Vitória de Lula indica mudança na relação do Brasil com a América Latina

Presidente eleito promete priorizar a relação com os países da região em favor de uma maior integração econômica, como fez em seus governos de 2003 a 2010

Lula e Alberto Fernández, presidente da Argentina, em encontro em 2021
31 de Outubro, 2022 | 10:20 AM

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Bloomberg Línea — A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno aponta para uma mudança na forma como o Brasil se relaciona com os seus vizinhos e parceiros mais próximos da América Latina, de acordo com especialistas ouvidos pela Bloomberg Línea.

Um dos primeiros indícios vem dos cumprimentos que Lula recebeu dos principais líderes da região. “Parabéns, Lula! Sua vitória abre um novo tempo para a história da América Latina. Um tempo de esperança e de futuro que começa hoje mesmos Aqui, tem um companheiro para trabalhar e sonhar alto com a boa convivência de nossos povos”, escreveu o presidente da Argentina, Alberto Fernández, em mensagem publicada no Twitter.

“Ganhou Lula, bendito povo do Brasil. Haverá igualdade e humanismo”, afirmou o líder mexicano, Andrés Manuel López Obrador.

A visão de Lula sobre o papel do Brasil na América Latina é um dos principais pontos que o diferencia do presidente Jair Bolsonaro, que buscava a reeleição.

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O ex-presidente Lula defende um papel ativo do Brasil no cenário global e um relacionamento estreito com os países do Hemisfério Sul, como da América Latina e da África.

“Defender nossa soberania exige recuperar a política externa ativa e altiva que nos alçou à condição de protagonista global”, diz o programa de governo do petista, citando um termo que marcou a gestão do ex-chanceler Celso Amorim (política externa ativa e altiva), à frente do Itamaraty.

O ex-presidente propõe a volta de políticas que marcaram seus dois mandatos, entre 2003 e 2010, como a busca por uma maior integração econômica da América do Sul e da América Latina. Lula também pretende fortalecer os organismos regionais, como o Mercosul, os Brics, a Celac e a Unasul, da qual o Brasil se retirou em 2019.

Lula reforçou esses planos no debate na Rede Globo com o presidente Jair Bolsonaro, na noite sexta-feira (28), quando criticou a postura de Bolsonaro na política externa e prometeu que, se eleito, irá voltar a negociar e a conversar com os países da região.

O ex-embaixador Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), avalia que, até a votação, as promessas de Lula no campo da política externa eram genéricas e que só deve ficar claro qual postura ele deve adotar quando definir o seu ministro de Relações Exteriores.

Em relação à América do Sul, o embaixador lembrou que o comércio do Brasil com os países da região é menos relevante do que com a China, os Estados Unidos ou a União Europeia e que seria importante o Brasil ajudar os demais países da região a terem uma economia estável.

“Interessa ao Brasil que todos os países da região cresçam e estejam integrados nesse esforço de desenvolvimento regional”, afirmou, sem se referir ao programa de nenhum dos candidatos.

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No ano passado, as exportações do Brasil para a América do Sul somaram US$ 34 bilhões, menos do que para a União Europeia (US$ 36,5 bilhões), América do Norte (US$ 41,6 bilhões) e Ásia (US$ 130,3 bilhões).

Para o ex-embaixador, a América Latina enfrenta um cenário internacional desafiador, tendo que lidar com as consequências da guerra da Ucrânia, uma desaceleração da economia mundial, uma disputa cada vez mais acirrada entre os Estados Unidos e a China e o aquecimento global, que tende a afetar a produção agrícola brasileira.

“A situação internacional vai obrigar o futuro governo a ter uma atenção maior sobre o que acontece no mundo e as repercussões sobre o Brasil”, disse Barbosa. “O Brasil vai ter que olhar para frente, para o mundo que virá aí. Não é olhar para trás. É olhar para o mundo que está se desenvolvendo, e no qual o mundo o Brasil está inserido.”

Isolamento regional

Durante o governo Bolsonaro, o Brasil priorizou a relação com países ricos, principalmente os Estados Unidos no governo Donald Trump, e com governos alinhados ideologicamente com o presidente, como a Hungria e a Polônia.

Além disso, o Brasil buscou parcerias comerciais em outras regiões do mundo, a exemplo do acordo assinado entre o Mercosul e Singapura, em julho. E fez um esforço para que o Brasil ingressasse na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), entidade que promove boas práticas de governança e gestão.

No entanto, a relação com os países da América Latina foi deixada em segundo plano por Bolsonaro, e o próprio presidente não fez esforços para melhorar os laços com os líderes de países vizinhos, de acordo com especialistas.

A vitória de candidatos de esquerda em eleições presidenciais recentes, como na Colômbia, no Chile, no Peru e na Argentina, aumentou o isolamento do Brasil na região. Bolsonaro frequentemente critica outros líderes latino-americanos, em especial o presidente argentino Alberto Fernández.

Para Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard e coordenador do Núcleo América do Sul do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), a relação entre Brasil e Argentina estava no seu ponto mais baixo em dois séculos no governo Bolsonaro.

“O Brasil e a Argentina sempre conseguiram buscar uma cooperação mesmo nos momentos mais difíceis. Hoje a relação está basicamente hibernando”, disse Kalout, em entrevista antes do segundo turno.

“A América do Sul é um espaço geoestratégico que concerne a nossa segurança nacional. Você nunca pode abordar a relação com a região sob o prisma de direita e esquerda. Tem que abordar sobre o prisma do interesse do Estado Brasileiro e do povo brasileiro, independentemente de quem esteja no governo nesses países.”

A retórica negacionista do presidente durante a pandemia de covid-19 e o mau desempenho do governo no combate ao desmatamento na Amazônia também reforçaram o isolamento do Brasil na região.

O país teve uma participação tímida em fóruns multilaterais na região, e o Bolsonaro faltou a encontros de líderes sul-americanos, como a última Cúpula do Mercosul, realizada em julho, e a reunião de presidentes do Prosul (Fórum para o Progresso da América do Sul, em janeiro deste ano.

Em um artigo recente, a pesquisadora Monica Hirst, professora de política internacional na Universidade Torcuato Di Tella, em Buenos Aires, aponta que a política de Bolsonaro é marcada por um “desdém” pelo regionalismo latino ou sul-americano, e que o governo deu continuidade a uma de desconstrução “das iniciativas, projetos e compromissos com o progressismo latino-americano”.

Para Kallout, do Cebri, o isolamento do Brasil na América Latina terá um custo.

“No longo prazo isso cobrará seu preço ao Brasil estrategicamente nas relações internacionais e no contexto regional. Com perda de mercado, perda de influência, perda de posicionamento, de poder de persuasão, distanciamento. E uma inclinação desses países mais para a China ou para os EUA”, disse. É o que Lula, agora eleito, deve buscar evitar.

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Filipe Serrano

É editor sênior da Bloomberg Línea Brasil e jornalista especializado na cobertura de macroeconomia, negócios, internacional e tecnologia. Foi editor de economia no jornal O Estado de S. Paulo, e editor na Exame e na revista INFO, da Editora Abril. Tem pós-graduação em Relações Internacionais pela FGV-SP, e graduação em Jornalismo pela PUC-SP.