Qual a relação entre o colapso da FTX e a pandemia?

Uma população inebriada pelos auxílios e estímulos monetários durante a pandemia injetou muito dinheiro no setor de cripto

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Bloomberg Opinion — Quando historiadores analisarem a espetacular ascensão e queda do mercado de criptomoedas, eles concluirão que isso não teria acontecido sem a pandemia. E essa conclusão é correta.

Em 2020, quando boa parte do mundo estava em lockdown e as economias estavam fechadas devido à disseminação da covid-19, os ativos financeiros começaram um rali espetacular que se estendeu até 2021. Foi algo que até especialistas tiveram dificuldades para explicar. No final das contas, eles acabaram atribuindo o evento ao fato de que havia muito dinheiro pelo sistema financeiro global. Parece uma explicação trivial, mas não deixa de ser verdade.

A oferta combinada de dinheiro dos Estados Unidos, da China, da zona do euro, do Japão e de outras oito grandes economias desenvolvidas aumentou em US$ 21,5 trilhões em 2020 e 2021 e chegou a um recorde de US$ 102,3 trilhões, de acordo com dados compilados pela Bloomberg. Dito de outra forma, foi criado mais dinheiro em 2020 e 2021 do que nos sete anos anteriores combinados. Esse aumento sem precedentes teve duas fontes: programas generosos de gastos governamentais destinados a apoiar a economia durante pandemia; e políticas de bancos centrais que essencialmente imprimiram dinheiro para injetá-lo diretamente no sistema financeiro a fim de evitar o colapso.

Em retrospectiva, é evidente que os governos e os bancos centrais reagiram exageradamente. O sistema financeiro ficou sobrecarregado com dinheiro em um período de tempo notavelmente curto. Era como se novos ativos tivessem que ser inventados para absorver todo o dinheiro novo, principalmente com títulos que não pagavam nada e ações com preços historicamente altos. O mundo dos criptoativos se tornou uma válvula de escape. O número de moedas digitais disparou, passando de menos de 3 mil ao final de 2019 para cerca de 10 mil no início de 2022, de acordo com a empresa de pesquisa Statista. O valor do mercado criptográfico passou de menos de US$ 200 bilhões para US$ 3 trilhões. O dinheiro inundou o espaço, mesmo a tecnologia tendo pouco uso prático além de pura especulação. Não é possível entrar em qualquer restaurante, concessionária de carros ou loja de departamentos e pagar com bitcoin (BTC). Esse dia pode chegar, mas vai demorar.

Os engenheiros financeiros não pararam por aí. Eles logo inventaram o token não fungível (NFT), um primo das criptomoedas. Segundo a Bloomberg News, os NFTs são essencialmente certificados digitais de autenticidade. Um NFT é um identificador único e insubstituível criado por um algoritmo: um código de barras distinto para uma obra de arte ou item colecionável digital. Um NFT ajuda a resolver um problema que há muito assola os artistas digitais – como criar escassez para um item que pode ser infinitamente reproduzido.

Assim como as criptomoedas, o mercado de NFTs decolou. O volume de trading bateu os US$ 17,6 bilhões no ano passado – um aumento de 21.000% em comparação com 2020, segundo o site Nonfungible.com. Os investidores ficaram loucos por NFTs como Bored Apes, macacos entediados, CryptoKitties e Pudgy Penguins. O preço para aderir ao Bored Ape Yacht Club ao comprar um NFT de uma imagem de um macaco chegou a US$ 420.430. O empresário de cripto Justin Sun pagou meio milhão de dólares por uma imagem de uma rocha com olhos de laser.

O frenesi de cripto não devia ser surpresa para ninguém. Foi o ápice de anos de desencontro nas políticas entre as autoridades monetárias e fiscais em todo o mundo.

Ao saírem da crise financeira de 2008, os governos focaram em grande parte na austeridade para reduzir a pesada carga da dívida, deixando os bancos centrais para alimentar a recuperação do que foi a pior crise desde a Grande Depressão de 1929.

Os bancos centrais decidiram que não tinham outra escolha senão recorrer a medidas drásticas para evitar que suas economias entrassem em recessão e evitar a deflação. Assim, eles fixaram as taxas de juros em valores próximos a zero – ou até mais baixos, em alguns casos – e iniciaram uma política de flexibilização quantitativa. Sob essa política, injetaram dinheiro diretamente no sistema financeiro, comprando ativos como títulos do governo para evitar que as taxas de juros do mercado subissem.

Uma vez nesse caminho, não era possível parar, e havia o risco de prejudicar uma recuperação lenta.

É claro que os investidores sabiam disso e e se animaram a pagar preços cada vez mais altos por ativos financeiros porque os bancos centrais não podiam deixar (nem deixariam) os mercados falharem. Os bancos centrais sabiam que estavam limitados. Eles suplicaram aos governos que assumissem parte da responsabilidade, sem sucesso. A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, pressionou abertamente por uma política fiscal mais flexibilizada. O então presidente do Federal Reserve, Ben S. Bernanke, foi “tão agressivo do lado da política monetária” devido à falta de estímulo fiscal, disse Philip Orlando, estrategista-chefe de capital da Federated Investors, à Bloomberg News em 2016.

Quando a pandemia chegou, os bancos centrais não tiveram outra opção senão frear a flexibilização quantitativa. O balanço patrimonial coletivo do Fed, do BCE, do Banco do Japão e do Banco da Inglaterra subiu de cerca de 10% do produto interno bruto combinado de seus países em 2007 para cerca de 35% no início de 2020, segundo dados da Bloomberg. Eles atingiram 59% no pico do final de 2021.

A pandemia forçou os governos a finalmente afrouxarem as políticas.A combinação levou a um frenesi especulativo inegável entre mercados. Os criptoativos, em particular, saltaram. Mas todas essas modas devem acabar, como evidenciado pela falência do império cripto de Sam Bankman-Fried e a espiral descendente do bitcoin, que caiu 75% de seu pico de um ano atrás.

Os governos estão voltando para a austeridade diante do aumento dos preços e os bancos centrais estão apertando a política monetária e diminuindo a oferta de dinheiro para combater taxas de inflação mais altas desde o início dos anos 80.

Isso não quer dizer que os governos e bancos centrais estavam errados em agir rápida e incisivamente para apoiar suas economias e o sistema financeiro global. Imagine a alternativa se eles não o tivessem feito. Poderíamos ter observado um apocalipse econômico. Ao contrário, as modas especulativas da última década que atingiram um pico durante a pandemia e estão causando tantos problemas financeiros provavelmente poderiam ter sido evitados se os bancos centrais não tivessem sido forçados a fazer todo o trabalho pesado após a crise financeira de 2008. Talvez se as autoridades fiscais fizessem sua parte, então os programas de flexibilização quantitativa dos bancos centrais poderiam ter sido muito menores, ajudando a conter bolhas especulativas. Essa é a verdadeira lição a ser aprendida.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Robert Burgess é o editor executivo da Bloomberg Opinion. Anteriormente, foi o editor executivo global responsável por mercados financeiros na Bloomberg News.

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