‘Herança maldita’ exigirá decisões difíceis de Lula, diz Mendonça de Barros

Em entrevista à Bloomberg Línea, economista diz que o presidente eleito terá de construir uma nova regra fiscal com credibilidade

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Bloomberg Línea — O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e sua equipe econômica vão receber uma herança maldita “de verdade” quando assumirem o governo no próximo dia 1º de janeiro, na avaliação do economista José Roberto Mendonça de Barros, sócio e fundador da MB Associados, uma das mais importantes consultorias econômicas do país.

O termo “herança maldita” se refere a uma crítica frequente feita por integrantes do PT no primeiro governo Lula (2003 a 2007) ao se referir à política econômica herdada do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC).

Em entrevista à Bloomberg Línea, Barros diz que agora, durante a transição de governo, será possível ter uma dimensão real das despesas que terão de ser incluídas no Orçamento de 2023 e que estavam fora da conta do governo. Entre elas, estão a manutenção do Auxílio Brasil no valor mínimo de R$ 600 e outras promessas de campanha de Lula, como o reajuste do salário mínimo acima da inflação, bem como renúncias fiscais feitas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).

Uma das decisões mais difíceis de Lula, segundo Barros, será definir o que fazer sobre a isenção de impostos federais sobre combustíveis que, sozinha, representa uma renúncia de cerca de R$ 50 bilhões.

Assim como outros economistas do mercado financeiro, Barros acredita que o novo governo Lula precisará de uma espécie de “licença” (waiver) para acomodar despesas que não estavam previstas e que podem estourar o limite da regra do teto de gastos.

Segundo o economista, mais importante do que definir os nomes da nova equipe econômica, o desafio do governo Lula será ter uma nova regra fiscal com “credibilidade” e que indique um equilíbrio fiscal sustentado no longo prazo.

“O mercado fica desesperado para saber qual é a escalação [da equipe ministerial]. Mas o mais importante é o conteúdo da proposição. É montar um conjunto de propostas para tornar viável algum desempenho não explosivo no Orçamento do ano que vem e, ao mesmo tempo, desenvolver e propor uma regra fiscal e outras ações que permitam a retomada sustentada do crescimento a partir de 2024, 2025, 2026″, afirma Mendonça de Barros, que foi secretário de política econômica do Ministério da Fazenda no primeiro governo FHC, entre 1995 e 1998.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada para fins de clareza:

Bloomberg Línea: Quais são os desafios econômicos que o governo eleito do presidente Lula vai enfrentar?

José Roberto Mendonça de Barros: Existem dois problemas distintos que precisam ser resolvidos simultaneamente para que esse programa dê certo. O primeiro é em torno do Orçamento de 2023.

Neste ano, a política fiscal foi submetida ao projeto de reeleição de uma forma populista como nunca houve antes. Existem dúvidas sobre qual é o valor que isso representa. Tem números que vão de R$ 100 bilhões a R$ 400 bilhões. Coloca uma pressão para o ano que vem de despesas postergadas, necessárias, indispensáveis que estão fora do Orçamento. E uma boa parte delas está fora do teto que, bem ou mal, ainda é a regra vigente.

Não tem como resolver isso instantaneamente. Vai ter que ter um waiver, uma licença de no mínimo R$ 100 bilhões, além do que seria o teto. Se não, não tem como fazer isso.

O segundo problema é que estamos há mais de uma década sem crescimento. Não é um problema deste governo que está terminando. Começou em 2014. Mas mesmo neste governo: se 2022 mostrar um crescimento do PIB que está projetado no Focus, pouco acima de 2,5%, a renda per capita de 2019 a 2022 terá crescido só 0,4% ao ano. É nada.

Antes disso foi pior. No período da Dilma foi negativo. E não é casual que vimos um aumento visível na pobreza, na desigualdade. A demanda mais relevante é a retomada sustentável do crescimento.

