Estes são os principais riscos para as contas do novo governo, segundo o TCU

Documento aponta 29 áreas de ‘risco máximo’ de fraudes, irregularidades ou interrupções por problemas de gestão ou falta de fiscalização

Alto risco, por vulnerabilidade a fraudes, desperdício, abuso de autoridade, má gestão ou necessidade de mudanças profundas
17 de Novembro, 2022 | 08:15 AM

Bloomberg Línea — O Tribunal de Contas da União (TCU) entregou ao gabinete de transição de governo, na quarta-feira (16), um relatório sobre as áreas de “alto risco” para a gestão e para as contas públicas nos próximos anos.

“Foram consolidadas 29 áreas que representam um alto risco, por vulnerabilidade a fraudes, desperdício, abuso de autoridade, má gestão ou necessidade de mudanças profundas para que os objetivos das políticas públicas possam ser cumpridos”, diz o texto de apresentação do relatório, assinado pela presidente do TCU, ministra Ana Arraes.

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Nessas 29 áreas, continua o documento, foram identificados problemas crônicos “para os quais os gestores responsáveis não apresentaram soluções efetivas”

O documento foi entregue ao vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB) pelo vice-presidente do TCU, ministro Bruno Dantas. O relatório, ao qual a Bloomberg Línea teve acesso, se baseia em decisões, investigações e processos de tomadas de contas feitos pelo TCU nos últimos cinco anos.

Infraestrutura

Um dos principais problemas constatados pela corte são as obras paradas. No último diagnóstico feito pelo TCU, foram constatados 38 mil contratos de obras de infraestrutura, dos quais 14 mil estavam paralisados. É o equivalente a 37% de todas as obras de infraestrutura contratadas pela União, ou R$ 144 bilhões em investimentos - de um total de R$ 725 bilhões.

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As principais causas para essas paralisações são deficiências de projeto; falta de dinheiro, especialmente nos casos em que são exigidas contrapartidas dos estados e municípios; e “baixa capacidade dos entes subnacionais [estados e municípios] para conduzir empreendimentos”.

O TCU aponta ainda problemas nos sistemas de informações e monitoramento, que o tribunal não considera confiáveis. “O único banco de dados que apresentava registro de causas, o do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), não oferecia clareza suficiente para permitir gestão adequada, uma vez que as categorias de causas eram muito genéricas ou imprecisas, o que dificultava a adoção de medidas preventivas e corretivas mais assertivas. Esse banco de dados foi extinto, mas os novos bancos de informação ainda não solucionaram a deficiência apontada”, diz o texto.

Fiscal

Na área fiscal, o TCU reconheceu que as regras fiscais previstas na Constituição e na Lei de Responsabilidade Fiscal, mas disse que “alguns indicadores das contas públicas ainda preocupam”. Por exemplo, a apresentação de déficit fiscal desde 2014 e “níveis elevados de dívida pública”.

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De acordo com o TCU, por mais que o teto de gastos tenha sido cumprido todos os anos desde que foi criado, em 2017, ele não foi suficiente para conter as despesas obrigatórias, como as de pessoal e previdenciárias. “O TCU identificou situações que caracterizam tentativas de contornar as restrições impostas pelo Teto de Gastos, como a capitalização de empresas estatais para terceirizar a execução de despesas típicas da Administração direta; e a realização de despesas sem previsão orçamentária ou além dos limites autorizados pela Lei Orçamentária Anual (LOA)”, diz o texto.

A corte de contas aponta ainda que o governo vem conseguindo maiorias no Congresso para aprovar a emissão de crédito extraordinário e descumprir a chamada “regra de ouro” da Lei de Responsabilidade Fiscal - a vedação à contratação de dívida para pagar despesas correntes, e não apenas gastos pontuais e com fim previsto.

De acordo com o TCU, a dívida bruta do governo geral (DBGG) saltou de 51% do PIB em 2015 para 80,3% do PIB em 2021. A cifra está acima da média da dívida dos países emergentes, de 64,8% do PIB, segundo cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI).

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Isso significa que o Brasil gasta, por ano, cerca de 5% de seu PIB com o pagamento de juros da dívida. “A elevação do custo fiscal da dívida coloca em risco a disponibilidade de recursos para atender as demandas da sociedade em áreas como educação, saúde, assistência social e infraestrutura. Além disso, a condução da política fiscal afeta toda a economia, repercutindo sobre o nível de investimento, emprego e renda do país”, conclui o relatório.

Benefícios fiscais

O relatório do TCU destaca também “problemas no uso dos benefícios tributários como instrumentos de financiamento de políticas públicas”.

