BNDES: gasoduto Kirchner reverteria queda de repasses a obras na América Latina

Crédito de US$ 689 mi para projeto na Argentina, se confirmado, representaria valor próximo ao que foi desembolsado nos últimos sete anos pelo banco nessa modalidade

BNDES desembolsou US$ 810 milhões para obras na América Latina entre 2015 e 2021, próximo ao valor que o governo da Argentina diz ter obtido para o gasoduto Néstor Kirchner, de US$ 689 milhões - o banco disse que não houve ainda aprovação
22 de Dezembro, 2022 | 05:16 PM

Bloomberg Línea — A notícia recém-revelada do pedido de empréstimo de US$ 689 milhões do governo da Argentina para o BNDES, para a construção de novo trecho do gasoduto Néstor Kirchner, reavivou na memória dos brasileiros uma política de desembolsos do banco estatal de desenvolvimento que fez parte do relacionamento do governo brasileiro com seus vizinhos da América Latina há alguns anos.

Segundo números levantados pela Bloomberg Línea, essa política perdeu espaço no total de concessão de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social entre 2015 e 2021. É um período que compreende pouco mais de um ano do segundo mandato da então presidente Dilma Rousseff, cerca de dois anos e meio do governo de Michel Temer e os três primeiros anos de Jair Bolsonaro no poder.

Entre 2015 e 2021, o BNDES desembolsou US$ 809,9 milhões para financiar a exportação de serviços de engenharia para países da América Latina, em obras em 14 países da região.

Na comparação com os sete anos imediatamente anteriores, a queda foi considerável, da ordem de 90%. Entre 2007 e 2014, o BNDES desembolsou US$ 7,7 bilhões para obras na América Latina nessa mesma modalidade, um período que abrangeu o segundo mandato de Lula e o primeiro de Dilma.

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Argentina é campeã... de crédito recebido

Entre 2007 e 2014, o país que mais recebeu as obras foi a Argentina, com um total de US$ 2,7 bilhões. Já entre 2015 e 2021, o país recebeu US$ 77,4 milhões. Uma queda de 97%.

A campeã nesse período foi a Venezuela presidida por Nicolás Maduro, com US$ 210,5 milhões. Mas, desde 2016, o país não recebe mais empresas brasileiras para suas obras de infraestrutura.

As cifras foram compiladas pelo BNDES, que faz a divulgação ano a ano a partir de 1998, separadas por país de destino. Os dados de 2022 ainda não foram divulgados.

Pós-embarque: como funciona

Os valores acima citados se referem ao que o BNDES chama de modalidade “pós-embarque” de financiamento. O banco envia o dinheiro à empresa que prestará os serviços no exterior, e o país de destino das obras reembolsa o BNDES, com juros. Portanto, o banco não envia dinheiro para outros países.

É justamente essa a modalidade de financiamento prevista para o gasoduto Néstor Kirchner, na região de Vaca Muerta, na Argentina. Na semana passada, a secretária de Energia do país vizinho, Flavia Royón, disse que havia conseguido um financiamento de US$ 689 milhões junto ao BNDES para a obra.

Obras do gasoduto Néstor Kirchner, na região de Vaca Muerta, na Argentina. Governo argentino disse ter conseguido financiamento junto ao BNDES, mas banco negou

O banco negou que tenha aprovado o financiamento. Em nota enviada à Bloomberg Línea, disse que houve apenas “contatos informais” da embaixada argentina no Brasil e de empresas brasileiras, sem qualquer pedido formal. Não foram divulgados os nomes das empresas.

Os US$ 689 milhões representariam uma cifra expressiva. Entre 2015 e 2021, como citado, a Argentina foi destino de US$ 77,4 milhões em financiamentos “pós-embarque”. Contando desde 1998, foi o país que mais recebeu obras financiadas pelo BNDES: US$ 3,5 bilhões, em valores não corrigidos.

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Os números são divulgados conforme o desembolso por ano, e não por contrato. Ou seja: o fato de um país ter recebido uma quantia em um determinado ano não significa que o financiamento tenha sido aprovado naquele ano ou que as obras foram realizadas naquele ano.

O envio do dinheiro é que aconteceu no período. Como os contratos do BNDES são de longo prazo, pode haver distorções nos dados, que não estão compilados por contrato.