O mercado fica desesperado para saber qual é a escalação [da equipe ministerial]. Mas o mais importante é o conteúdo da proposição. É montar um conjunto de propostas para tornar viável algum desempenho não explosivo no Orçamento do ano que vem e, ao mesmo tempo, desenvolver e propor uma regra fiscal e outras ações que permitam a retomada sustentada do crescimento a partir de 2024, 2025, 2026.

É o desafio fundamental que está se colocando. É possível de ser enfrentado com sucesso, mas não será fácil. Esse é o interesse do resto do mundo, dos mercados, e terá de ser definido nos próximos meses.

Qual seria uma regra fiscal nova adequada na visão do senhor?

Mais do que adequada, ela tem que ser vista como crível. Pode ser muito sofisticada. Mas se for uma ‘banda hexagonal exógena’, alguma coisa exótica, não vai dar certo. Pode ser uma regra de superávit primário. Pode-se tentar uma forma de se recuperar o próprio teto. O importante aqui não é a regra em si, mas a credibilidade da regra.

Os mercados aqui e lá fora são muito pragmáticos. O objetivo da regra fiscal é não deixar a relação dívida/PIB sair do controle. É isso que tem que ter presente. É o que torna a rolagem da dívida uma coisa razoável. Tivemos um exemplo recentemente que foi o naufrágio da Liz Truss, a primeira-ministra britânica. O naufrágio foi em 24 horas. Ela propôs um déficit sem funding. O mercado viu como impossível e aí, acabou. Não teve jogo.

Dito isso, não vai eliminar decisões difíceis. Por exemplo, os impostos federais sobre combustíveis foram zerados até o fim do ano. Como vai ficar isso para o ano que vem? No caso dos impostos estaduais, depende do Supremo. Mas também está em jogo.

A proposta orçamentária enviada pelo governo Bolsonaro prevê a isenção dos impostos federais no ano que vem.

Pois é. Mas aí dá aquele buraco. Só isso são R$ 50 bilhões. E também tem que ver como vai fazer. O que é certo é que, além de propor uma regra fiscal, há que se propor uma licença. Porque não dá para fazer o teto a seco. O governo Lula terá que avaliar qual é o volume dessa licença e o que tem que ser voltado atrás em termos de impostos, benefícios, para poder fechar essa conta. Esse é o desafio imediato, todo mundo está de acordo. E esse é o desafio do ano.

Como construir essa credibilidade agora?

O Brasil já mostrou que se tiver o mínimo de credibilidade é possível ir adiante aos poucos. Claro que vai depender do presidente Lula essa construção. Mas não acho impossível.

Lembrando que a herança vai ser maldita mesmo. Da outra vez [no primeiro governo Lula], era uma conversa mole. Desta vez, é de verdade. A herança é uma herança muito ruim. A facilidade com que se baixou impostos. Acho uma temeridade. O IPI também foi baixado.

É fácil ganhar aplauso de empresário. Baixa o imposto. Agora, isso foi feito num período de crescimento enorme da arrecadação que não deve se repetir. É um consenso universal. O cenário internacional no ano que vem será muito difícil. As commodities vão cair de preço. O comércio internacional vai ser mais restrito. E não vai ter a fenomenal base de arrecadação, quando o valor de venda das commodities em reais explodiu.

Eu me aventuraria a dizer que os mercados terão boa vontade se o programa for minimamente bem organizado por uma pessoa com credibilidade, e que será adequadamente discutido no Congresso para que não tenha um problema na tramitação.

Como equilibrar o objetivo de manter a responsabilidade fiscal e fazer investimentos para um crescimento mais sustentado?

O governo eleito poderá fazer pelo menos três coisas que contribuem para uma melhora no ambiente econômico e até dos investimentos privados.

A primeira delas é uma redução drástica de toda atividade ilegal da floresta amazônica e fazer uma política ambiental que permita retomar o diálogo do governo brasileiro com os governos do mundo como um todo.