Esse é um desafio especial para o futuro governo Lula. As renúncias fiscais como política setorial começaram a ser usadas ainda no final do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), mas foram institucionalizadas como política fiscal durante o governo Dilma Rousseff (PT). As renúncias fiscais saíram de R$ 77,7 bilhões, ou 3,2% do PIB, em 2006 para R$ 285 bilhões em 2017, ou 4,4% do PIB, em 2017, conforme levantamento da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado, publicada em novembro de 2017.

Em 2021, as renúncias ficaram em R$ 329,4 bilhões, ou 3,8% do PIB, de acordo com o relatório do TCU entregue ao gabinete de transição.

O problema, diz o TCU, é que esses benefícios são aprovados sem a estipulação de benefícios e metas e sem estimativa de impacto financeiro, violando as previsões da Lei de Responsabilidade Fiscal. Também não há mecanismos para avaliação dos resultados para a economia e para a sociedade.

Renúncias fiscais saíram de R$ 77,7 bilhões em 2006 para R$ 329,4 bilhões, em 2021, segundo o TCU

“Isso se deve especialmente a duas razões. Em primeiro lugar, os benefícios tributários são concedidos por meio de leis e outras medidas que não se submetem ao processo de revisão anual pelo qual o orçamento passa. Em segundo lugar, a ausência de monitoramento e avaliação sistemáticos torna ainda mais obscuro o processo de renovação dos benefícios tributários, cujos resultados ficam, geralmente, restritos aos contribuintes beneficiados”, conclui o relatório.

Receita Federal

Ainda no tema fiscal, “o TCU identificou vulnerabilidades nos sistemas e controles envolvidos na produção e no processamento das informações contábeis sob a guarda da Receita Federal e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN)”.

Isso é considerado especialmente grave pela corte de contas, já que a administração tributária é responsável pela gestão de cerca de R$ 7 trilhões. São R$ 2,71 trilhões em dívidas inscritas na Dívida Ativa da União, dos quais R$ 2,06 trilhões estão sob administração da Receita - os demais se distribuem entre INSS, Banco Central e outras autarquias. Há também R$ 1,89 trilhão de arrecadação tributária e R$ 325,7 bilhões em “gastos tributários” - benefícios fiscais e programas especiais, como o Simples Nacional.

O tribunal identificou que os órgãos, responsáveis pela arrecadação fiscal, têm mais de 600 sistemas isolados e não integrados entre si e sem conexão com o Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), usado pelos órgãos fazendários do governo federal.

Isso resulta em problemas na consolidação de dados e em “fragilidade” na contabilização dos créditos tributários, segundo o TCU. Ou seja, a Receita tem pouco controle sobre o quanto tem a arrecadar, menos ainda quando se trata dos programas de parcelamento de dívidas fiscais, os chamados Refis.

Também há “falta de travas, alertas e níveis de acesso para a execução de operações nos sistemas de cobrança e falta de monitoramento e avaliação dos controles internos de gestão associados à contabilização dos créditos tributários pela auditoria interna da Receita”.

Benefícios

O TCU identificou ainda problemas na gestão e no pagamento de benefícios assistenciais, especialmente o Auxílio Brasil (antigo Bolsa Família), e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os programas tiveram orçamento conjunto de R$ 160 bilhões para este ano, com previsão de impacto em mais de 22 milhões de pessoas.

Segundo o relatório, em 2015, o tempo médio para recebimento do BPC por pessoas com deficiência era de 78 dias. Em 2020, passou para 311 dias. A legislação que rege o pagamento do benefício prevê prazo máximo de 45 dias.

As causas para isso são excesso de exigências do cadastro e “inadequação na ordem de procedimentos”, como a avaliação social antes da perícia médica, o que resulta em perda de tempo. Por isso, há 422 mil benefícios à espera de análise pelo governo.

Em relação ao Auxílio Brasil, o TCU identificou uma fila de 1,34 milhão de pessoas aguardando a concessão do benefício. Não havia filas para o recebimento do benefício. A situação passou a ocorrer em 2019, segundo o TCU, com a restrição orçamentária para o programa imposta pelo governo Bolsonaro.

Ao mesmo tempo, houve o pagamento indevido do auxílio emergencial, pago durante a pandemia de coronavírus, a 8,2 milhões de pessoas e a 6,5 milhões de mulheres provedoras de famílias monoparentais. Isso aconteceu por causa da “insuficiência de controles sobre critérios legais referentes à composição familiar e inconsistências no cadastro de benefícios assistenciais”.

