Bloomberg Opinion — Uma das vitórias do Congresso americano foi a Lei de Melhoria da Doação de Alimentos, um projeto de lei obscuro que poderia catalisar um grande esforço para resolver as crises de fome e desperdício de alimentos no país. Mas a legislação só terá sucesso se os líderes do setor privado se certificarem de que ela valerá a pena.
Considere este paradoxo: os americanos são os que desperdiçam mais alimentos per capita no mundo – 40% dos alimentos acabam apodrecendo nos campos e aterros sanitários – enquanto, ao mesmo tempo, a população tem sofrido cada vez mais com a fome. Na esteira da pandemia, 35 milhões de americanos sofrem de insegurança alimentar – cerca de 10% da população – e as pressões combinadas da inflação, dos conflitos geopolíticos e da mudança climática só agravarão a pressão sobre a produção global de alimentos.
Há anos existem projetos de lei em trâmite no Congresso destinados a redirecionar os excedentes de alimentos para necessitados, e há anos eles são ignorados. Chegou a hora de agir. A Lei de Melhoria da Doação de Alimentos, sancionada pelo presidente Joe Biden, é a primeira de muitas medidas importantes que podem resolver a enorme contradição entre o excesso e a escassez de alimentos nos Estados Unidos.
Os EUA não aprovam alguma importante legislação de doação de alimentos desde que o Presidente Bill Clinton assinou a lei Bill Emerson de doação de alimentos em 1996. A nova legislação atualiza a lei com reformas sensatas e há muito necessárias que permitirão que escolas, agricultores, restaurantes, empresas, fabricantes e varejistas doem alimentos excedentes diretamente aos membros de sua comunidade.
As novas regras aliviam o ônus da responsabilidade para que os doadores privados qualificados que já possuem verificações de segurança não sejam considerados legalmente responsáveis pela qualidade ou deterioração dos alimentos.
A Lei de Melhoria da Doação de Alimentos elimina uma disposição que exige que as doações do setor privado sejam feitas por meio de organizações de distribuição de alimentos. Sob a lei Bill Emerson, uma escola ou restaurante, por exemplo, não poderia legalmente doar seu excesso de alimentos diretamente a famílias de sua comunidade em situação de insegurança alimentar.
O doador só poderia fazer a doação através de um banco de alimentos que pode ficar longe, e os alimentos acabariam sendo doados para pessoas em seu próprio bairro. O mesmo acontece com fazendas locais, supermercados, cafeterias corporativas, fábricas de alimentos e outras instalações com alto volume de alimentos que muitas vezes optam por jogar fora seus excedentes em vez de lidar com processos de doação juridicamente complexos e logisticamente onerosos.
Essas barreiras levaram a um desperdício espantoso: o setor privado esbanja anualmente bilhões de quilos de alimentos nutritivos. E embora a Lei de Melhoria da Doação de Alimentos possa ajudar a controlar a crise, há muito mais trabalho a ser feito. Simplesmente facilitar a doação de alimentos às populações necessitadas não é suficiente. É necessário haver incentivos e até mesmo exigências.
Os próprios líderes empresariais deveriam priorizar a recuperação e o redirecionamento dos alimentos que suas empresas desperdiçam. Mas os membros do 118º Congresso também podem ampliar significativamente os incentivos fiscais disponíveis para doações de alimentos ou aprovar outro projeto de lei já em tramitação no Legislativo, que merece o mesmo tipo de apoio bipartidário e de ONGs que permitiram a aprovação da lei de doação de alimentos.
Governadores de todo o país também podem ajudar, seguindo o exemplo de Nova York e Califórnia – estados que já têm leis em vigor que exigem doações de certas empresas com altos volumes de alimentos e controles de segurança em vigor.
A aprovação da Lei de Melhoria da Doação de Alimentos deve estimular o apoio a projetos de lei já apresentados, principalmente a Lei de Rotulagem de Alimentos, que foi proposta e aprovada nos três últimos Congressos. Ela aumentaria a recuperação de alimentos através da padronização das datas de validade em alimentos perecíveis, como carne e laticínios.
Atualmente, os padrões de datas de validade variam muito de estado para estado, levando ao desperdício de alimentos saudáveis e com alto teor de nutrientes. Os parlamentares também deveriam apoiar a ambiciosa Lei de Resíduos Alimentares Zero, apresentada em 2021, que incentivaria o desenvolvimento de políticas locais que restringiriam o descarte de alimentos em aterros sanitários, ao mesmo tempo em que ajudaria a financiar infraestruturas fundamentais para doação de alimentos em massa, como redes de instalações de armazenamento e frotas de distribuição.
É difícil exagerar o quanto as crises paralelas de fome e desperdício nos EUA são vergonhosas, anacrônicas e, acima de tudo, administráveis. “A fome não é inevitável”, disse o deputado americano Jim McGovern de Massachusetts, um dos patrocinadores da lei de doação de alimentos, ao insistir na aprovação da lei no mês passado. “Não temos escassez de alimentos; temos um descompasso entre abundância e necessidade – um descompasso que podemos resolver”.
Mas não será fácil. A legislação relacionada a alimentos é notoriamente difícil de ser aprovada porque abrange várias agências, incluindo o Departamento de Agricultura, a Food and Drug Administration – órgão semelhante à vigilância sanitária – a Agência de Proteção Ambiental e muitos comitês no Congresso, o que dificulta a apresentação de grandes leis com todos os componentes necessários.
Mas o ímpeto está aumentando, graças à coalizão de organizações e instituições não governamentais, incluindo a Harvard Law School Food Law and Policy Clinic, a WeightWatchers International, a Food Tank, a Grubhub e o Conselho de Defesa de Recursos Naturais dos EUA. Estes e outros grupos focados na justiça alimentar ajudaram a construir a massa crítica de apoio que impulsionou a lei no último momento.
Podemos esperar (talvez até pressupor) que esse apoio vai continuar aumentando. As duas metas de resolver o problema da fome e conter o desperdício de alimentos nunca foram tão urgentes nem tão relevantes em todas as vertentes políticas. Com o cenário da guerra na Ucrânia, condições climáticas cada vez mais voláteis, cadeias de abastecimento frágeis e fome espalhada pelo mundo todo, simplesmente não há mais espaço para o desperdício.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.
Amanda Little é colunista da Bloomberg Opinion e escreve sobre agricultura e clima. Ela é professora de jornalismo e redação científica na Vanderbilt University e autora de “The Fate of Food: What We’ll Eat in a Bigger, Hotter, Smarter World”.
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