Catar — Doha, capital do Catar, é uma cidade de contrastes sociais. Com uma população de quase três milhões de pessoas concentradas em um raio de 132 km² — o mesmo tamanho que Niterói, no estado do Rio de Janeiro —, é fácil sair, em poucos minutos, das fachadas luxuosas dos arranha-céus para encarar conjuntos habitacionais que abrigam os trabalhadores imigrantes que os construíram.
Mas há algo que une o Alwadi Hotel, localizado no bairro planejado de Mschreb - que custou US$ 5,5 bilhões - a uma pequena barbearia comandada por um imigrante indiano na região periférica de Bin Omran: as fotos de dois qataris sorridentes, vestidos com trajes típicos, que enfeitam as paredes.
Os dois homens que encaram a câmera usando vestes brancas e kaffiyeh, o lenço típico dos árabes, são Tamim bin Hamad Al Thani, atual emir do Catar, e seu pai, o sheikh Hamad bin Khalifa Al Thani, que abdicou em nome do filho em 2013.
Al Thani pai tem, aos 70 anos, três esposas e 24 filhos legítimos. O sheikh Tamin, que passou a comandar o país aos 33 anos, é o décimo. A transferência pacífica da época contrastou com o golpe desferido em 1995, em que o ex-emir tomou o poder de seu próprio pai enquanto este fazia uma viagem diplomática à Suíça.
O golpe gerou disputas de poder entre membros da família que duraram anos, incluindo uma tentativa de assassinato de Hamad bin Khalifa em 1996. O antigo comandante ficou exilado do país até 2012.
Já em 2013, a sucessão pacífica para o jovem emir foi então amplamente bem recebida pela nação cuja população é marcadamente mais jovem: de acordo com estatísticas oficiais, em 2020, a média de idade do país era de 32 anos, em comparação com os 34 no Brasil e os 38 nos Estados Unidos.
Na pequena barbearia de Bin Omran, o dono Mohammed Nas, imigrante indiano de 33 anos que vive há três no Catar, conta que colocar fotos dos dois monarcas na parede de estabelecimentos é uma tradição no país. Segundo ele, o atual comandante é “bom e amado pelos moradores”.
A família Al Thani tinha, no início dos anos 1990, cerca de 20 mil membros, segundo a autora Helen Chapin Metz no livro Estudos do Golfo Pérsico. Em 2020, somente os membros da linhagem oficial da família real somavam 8 mil, segundo a mesma autora. O sobrenome é relativamente comum no país em que apenas 300 mil são realmente nascidos aqui, mas ainda traz peso por conta da simbologia de estar ligado ao poder.
A origem dos Al Thani
A criação do país moderno começou quando os britânicos, que controlavam a região, assinaram um tratado em 1868 que reconhecia o Catar como um estado separado, com um tratado adicional em 1916 que permitiu o controle sobre assuntos internos, embora mantendo o poder do Reino Unido sobre relações exteriores e defesa.
Em 3 de setembro de 1971, esse tratado foi rescindido por ser “incompatível com a plena responsabilidade internacional como um estado soberano e independente” e o Catar tornou-se um país totalmente autônomo - sendo controlado todo o tempo pela casa Al Thani.
Diferentemente de outras famílias reais da região do Oriente Médio, que descendem de longas linhagens de poder, a família catari subiu ao poder no século XIX por conexões com o então império britânico.
No decorrer da segunda metade do século XX, a descoberta da enorme reserva de petróleo e, posteriormente nos anos 1990, o investimento na liquefação de gás colocaram o país na quarta posição em PIB per capita global, e a família, consequentemente, entre os nomes de maior poder global.
Os Al Thani detêm investimentos em propriedades em todo o mundo, incluindo o arranha-céu Shard, em Londres, assim como a Vila Olímpica e a loja de departamentos Harrods, também no Reino Unido, e parte do Empire State, em Nova York.
Também têm investimentos no banco Barclays, na British Airways e na montadora Volkswagen, com uma fortuna coletiva de US$ 335 bilhões, segundo o Bloomberg Billionaires Index. Somente o atual emir tem uma fortuna estimada em US$ 2 bilhões.
Tamim Al Thani é filho da segunda esposa de Hamad bin Khalifa, a sheikha Moza bint Nasser, presidente do conselho da poderosa Qatar Foundation, fundo de endowment do país para educação, ciência e desenvolvimento comunitário que reúne investimentos bilionários ao redor do mundo em pesquisa e construção.
O jornal britânico The Guardian descreve a sheikha como o rosto das novas políticas que o regime ultra-conservador do Catar tenta promover ao, por exemplo, hospedar a Copa do Mundo de 2022. Segundo a publicação, Moza bin Nasser é considerada uma das mulheres árabes mais poderosas do mundo e é usualmente descrita pela mídia de países vizinhos como Egito, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita como a verdadeira comandante do país.
Além do atual emir, outros dos 12 filhos dela com Hamad bin Khalifa Al Thani também detêm posições de liderança. Os cargos incluem a presidência do Comitê Olímpico do Catar, pelo sheikh Joaan, o quinto filho mais velho, e a presidência do Comitê Supremo da Copa do Mundo FIFA, pelo sheikh Mohammed — que também é vice-presidente do conselho do Qatar Investment Authority, o fundo soberano de US$ 450 bilhões do país.
A sheikha Al-Mayassa, a primeira filha do segundo casamento, é a atual presidente do conselho dos museus do Catar e foi apontada como uma das pessoas mais influentes das artes pela revista especializada ArtReview’s Power 100, assim como uma das mulheres mais poderosas do mundo pela Times e pela Forbes.
A sheikha Hind, a quarta mais velha, é a CEO da Qatar Foundation, responsável por parcerias de investimento em infraestrutura no país, como a implementação da rede de telefonia móvel da Vodafone, em 2008.
Já o filho mais novo do casamento, Khalifa bin Hamad, é o chefe de segurança da Copa do Mundo. Ele ficou conhecido pela mídia americana enquanto estudava na Universidade de Califórnia, em Los Angeles, segundo jornais locais, ao apostar corrida com uma Ferrari na cidade e também supostamente ganhar o diploma sem ter frequentado aulas presencialmente - a primeira vez na história em que a instituição concedeu o documento assim.
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