Da prisão para a vitória nas urnas: a jornada de Lula para o 3º mandato

Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil no segundo turno, realizado neste domingo (30), com mais de 60 milhões de votos dos brasileiros

Maria de Jesus Oliveira da Costa, conhecida como Tia Zelia, em seu restaurante em Brasília: apoiadora de Lula nos momentos mais difíceis do ex-presidente (Arthur Menescal/Bloomberg)
Por Simone Preissler Iglesias
01 de Novembro, 2022 | 08:32 PM

Bloomberg — Durante os dias mais sombrios do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma de suas cozinheiras favoritas viajou 1.200 quilômetros de Brasília até Curitiba, onde ele estava preso, para lhe preparar uma rabada.

Maria de Jesus Oliveira da Costa, de 68 anos, conhecida como “Tia Zelia”, teve que pagar um gerente de hotel em Curitiba para usar a cozinha para preparar o prato. Então, ela enviou a refeição pronta em uma lancheira para a cela do ex-presidente.

“Eu não queria vê-lo na cadeia”, disse Zélia em seu simples restaurante próximo ao palácio presidencial em Brasília, enquanto atendia às mesas e conversava com os clientes. “Mas eu enviei uma carta junto com a comida.”

Demonstrações de solidariedade de apoiadores como Zélia, muitos dos quais montaram uma vigília fora da prisão, sustentaram Lula durante seu período encarcerado, ajudando-o a superar a situação e permitindo que ele lançasse sua candidatura para reconquistar a presidência.

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Com sua vitória no segundo turno no domingo (30) sobre o atual presidente Jair Bolsonaro, Lula, de 77 anos, está pronto para voltar à liderança da maior economia da América Latina, tendo conseguido um dos mais espetaculares retornos políticos da história do Brasil.

No entanto, a pouca diferença de Bolsonaro – menos de dois pontos percentuais – mostra a profundidade dos valores conservadores que permeiam o Brasil, uma realidade que Lula não pode se dar ao luxo de ignorar. A questão é como sua experiência moldará sua resposta aos assustadores desafios de um país muito diferente daquele que ele liderou pela primeira vez há duas décadas.

Não há dúvida de que os 580 dias que Lula passou atrás das grades em 2018 e 2019 o marcaram para toda a vida. Quando o país virou as costas aos 14 anos de um governo de esquerda e elegeu Bolsonaro, ex-capitão de extrema-direita, os amigos de Lula temiam por sua saúde mental.

Os piores momentos trouxeram perdas. Em quatro meses de encarceramento, o ex-presidente perdeu um velho amigo, um irmão e um neto.

“Isso o afetou muito”, disse Julio Bersot, de 70 anos, amigo próximo de Lula há cerca de quatro décadas.

Em seus primeiros dias na prisão, ele recebeu um livro de mil páginas sobre a colonização portuguesa e a escravidão no Brasil, apesar de não ler muito. “Quando recebi o livro, me perguntei quanto tempo eu ficaria na cadeia”, disse Lula nas redes sociais no ano passado.

Enquanto estava preso, Lula leu 41 livros, em sua maioria biografias de líderes, incluindo Nelson Mandela, Fidel Castro, Hugo Chávez e Carlos Marighella. Ele também recebeu 25 mil cartas enviadas por amigos, fãs e sua futura esposa, Janja.

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“Da vigília à leitura de dezenas de livros a amigos que não o abandonaram e a Janja: tudo isso foi fundamental para Lula”, disse Bersot.

De volta ao Palácio do Planalto, ele vai herdar um Brasil muito diferente daquele que governou. O país está profundamente polarizado, marcado por políticas de identidade e desigualdade econômica que se disseminaram durante a calamidade da pandemia.

Ainda assim, a jornada de Lula é extrema; às vezes, sua história parecia boa demais para ser verdadeira. Pobre imigrante do Nordeste que, quando menino, trabalhava como engraxate, e que perdeu um dedo operando uma máquina de fábrica, ele chegou a se tornar o único presidente brasileiro da era democrática a ter um passado humilde.

“Este é o cara, eu amo este cara”, disse Barack Obama a seu homólogo brasileiro na reunião do Grupo dos 20 em Londres em 2009, chamando Lula de “o político mais popular do mundo”.

Não foi totalmente uma piada: Lula deixou o governo em dezembro do ano seguinte com aprovação em torno de 90%, tendo preparado Dilma Rousseff como sua sucessora. Ela se tornaria a primeira mulher presidente do Brasil.