Mudança de postura e Odebrecht líder

Os dados do BNDES mostram que a política externa do partido e do presidente que estão no poder influencia os desembolsos da estatal.

O programa de financiamento à exportação de serviços de engenharia pelo BNDES foi criado em 1998, último ano do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Até 2019, US$ 10,5 bilhões haviam sido desembolsados pelo banco nessa modalidade de financiamento.

Mas 88% dos desembolsos aconteceram entre 2007 e 2015, entre o segundo mandato de Lula (PT) e o final do governo Dilma Rousseff (PT), segundo nota divulgada pelo BNDES em setembro de 2019.

No mesmo período, 98% dos repasses do dinheiro do banco foram destinados para cinco empresas, dos quais a Odebrecht respondeu por 76%.

A partir de 2016, entretanto, com o impeachment da presidente Dilma e a mudança da orientação na orientação política do governo, com Michel Temer no poder, e diante das acusações de corrupção da Lava Jato, o BNDES reteve cerca de US$ 11 bilhões em financiamentos, segundo o banco.

Em 2018, ano eleitoral em qual Lula foi proibido de concorrer por ter sido condenado por corrupção em segunda instância - em sentença depois anulada -, o BNDES registrou inadimplência de US$ 554 milhões. Os devedores eram Venezuela (US$ 374 milhões), Moçambique (US$ 118 milhões) e Cuba (US$ 62 milhões).

‘Caixa-preta’

A maior mudança nos repasses, entretanto, aconteceu a partir de 2019. Foi o primeiro ano de Jair Bolsonaro (hoje no PL, mas eleito pelo PSL) na presidência da República.

Bolsonaro assumiu o governo acusando o BNDES de financiar projetos conforme a orientação ideológica dos países de destino das obras e dizia haver uma “caixa-preta” nas contas do banco. Uma auditoria contratada pelo governo, no entanto, não encontrou irregularidades nas contas da estatal.

No período, a Venezuela, então um dos maiores “clientes” do BNDES, não recebeu nenhuma obra financiada pelo banco. O mesmo aconteceu com Cuba e República Dominicana.

Mercadante no poder

O futuro presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, vem se esforçando para espalhar a mensagem de que o banco não vai voltar a certas políticas dos governos petistas anteriores.

A notícia de que ele comandará o banco de desenvolvimento desagradou a investidores e gestores da Faria Lima, que avalia a sua nomeação como um sinal do retorno da política econômica intervencionista do governo Dilma - Mercadante foi ministro da Educação, da Ciência e Tecnologia e da Casa Civil de Dilma.

Fernando Haddad e Aloizio Mercadante no gabinete de transição. Futuro presidente do BNDES disse que não vai voltar ao passado e disse que quer usar banco para reindustrializar o Brasil

Na última terça-feira (21), Mercadante disse que o BNDES terá “um novo papel”, sem se aprofundar no tema. “Não vamos trazer o BNDES do passado, estamos construindo um BNDES para o futuro. Não tem espaço fiscal no Orçamento para financiar o BNDES, precisamos buscar novas fontes”, disse.

Mercadante citou um fundo da União Europeia para investimento em países de fora do bloco que tem 55 bilhões de euros, além do Fundo Amazônia, cujos financiadores (Alemanha e Noruega) declararam que será destravado assim que Bolsonaro deixar de ser presidente.

O futuro presidente do BNDES disse ainda que pretende reativar um fundo de US$ 10 bilhões montado em parceria com a China que deixou de ser operado pelo governo atual.

Segundo Mercadante, seu objetivo no BNDES é voltar a investir na indústria brasileira - ele disse que o setor correspondia a 46% da carteira do banco e hoje representa 16% - para gerar o que descreveu como emprego de qualidade e inovação, novamente sem dar mais detalhes. Ele também pretende focar no financiamento de pequenas e médias empresas para “democratizar o crédito”.

De acordo com ele, micro e pequenas empresas representam 29% do PIB brasileiro e há condições para dobrar essa fatia, já que na Alemanha essa fatia chega a 70% no PIB, e, na Itália, a 65%.

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Pedro Canário

Repórter de Política da Bloomberg Línea no Brasil. Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero em 2009, tem ampla experiência com temas ligados a Direito e Justiça. Foi repórter, editor, correspondente em Brasília e chefe de redação do site Consultor Jurídico (ConJur) e repórter de Supremo Tribunal Federal do site O Antagonista.