Entre esses pagamentos indevidos, está a distribuição do auxílio emergencial a 79 mil militares, segundo o vice-presidente do TCU, ministro Bruno Dantas. “No início do pagamento do Auxílio Emergencial, a lista dos beneficiários estava disponível apenas para o Ministério da Cidadania. O TCU identificou, logo no primeiro mês, mais de 79 mil militares que recebiam indevidamente o benefício. Um dos critérios de elegibilidade era de que as pessoas fossem desempregadas, então quem era militar não podia receber aquele auxílio”, disse ele, em entrevista coletiva concedida na sede do gabinete de transição, nesta quarta.

Desmatamento

O controle do desmatamento também foi falho durante o governo Bolsonaro, segundo o relatório do TCU. É outra área sensível, já que a pauta ambiental tornou-se protagonista nas relações comerciais, diplomáticas e políticas entre os países. E Lula disse, em discurso na quarta, que o assunto será tratado pelo primeiro escalão de seu governo, inclusive por meio da cobrança do cumprimento de metas pelos países desenvolvidos, os maiores responsáveis pela degradação do clima, segundo o IPCC, da ONU.

Em 2021, segundo o relatório, a área desmatada foi de 13 mil quilômetros quadrados, quase o triplo dos 4,5 mil quilômetros quadrados registrados em 2012.

De acordo com o TCU, os planos de fiscalização não têm “elementos fundamentais”, não existe “definição clara das competências dos principais atores envolvidos na formulação e coordenação da política, além de redução, ao longo do tempo, da participação das partes interessadas nessa política” e o Ibama teve sua capacidade de fiscalização reduzida ao longo dos anos.

De acordo com o TCU, o desmatamento na Amazônia Legal diminuiu entre 2004 e 2012, mas depois voltou a crescer. Mas esse crescimento foi recorde entre 2019 e 2021. Em 2021, segundo o relatório, a área desmatada foi de 13 mil quilômetros quadrados, quase o triplo dos 4,5 mil quilômetros quadrados registrados em 2012.

O relatório aponta ainda que 44% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa em 2018 vieram das mudanças de uso da terra, sobretudo do desmatamento na Amazônia e no Cerrado, segundo levantamento do Observatório do Clima.

“A grilagem de terra, que anda lado a lado com o processo de desmatamento, tem como efeitos a violência no campo, devido a conflitos pela propriedade da terra, e perda de patrimônio nacional”, conclui o relatório.

Orçamento secreto

O relatório do TCU também menciona, ainda que de forma indireta, o chamado orçamento secreto. É um mecanismo de destinação de dinheiro da União por parlamentares a estados e municípios sem identificar o nome de quem fez o pedido de envio da verba. O esquema também é chamado de “emendas de relator”, porque são registradas no nome do relator do Orçamento no Congresso.

O TCU aponta risco de fraude, desvio e falta de controle especialmente na Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). A estatal foi criada para tratar da região do Rio São Francisco, no Nordeste. Mas, em 2020, ela teve sua competência ampliada e agora alcança 2.681 municípios em 16 estados. Abrange o equivalente a 36,59% do território nacional e cerca de 90 milhões de pessoas.

A estatal ficou conhecida como território do atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) - o presidente da empresa foi nomeado por indicação dele.

O problema, segundo o TCU, é que a empresa passou a depender da destinação de verbas por meio de emendas parlamentares. Em 2017, 23,75% das despesas da Codevasf vinham dessa forma. Em 2021, esse percentual subiu para 62%.

Em valores, isso significa que, entre 2017 e 2020, a Codevasf recebeu R$ 739,5 milhões de emendas parlamentares. Em 2021, essa cifra foi de R$ 2,1 bilhões.

“O significativo montante de recursos transferidos nos últimos anos fez emergirem riscos associados ao descompasso entre o volume de recursos recebidos e a capacidade institucional da empresa para adequadamente executá-los e fiscalizá-los”, diz o relatório do TCU. “Diante do grande quantitativo de doações e obras, da abrangência geográfica em que a Codevasf atua e da pouca ingerência da empresa pública quanto à execução dessas ações, resta dúvida quanto à capacidade da companhia de fiscalizar a distribuição dos bens doados e a execução de serviços contratados.”

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Pedro Canário

Repórter de Política da Bloomberg Línea no Brasil. Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero em 2009, tem ampla experiência com temas ligados a Direito e Justiça. Foi repórter, editor, correspondente em Brasília e chefe de redação do site Consultor Jurídico (ConJur) e repórter de Supremo Tribunal Federal do site O Antagonista.