nascidos entre 1995 e 2010 - ou seja, com idade máxima na casa de 27 a 28 anos.

Ana Carolina Lafuente, líder de pessoas e cultura da Axenya, startup com foco em gestão de saúde, disse que percebe a importância da flexibilidade na experiência do colaborador.

“Sendo uma consultoria de saúde empresarial, para nós fica muito claro essa importância de flexibilidade na tomada de decisão para ficar na empresa. Não é apenas oferecer uma sala de descompressão para trabalhar a saúde mental, vai muito além: o que podemos oferecer em saúde e benefício”, disse.

Para Bornelli, independentemente das mudanças nas políticas de atração e retenção de talentos, as big techs vão apresentar, sobretudo, uma capacidade de reinvenção.

“Todas tiveram algum momento em que enfrentaram crises e quase quebraram, mas conseguiram se reinventar principalmente pela cultura que se criou no Vale do Silício de encontrar uma solução, trabalhar com tecnologia, buscar produtos novos”, disse, citando que a Amazon vem perdendo rentabilidade ao mesmo tempo que intensifica investimentos em robótica e reduz funcionários.

“Nestes momentos de crise, as big techs encontram maneiras de se reinventar e criam tecnologias e inovações que depois vão se espalhar pelo mundo todo e para todas as empresas.”

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