Como a escolha do próximo presidente afeta as perspectivas da América Latina

Lula e Bolsonaro têm propostas distintas para a região; para especialistas ouvidos pela Bloomberg Línea, resultado pode significar mudança

Visões diferentes sobre o papel do Brasil na América Latina
30 de Outubro, 2022 | 01:45 PM

Bloomberg Línea — Uma das áreas que diferenciam o presidente Jair Bolsonaro (PL) do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nestas eleições é a política externa, e especialmente a visão de cada um dos candidatos à presidência sobre o papel do Brasil na América Latina.

Lula e Bolsonaro têm propostas distintas para a região. E, segundo especialistas ouvidos pela Bloomberg Línea, a vitória de um ou de outro no segundo turno neste domingo (30) pode significar uma mudança na forma como o Brasil se relaciona com os seus vizinhos e parceiros mais próximos.

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A proposta de Lula

De um lado, o ex-presidente Lula defende um papel ativo do Brasil no cenário global e um relacionamento estreito com os países do Hemisfério Sul, como da América Latina e da África.

“Defender nossa soberania exige recuperar a política externa ativa e altiva que nos alçou à condição de protagonista global”, diz o programa de governo do petista, citando um termo que marcou a gestão do ex-chanceler Celso Amorim (”política externa ativa e altiva”), à frente do Itamaraty.

O ex-presidente propõe a volta de políticas que marcaram seus dois mandatos, entre 2003 e 2011, como a busca por uma maior integração econômica da América do Sul e da América Latina. Lula também pretende fortalecer os organismos regionais, como o Mercosul, os Brics, a Celac e a Unasul, da qual o Brasil se retirou em 2019.

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Lula reforçou esses planos no debate na Rede Globo com o presidente Jair Bolsonaro, na noite sexta-feira (28), quando criticou a postura de Bolsonaro na política externa e prometeu que, se eleito, irá voltar a negociar e a conversar com os países da região.

O ex-embaixador Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), avalia que as promessas de Lula no campo da política externa ainda são genéricas. Para ele, a posição do presidente só deve ficar clara quando Lula, se eleito, definir o nome do seu ministro de Relações Exteriores.

Em relação à América do Sul, o embaixador lembra que o comércio do Brasil com os países da região é menos relevante do que com outros parceiros comerciais como China, Estados Unidos e União Europeia, e que seria importante o Brasil ajudar os demais países da região a terem uma economia estável. “Interessa ao Brasil que todos os países da região cresçam e estejam integrados nesse esforço de desenvolvimento regional”, afirma Barbosa, sem se referir especificamente ao programa dos candidatos.

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No ano passado, as exportações do Brasil para a América do Sul somaram US$ 34 bilhões, menos do que para a União Europeia (US$ 36,5 bilhões), América do Norte (US$ 41,6 bilhões) e Ásia (US$ 130,3 bilhões).

Para o ex-embaixador, a América Latina enfrenta um cenário internacional desafiador, ao lidar ao mesmo tempo com as consequências da guerra da Ucrânia, uma desaceleração da economia mundial, uma disputa cada vez mais acirrada entre os Estados Unidos e a China, e o aquecimento global, que tende a afetar a produção agrícola.

“A situação internacional vai obrigar o futuro governo a ter uma atenção maior sobre o que acontece no mundo e as repercussões sobre o Brasil”, disse Barbosa. “O Brasil vai ter que olhar para frente, para o mundo que virá aí. Não é olhar para trás. É olhar para o mundo que está se desenvolvendo, e no qual o mundo o Brasil está inserido.”

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A visão de Bolsonaro

Durante o governo Bolsonaro, o Brasil priorizou a relação com países ricos, principalmente os Estados Unidos no governo Donald Trump, e com governos alinhados ideologicamente com o presidente, como a Hungria e a Polônia.

Além disso, o Brasil buscou fazer parcerias comerciais em outras regiões do mundo, a exemplo do acordo assinado entre o Mercosul e Singapura, em julho. E fez um esforço para que o Brasil ingressasse na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), entidade que promove boas práticas de governança e gestão.

No entanto, a relação com os países da América Latina foi deixada em segundo plano por Bolsonaro, e o próprio presidente não fez esforços para melhorar os laços com os líderes de países vizinhos, de acordo com especialistas.

A vitória de candidatos de esquerda em eleições presidenciais recentes, como na Colômbia, no Chile, no Peru e na Argentina, aumentou o isolamento do Brasil na região. Bolsonaro frequentemente critica outros líderes latino-americanos identificados com a esquerda, em especial o presidente argentino Alberto Fernández.

Para Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard e coordenador do Núcleo América do Sul do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), a relação entre Brasil e Argentina está no seu ponto mais baixo em dois séculos.

“O Brasil e a Argentina sempre conseguiram buscar uma cooperação mesmo nos momentos mais difíceis. Hoje a relação está basicamente hibernando”, disse Kalout.

“A América do Sul é um espaço geoestratégico que concerne a nossa segurança nacional. Você nunca pode abordar a relação com a região sob o prisma de direita e esquerda. Tem que abordar sobre o prisma do interesse do Estado Brasileiro e do povo brasileiro, independentemente de quem esteja no governo nesses países.”

A retórica negacionista do presidente durante a pandemia de covid-19 e o mau desempenho do governo no combate ao desmatamento na Amazônia também reforçaram o isolamento do Brasil na região.

O país teve uma participação tímida em fóruns multilaterais na região, e Bolsonaro faltou a encontros de líderes sul-americanos, como a última Cúpula do Mercosul, realizada em julho, e a reunião de presidentes do Prosul (Fórum para o Progresso da América do Sul), em janeiro deste ano.

Em um artigo recente, a pesquisadora Monica Hirst, professora de política internacional na Universidade Torcuato Di Tella, em Buenos Aires, aponta que a política de Bolsonaro é marcada por um “desdém” pelo regionalismo latino ou sul-americano, e que o governo deu continuidade a uma de desconstrução “das iniciativas, projetos e compromissos com o progressismo latino-americano”.

Especialistas ouvidos pela Bloomberg Línea não acreditam em uma mudança de postura do governo Bolsonaro se o presidente se reeleger.

O programa de governo do presidente não faz menção direta a uma política voltada para a América do Sul e a América Latina. O texto, de 42 páginas, afirma que, no próximo mandato, “será buscada interação ainda maior com países que defendam e respeitem valores que são caros aos brasileiros e se encaixem no ambiente democrático”.

Além disso, o programa afirma que o Brasil continuará buscando “mercados, fontes de investimento e parcerias de cooperação com países de todo o mundo, sobretudo com os que tenham maior capacidade de contribuir para o desenvolvimento nacional; com aqueles com quem mantemos tradicionalmente fortes laços culturais e históricos; e com nosso entorno geográfico nas Américas e no Atlântico Sul.”

Para Kalout, do Cebri, o isolamento do Brasil na América Latina terá um custo. “No longo prazo, isso cobrará seu preço ao Brasil estrategicamente nas relações internacionais e no contexto regional, com perda de mercado, perda de influência, perda de posicionamento, de poder de persuasão, distanciamento. E uma inclinação desses países vizinhos para a China ou para os EUA”, disse.

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Filipe Serrano

É editor sênior da Bloomberg Línea Brasil e jornalista especializado na cobertura de macroeconomia, negócios, internacional e tecnologia. Foi editor de economia no jornal O Estado de S. Paulo, e editor na Exame e na revista INFO, da Editora Abril. Tem pós-graduação em Relações Internacionais pela FGV-SP, e graduação em Jornalismo pela PUC-SP.