Fabricante de cimentos Lafarge se declara culpada por negociar com o Estado Islâmico

Essa é a primeira vez que uma multinacional é acusada pelos EUA de ajudar terroristas; empresa foi multada em US$ 777,8 milhões

Caso de colaboração com grupo terrorista é inédito nos EUA
Por Patricia Hurtado
18 de Outubro, 2022 | 05:01 PM

Bloomberg — A fabricante de cimentos Lafarge, que uniu ao grupo Holcim em uma fusão em 2015, se declarou culpada das acusações dos Estados Unidos de ter apoiado o grupo terrorista Estado Islâmico e concordou pagar US$ 777,8 milhões em multas e confisco. Segundo a acusação, a empresa, fundada na França, favoreceu o Estado Islâmico na Síria para manter a operação de uma fábrica de cimento tomada pelo grupo terrorista durante a guerra no país, em 2014.

Esta é a primeira vez que uma multinacional é acusada pelos EUA de ajudar terroristas. A vice-procuradora-geral Lisa Monaco disse a conduta da fabricante de cimento francesa é algo inédito no histórico de crimes corporativos em uma entrevista coletiva nesta terça-feira (18).

“No verão de 2014, o mundo assistiu horrorizado ao Estado Islâmico assassinar jornalistas inocentes e trabalhadores humanitários”, disse ela. “Naquele mesmo verão, a Lafarge estava negociando com o Estado Islâmico, garantindo lucros e participação de mercado e financiando a brutalidade do grupo.”

Monaco disse que os pagamentos da Lafarge permitiram que a empresa continuasse a operar uma enorme fábrica no norte da Síria, gerando cerca de US$ 70 milhões em receita. Ela disse que as penalidades impostas à Lafarge devem enviar um sinal às empresas cujas ações potencialmente ameaçam a segurança nacional dos Estados Unidos. Além do terrorismo, Monaco disse que o Departamento de Justiça está igualmente preocupado com a evasão de sanções e crimes cibernéticos.

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‘Acordo com o diabo’

A diretora de sustentabilidade da Holcim, Magali Anderson, entrou com a ação em nome da Lafarge no tribunal federal em Nova York, na terça-feira, reconhecendo a participação da empresa no caso. Breon Peace, procurador dos EUA , disse na entrevista coletiva que a empresa fez um “acordo com o diabo” na Síria que, entre outras coisas, permitiu bloquear remessas de concorrentes turcos.

“Tornar-se parceiro de negócios do EI é extraordinário, e favorecer o EI para prejudicar os concorrentes parece mentira, mas realmente aconteceu”, disse Peace. O procurador disse que o acordo deu a “terroristas que operavam com um orçamento apertado, milhões de dólares” que foram usados “para recrutar membros para fazer guerra contra governos e realizar ataques terroristas brutais em todo o mundo”.

A Lafarge está sob investigação há anos por acusações de que ajudou o Estado Islâmico e outros grupos terroristas ao canalizar dinheiro para eles para manter sua fábrica na Síria funcionando. A empresa também enfrenta acusações criminais na França, e a vice-procuradora-geral Lisa Monaco observou que vários dos executivos envolvidos nos pagamentos foram presos pelas autoridades francesas.

Anderson disse no tribunal que a Lafarge “consciente e voluntariamente concordou em participar de uma conspiração para fazer e autorizar pagamentos” que beneficiava organizações designadas como grupos terroristas pelo governo dos Estados Unidos.

A fabricante de cimentos “aceitou a responsabilidade pelas ações dos executivos envolvidos, cujo comportamento foi uma violação flagrante do código de conduta da Lafarge”, segundo um comunicado da empresa. “Lamentamos profundamente que essa conduta tenha ocorrido e trabalhamos com o Departamento de Justiça dos EUA para resolver esse assunto.”

Anderson disse no tribunal que os responsáveis pelos pagamentos estavam “fora da empresa desde pelo menos 2017″.

‘Compartilhe o bolo’

A Holcim, com sede na Suíça, divulgou um comunicado dizendo que não estava envolvida na conduta e que ex-executivos da Lafarge ocultaram a atividade antes e após comprar a rival francesa em 2015. As negociações da Holcim foram interrompidas na Suíça, mas as ações em Paris caíram 3% depois da divulgação das notícias.

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A fábrica da Lafarge, na fronteira norte da Síria com a Turquia, foi fechada depois que o Estado Islâmico tomou a instalação em setembro de 2014, enquanto funcionários fugiam. Uma investigação interna encontrou “erros significativos de julgamento” depois que dinheiro foi pago a grupos armados sírios para proteger a fábrica. O inquérito desencadeou a saída do diretor-presidente.

A vice-procuradora-geral Lisa Monaco disse na terça que muitas outras empresas “fizeram a escolha certa” e deixaram o norte da Síria quando a área ficou sob controle do Estado Islâmico. Mas a Lafarge “não vacilou” e, em vez disso, trabalhou “com o EI para manter as operações abertas, minar os concorrentes e maximizar a receita”, disse ela. A investigação descobriu e-mails nos quais executivos da Lafarge discutiam como eles poderiam “compartilhar o bolo” com o Estado Islâmico, disse Mônaco.

Embora a Holcim não estivesse envolvida nos pagamentos, Monaco disse que a empresa suíça não realizou a diligência necessária das operações sírias da Lafarge antes da aquisição e não investigou as ações suspeitas até que elas fossem divulgadas publicamente.

Crimes contra a humanidade

Mais tarde na guerra, a instalação foi convertida em uma base estratégica para os militares dos Estados Unidos até que o presidente Donald Trump retirou as forças americanas da Síria.

Em maio, um tribunal francês restabeleceu as acusações de que a Lafarge auxiliou e incitou crimes contra a humanidade por suas supostas ações para manter a usina em operação.

A Lafarge foi inicialmente acusada na França em 2018, mas as acusações foram anuladas depois que a empresa apresentou uma contestação. Mais tarde, o tribunal superior da França confirmou uma suspeita de financiamento do terrorismo contra a empresa e abriu o caminho para a reintegração do julgamento por ajuda e cumplicidade.

Em comunicado, a Lafarge disse que “continua a cooperar plenamente com as autoridades francesas na investigação da conduta e se defenderá de quaisquer ações judiciais que considere injustificadas nos processos franceses”. A vice-procuradora-geral Lisa Monaco disse que nem a Lafarge nem a Holcim cooperaram com os investigadores dos EUA.

A declaração de culpa foi feita perante o juiz do Tribunal Distrital dos EUA, William Kuntz, no tribunal federal do Brooklyn, em Nova York.

— Com ajuda de David Voreacos, Jeremy Hodges e Gaspard Sebag.

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