Como fica a transição de governo sem o apoio de Bolsonaro? O que diz a lei

Legislação regulamenta o processo e prevê processos e punição para servidores que eventualmente dificultarem a transmissão de informações; presidente segue em silêncio

Palácio do Planalto em Brasília, sede do Executivo e local de trabalho do presidente da República
01 de Novembro, 2022 | 07:50 AM

Bloomberg Línea — Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no último domingo (30), o próximo passo previsto na democracia brasileira é o chamado “governo de transição”. É o período em que o governo que vai deixar o cargo passa informações, documentos e dados ao que virá. E o presidente eleito escolhe uma equipe para trabalhar em contato com a pessoa indicada pelo ocupante do cargo que vai sair.

Mais de 24 horas depois que Lula foi declarado eleito pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o presidente Jair Bolsonaro (PL) não se pronunciou sobre a derrota nem ligou para o vencedor para reconhecer o resultado das urnas.

Enquanto o presidente não se pronuncia, duas importantes autoridades do governo deram início nesta segunda-feira (31) um passo na direção de uma transição pacífica: o vice-presidente, o general Hamilton Mourão (Republicanos), conversou por telefone com o vice-eleito, Geraldo Alckmin (PSB). E o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, conversou com representantes da equipe de Lula. Ambos, Mourão e Nogueira, se prontificaram a liderar o processo de transição com o novo governo eleito pelos brasileiros.

O que diz a lei

A transição de governo não é apenas uma tradição da democracia. Desde 2002, é lei. O presidente eleito tem direito de receber informações e documentos do governo que está de saída, sob pena de responsabilização dos que colaborarem para algum tipo de sabotagem, nos termos da Lei 10.069/02, explicou Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP.

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“Se tem uma lei que diz que o acesso a esses dados é um direito de quem for eleito, isso é muito fácil de ser garantido por meio de uma ação judicial”, disse Mafei, em entrevista à Bloomberg Línea.

Rafael Mafei é professor de História das Ideias Políticas do Brasil e autor do livro Como Remover um Presidente (editora Zahar). É um estudo político, jurídico e histórico sobre o processo de impeachment tanto no Brasil quanto em outros países, especialmente o Reino Unido, que deu origem ao processo de afastamento de um governante, e os Estados Unidos. O livro também mostra como funciona a relação entre o mundo jurídico e a política, justamente o caso da regulação do “governo de transição”.

Poderes limitados

O texto garante ao presidente eleito o direito de nomear 50 assessores e um coordenador da transição para trabalhar junto com a Casa Civil da Presidência da República nesse processo. E o governo pode nomear um “ministro extraordinário” para a função ou designar o chefe da Casa Civil.

O trecho mais importante da lei é o artigo 3º: “Os titulares dos órgãos e entidades da administração pública federal ficam obrigados a fornecer as informações solicitadas pelo coordenador da equipe de transição, bem como a prestar-lhe o apoio técnico e administrativo necessários aos seus trabalhos”.

Essa obrigação limita o raio de ação de Bolsonaro, na avaliação de Rafael Mafei.

“A administração pública é composta por milhares de pessoas, e só o Bolsonaro é presidente da República. A imensa maioria é de servidores. E eles sabem que não têm as proteções que o presidente tem.”

“Um funcionário que, por interesse ou ideologia, se recuse a cooperar e fornecer dados, se sujeita desde processos administrativos disciplinares, que podem gerar consequências bastante desagradáveis, como demissão, suspensão e pagamento de multa, até processos criminais, se for o caso de prevaricação, desobediência a ordem judicial etc.”, explicou.

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O presidente Jair Bolsonaro vota na Escola Municipal Roda da Fonseca, na Vila Militar, no Rio de Janeiro (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Existe ainda uma possibilidade de que documentos sejam descartados e registros sejam apagados dos arquivos do Planalto.

Mas isso deixaria rastros, afirma o professor. “Para que algo desse tipo fosse feito, o presidente precisaria contar com a cooperação de alguém de dentro da máquina pública, e eu duvido que alguém vá querer se arriscar a fazer isso para bajular um presidente que daqui dois meses nem cargo vai ter e ainda pode estar inelegível.”

