Bloomberg Opinion — O conhecimento científico está desafiando a sabedoria convencional sobre a fome – agora enquadrando-a como um flagelo que aflige não apenas as pessoas que recebem poucas calorias, mas também aquelas que consomem principalmente açúcar e amido refinado. Sob esta nova luz, as pessoas com o tipo errado de dieta podem sofrer tanto de fome quanto de obesidade.
Essa visão mais precisa cientificamente da fome e da obesidade veio em boa hora. A obesidade afeta cerca de 40% da população dos Estados Unidos, quase um em cada quatro americanos teve dificuldades para comprar comida em 2021, e o preço dos alimentos subiu mais de 11% desde esta época do ano passado.
Portanto, os especialistas em nutrição aplaudiram com razão a Conferência da Casa Branca sobre Fome, Nutrição e Saúde na semana passada, quando a discussão deixou de focar em ajudar as pessoas a obter calorias suficientes e, em vez disso, focou em conseguir alimentos reais para as pessoas. Esse também é o foco por trás de uma iniciativa multibilionária do governo Biden para acabar com a fome no país até 2030.
A ideia de que o tipo de alimento é mais importante do que o número de calorias consumidas começou como uma visão minoritária, mas gradualmente se popularizou. A antiga crença de que todas as calorias são iguais e que a obesidade era causada pela falta de força de vontade não explica por que a pobreza, a fome e a obesidade se concentram nas mesmas comunidades.
“Isso me intrigou por muitos anos – como pessoas que passavam fome ou não pareciam ter dinheiro suficiente para comprar comida poderiam ter mais excesso de peso ou obesidade do que pessoas que tinham recursos?”, disse Walter Willett, professor de epidemiologia e nutrição da Harvard School of Public Health.
As calorias medem a quantidade de energia disponível dos alimentos, mas o corpo humano não pode ser alimentado da mesma forma que um carro. “Aprendemos muito ao longo dos anos. Há várias linhas que conectam pobreza, insegurança alimentar e obesidade”, diz Willet. “Uma das conexões mais importantes é simplesmente a má qualidade dos alimentos”.
Se esta nova visão científica estiver correta, significa que a fome realmente contribuiu para o aumento dramático da obesidade nos últimos 30 anos – um aumento de 70% nos adultos e de 85% nas crianças.
Os cientistas ainda discordam sobre o que constitui exatamente a melhor dieta humana – comer uma proporção maior de gordura ou de carboidratos. Mas existe certo acordo sobre o tipo de dieta que é prejudicial à saúde humana. Infelizmente, ela inclui os alimentos mais baratos, mais convenientes, mais disponíveis em áreas pobres e mais fortemente comercializados: alimentos e bebidas com alto teor de açúcar ou xarope de milho e alimentos ricos em amido, como pão, salgadinhos e batatas fritas.
David Ludwig, endocrinologista da Harvard School of Public Health e do Boston Children’s Hospital, é o principal autor de um novo artigo que explica como a fome e a obesidade podem estar diretamente ligadas. Tudo está relacionado à insulina.
O artigo, publicado no European Journal of Clinical Nutrition, com Willett como coautor, detalha a forma como diferentes formas de carboidratos atuam no corpo. Na forma de frutas, vegetais, feijões ou alguns grãos integrais, eles são absorvidos lentamente por causa do material vegetal fibroso que envolve os carboidratos, mas no pão ou em cereais açucarados ou refrigerantes, eles são absorvidos rapidamente e geram picos de insulina. Essa insulina faz com que as pessoas sintam mais fome e ganhem peso.
Ludwig contou que faz sentido se você pensar neste processo como análogo ao de um adolescente receber sinais hormonais que estimulam o crescimento. Esses hormônios estimulam os adolescentes a comer vorazmente e a usar o excesso de calorias para o crescimento. Algo semelhante acontece na gravidez quando os hormônios fazem uma mulher a sentir mais fome; a energia extra vai para o crescimento do feto e da placenta.
“Argumentamos o mesmo para a obesidade: quando as células gordurosas do corpo são acionadas para ingerir calorias demais, há poucas calorias para o resto do corpo, e é por isso que ficamos com fome”, disse Ludwig. “Isso é surpreendente para as pessoas, mas está bem demonstrado”.
Se essa ideia estiver correta, ela exige uma solução muito diferente para os problemas de fome e obesidade do que a visão convencional de que as pessoas ganham peso por falta de autocontrole.
Não seria a primeira vez que nossa compreensão da obesidade seria significativamente revisada. A sabedoria antiga também sustentava que a gordura era a causa da obesidade e que as pessoas deveriam se orientar para uma dieta mais elevada em carboidratos. Essa visão pode ter realmente tornado as pessoas mais doentes e pesadas.
“Por quanto tempo você se apega a um paradigma que toma como base “comer menos e fazer exercícios”, de uma forma ou de outra, quando ele não funciona”? perguntou Ludwig.
É hora de aposentar a velha crença de que, na maior parte da evolução humana, nossa espécie lutou por cada caloria e isso nos fez ficar constantemente com fome. Nessa narrativa, somente aqueles com mais força de vontade e autodisciplina ficam magros. A narrativa parece óbvia assim como por muito tempo parecia óbvio que a Terra era o centro do universo.
É muito mais provável que humanos pré-históricos comiam os tipos certos de alimentos – aqueles aos quais as pessoas estão bem adaptadas a comer para serem fortes, saudáveis e cheias de energia. Isso inclui carne, peixe, laticínios, frutas, vegetais e, depois que a agricultura foi inventada, grãos integrais como arroz e trigo.
Pode haver muita variedade em uma dieta saudável: Ludwig ressalta que as culturas tradicionais dos inuits, dos laplanders e dos indígenas tinham dietas com alto teor de gordura animal durante a maior parte do ano, enquanto outras culturas consomem majoritariamente plantas. No entanto, açúcar, farinha, refrigerantes e batatas fritas não fazem nenhuma cultura prosperar.Em sua experiência, as pessoas escolhem os alimentos errados por motivos econômicos. “Muitas famílias de baixa renda adorariam ter acesso a alimentos mais saudáveis”.
Os seres humanos são diversos em formas e tamanhos – não precisamos ser todos magros para sermos saudáveis, e algumas pessoas obesas podem estar passando fome. Uma iniciativa governamental poderia realmente acabar com a fome até 2030 – daqui a apenas oito anos? O governo Biden pode precisar de mais ajuda do Congresso para um objetivo tão ambicioso, mas qualquer esforço que comece com uma abordagem baseada na ciência ajudará a salvar e melhorar muitas vidas.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.
Faye Flam é colunista da Bloomberg Opinion e escreve sobre ciência. Ela apresenta o podcast “Follow the Science”.
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