Uma proposta que não só nos tire dessa situação de pária do ponto de vista de política externa, mas que evite restrições sobre as exportações brasileiras, cada vez mais concretas. E que permita liberar um volume grande de financiamento para projetos no Brasil.

O primeiro indicador disso é a Noruega dizendo que vai liberar de novo recursos que ficaram bloqueados desde o início do governo. É perfeitamente plausível e viável que a gente tenha um aumento de investimentos de empresas que praticam princípios do ESG a partir do ano que vem. Isso não exige reforma no Congresso e não exige recursos fiscais.

Além disso, logo de partida, nós poderemos ter pelo menos mais duas coisas. Um Ministério da Educação que seja decente. E uma proposição construtiva na Ciência e Tecnologia, inclusive evitando o sucateamento intencional das universidades, especialmente as federais.

Sem educação e sem ciência não tem desenvolvimento. O próprio agronegócio é um exemplo nítido disso. A melhoria na educação, na ciência e tecnologia, e no meio ambiente em geral, e em particular a questão da Amazônia, permite fazer essa descompressão. Traz uma postura internacional construtiva e atrai investimentos.

Quais são as lições que o governo Lula poderia tirar de erros da condução da política econômica, que o próprio PT cometeu?

O mais importante, e esse vai ser um grande teste, é não repetir o que foi feito a partir de 2009, 2010, com a chamada “Nova Matriz Econômica”. Essa é a mãe de todos os erros que o PT cometeu. Aquela visão de que o Estado é o puxador de crescimento. De campeões nacionais. Protecionismo exagerado. Expansão de gastos públicos pensando que o aumento de arrecadação cobrirá as despesas. Não cobre. Nunca cobre. Abriu um rombo que não teve tamanho. Aí veio a inflação. A história é conhecida.

O Estado sempre tem um papel relevante na economia. Mas não dá, ao meu juízo, para repetir a ideia de que o Estado vai fazer tudo, como na Nova Matriz Econômica. Se tiver na proposição que virá qualquer similitude vai começar muito mal. Não dá para passar perto de um negócio desses. E espero que isso seja absolutamente claro.

Durante a campanha, o senhor viu a sinalização de que isso não vai se repetir?

Durante a campanha pouco se falou. Uma característica dessa campanha é que do ponto de vista de conteúdo, pouco se discutiu. Por isso que está todo mundo de olho no que vai ser dito. Não pode demorar muito para ter nomes e um mínimo de propostas que não soe como generalidade. Até porque a posse é logo no começo de janeiro. Tem que fazer uma transição, mas uma transição bastante rápida.

Do ponto de vista político, como o sr. analisa a vitória do presidente Lula no segundo turno das eleições?

Quando começou a campanha, a proposta do entorno do PT e do presidente Lula era de concorrer com uma coalizão de esquerda. No meio do caminho e, em particular depois do primeiro turno, houve uma migração para uma coalizão de centro-esquerda.

Isso não partiu do presidente. Foram as forças de centro, da sociedade civil, que perceberam a importância de reforçar uma proposta democrática. Houve adesão dos mais variados grupos da sociedade em direção a essa candidatura, de modo que mudou a natureza da proposta.

É uma coalizão de centro-esquerda que tem como principal objetivo a manutenção intacta das regras democráticas. Nada simboliza mais isso do que a adesão da Simone Tebet e o papel que ela teve. Abre uma oportunidade de ter um governo reunindo os grupos típicos da chamada Nova República, aquele que veio logo depois da Constituição de 1988, com uma geração nova. A Simone é apenas um dos exemplos. O Eduardo Leite, e assim sucessivamente.

Só o futuro vai dizer o que virá. Mas, desde que essa coalizão se traduza numa plataforma razoável, tem muita possibilidade de termos um governo de transição, e de trazer de volta a possibilidade de crescimento sustentado.

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