Fluxo de informações

A Lei 10.609/2002 teve origem na Medida Provisória 76/2002, editada em 25 de outubro de 2002 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Dois dias depois, aconteceu o segundo turno das eleições daquele ano, quando Lula foi eleito presidente pela primeira vez, derrotando José Serra (PSDB), o candidato do governo.

Fernando Henrique Cardoso passa a faixa de presidente a Lula, em 1 de janeiro de 2003: em outubro de 2002, editou Medida Provisória para garantir que primeira transição entre governos eleitos desde o fim da ditadura fosse tranquila

O objetivo era evitar que adversários políticos atrapalhassem o processo de transferência de poder, dado que, dias antes, estariam em trincheiras opostas nas eleições. E FHC sabia que passaria a faixa de presidente para Lula, já que todas as pesquisas indicavam vitória relativamente tranquila do petista sobre o tucano. No fim do segundo turno, Lula teve quase 20 milhões de votos a mais que Serra.

Segundo a exposição de motivos da MP, “estudos conduzidos pela Casa Civil” mostraram a necessidade de se “institucionalizar o processo de transição governamental”.

“O fluxo de informações durante o período de transição é especialmente crítico e a preparação antecipada de conjunto de informações necessárias ao trabalho da equipe de transição vem sendo providenciada pela Casa Civil da Presidência da República e pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em atuação conjunta com os demais Ministérios”, aponta o documento.

Situação peculiar

Naquele ano aconteceu a primeira transição entre dois governos eleitos e de “lados opostos” desde a redemocratização, em 1985. O presidente anterior a FHC foi Itamar Franco (MDB), que só assumiu o cargo porque Fernando Collor, eleito em 1989, foi afastado por impeachment sob acusações de corrupção.

Fernando Henrique havia sido ministro da Fazenda de Itamar e, antes de fundar o PSDB junto com outros correligionários, foi senador pelo MDB e integrou a Assembleia Constituinte. Não era exatamente de oposição a Itamar, portanto.

Antes disso, quando a ditadura acabou e o governo saiu das mãos do general João Figueiredo para um civil, também não houve transição. O presidente eleito naquela ocasião havia sido Tancredo Neves (MDB), mas ele morreu antes de tomar posse, e quem virou presidente foi José Sarney (MDB).

Hoje liderança história do MDB, na época Sarney era um recém-convertido ao partido, que fizera oposição consentida ao regime militar. O ex-presidente, que antes do golpe de 1964 foi da chamada “Bossa Nova da UDN”, passou os anos 1960, 1970 e parte dos 1980 na Arena, o partido do governo militar.

General João Figueiredo (ao centro, de óculos) caminha até o Palácio do Planalto no dia de sua posse, 15 de março de 1979. Antes de deixar o governo, em 1985, pediu à população: "Me esqueçam!"

A conversão de Sarney ao MDB para ser vice de Tancredo irritou tanto os militares que Figueiredo não quis passar a faixa de presidente da República ao primeiro civil a governar o país em 20 anos. Preferiu sair pelos fundos do Palácio do Planalto.

Como vai se dar a transição do governo Bolsonaro para o governo Lula ainda é incerto e objeto de muita especulação em Brasília. O petista disse no domingo à noite, em discurso na Avenida Paulista, que era “preciso saber se o presidente que nós derrotamos vai permitir que haja uma transição para que a gente tome conhecimento das coisas”.

Mas, segundo o site Metrópoles, já circula a informação de que Bolsonaro não quer passar a faixa a Lula. Pretende escalar seu vice-presidente, o general Hamilton Mourão (PRTB), eleito senador, para a tarefa.

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Pedro Canário

Repórter de Política da Bloomberg Línea no Brasil. Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero em 2009, tem ampla experiência com temas ligados a Direito e Justiça. Foi repórter, editor, correspondente em Brasília e chefe de redação do site Consultor Jurídico (ConJur) e repórter de Supremo Tribunal Federal do site O Antagonista.