Depois disso, as coisas desandaram. O boom das commodities que havia impulsionado o crescimento durante a era Lula se dissipou e o país afundou em uma crise política em meio à Operação Lava Jato. Dilma sofreu impeachment e foi destituída do cargo em 2016.

A investigação chegou a Lula no mesmo ano. Ele foi acusado de corrupção e lavagem de dinheiro e condenado a 12 anos de prisão por Sergio Moro, que acabou atuando como ministro da Justiça no governo Bolsonaro.

Parecia ser o fim da história, mas, na verdade foi o início de um novo capítulo.

No dia em que o ex-presidente foi preso, centenas de pessoas se reuniram do lado de fora do prédio da polícia onde ele estava sendo mantido em um bairro residencial de classe média na cidade de Curitiba, cantando “Lula livre!”

A partir daquele momento, muitos decidiram que só iriam embora quando ele saísse. Formou-se um acampamento administrado por sindicatos de trabalhadores e outros movimentos. Lula podia ouvir três cânticos diários de sua cela: “bom dia, presidente”, “boa tarde, presidente”, e “boa noite, presidente”.

“Algumas pessoas pensam que eu odeio Curitiba porque fiquei preso aqui”, disse Lula em um evento de campanha na cidade em setembro. “Tenho gratidão por esta cidade e afeto pelos homens e mulheres que não mediram esforços para continuar pedindo minha liberdade nos 580 dias em que estive aqui.”

Entre as centenas de apoiadores acampados estava uma socióloga e membro do Partido dos Trabalhadores chamada Rosângela da Silva, conhecida como Janja.

A esposa de Lula durante 43 anos, Marisa Letícia, havia morrido de um derrame aos 66 anos de idade durante a investigação. Ele estava viúvo havia mais de um ano quando foi preso.

“Escrevi cartas de amor para Janja e deixei o ódio sair do meu peito”, disse ele em uma entrevista de rádio local em julho, dois meses depois de se casarem. “Agora eu sou todo amor.”

O amor sozinho não será suficiente para a luta política à frente. Lula foi libertado em novembro de 2019 e viveu como eremita com Janja longe dos holofotes até 2021, quando sua condenação foi anulada pelo STF, liberando-o para concorrer às eleições.

No cargo, ele enfrentará um congresso hostil, enquanto os três estados mais populosos, incluindo São Paulo, serão governados pela oposição. Em todo o país, uma parte da população pensa que o ex-e-futuro-presidente é corrupto. Suas políticas são vagas, além do desejo de justiça social, e se apoiam fortemente em suas conquistas passadas com pouco a dizer sobre um novo governo. No entanto, ele precisa cumprir suas promessas de campanha sobre benefícios sociais e tentar superar a divisão política se quiser ter alguma chance de sucesso.

O próximo governo terá que ser uma coalizão que restaure o Brasil “à normalidade da democracia”, com a inclusão social no centro de suas políticas econômicas, disse Edinho Silva, chefe de campanha de Lula, em entrevista.

“Lula sabe que o Brasil está passando por um momento complexo que exigirá uma ampla coalizão que mobilize todo o campo democrático”, disse Silva. “Ele vai liderar, negociar e construir esta coalizão.”

Isso é uma mudança em relação à imagem de sua juventude, quando lutou contra a ditadura militar liderando greves trabalhistas e fundou o Partido dos Trabalhadores sob a bandeira de colocar “ética na política”. Foram necessárias três corridas presidenciais e 12 anos para finalmente conseguir o cargo.

Foi o tempo que ele e seu partido levaram para entender que precisavam adotar uma postura mais ponderada para dispensar as preocupações dos investidores e ser eleitos. No cargo, ele manteve os mercados a bordo enquanto trabalhava para os mais pobres. É uma indicação de que ele manterá a coalizão moderada forjada durante a campanha em seu terceiro mandato.

“Lula passou por glória e desgraça e sabe que não pode liderar o governo somente com amigos de esquerda”, disse Adriana Dupita, economista brasileira da Bloomberg Economics. “Haverá um compromisso de se virar para o centro.”

Lula deixou claro que governará o Brasil apenas pelos próximos quatro anos. Alguns no PT acreditam que Janja, de 55 anos, que foi uma forte presença durante a campanha, será sua sucessora em 2026.

Até lá, veremos um Lula mais velho e mais sábio que está impaciente para fazer as coisas e que tem a intenção de moldar seu legado para sempre.

“É um Lula diferente”, disse Thomas Traumann, consultor de comunicação do Rio de Janeiro que já aconselhou ex-presidentes, incluindo Dilma. “Ele sabe que é sua última chance, este é um Lula que terá apenas mais um mandato.”

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