Bloomberg Línea — O setor financeiro e investidores das principais ações começaram a semana em estado de atenção com uma nova resolução do Banco Central que limita as chamadas taxas de intercâmbio nas transações para cartões pré-pago e de débito, além de fixar prazo de liquidação de operações nas duas modalidades.
Segundo a normativa publicada na segunda-feira (26), bancos e fintechs poderão cobrar no máximo 0,70% do valor de cada transação com cartão pré-pago. O assunto estava em consulta pública desde outubro do ano passado. As novas regras entram em vigor a partir de 1º de abril de 2023.
A medida teve reflexos nas ações das fintechs brasileiras listadas no exterior nesta segunda-feira (26): PagSeguro (PAGS) teve variação de -2,6%, Nubank (NU), -5,22%, e Stone (STNE), -3,14%, em mais um dia de quedas dos índices S&P 500 e Nasdaq.
Na prática, uma taxa de intercâmbio maior impacta especialmente o varejista, que acaba aceitando um arranjo mais caro para não perder consumidores que utilizam cartão de determinado banco, de acordo com uma pessoa do mercado de adquirência ouvida pela Bloomberg Línea, que preferiu não se identificar. O lojista também pode repassar o custo ao consumidor.
“O cliente que usava Pix e dinheiro está pagando um preço maior no produto porque os que pagam com pré-pago estão deixando o produto mais caro”, disse essa pessoa familiarizada com os negócios de adquirência. É o chamado subsídio cruzado.
Com as novas normas, embora as taxas de débito e pré-pago não sejam as mesmas, o prazo para o dinheiro cair na conta do estabelecimento terá de ser o mesmo. Antes da resolução, a transação que era paga por meio de pré-pago poderia funcionar nos “trilhos” de um pagamento por crédito: ou seja, quando saía da conta do consumidor, ficava até 26 dias retido com o banco antes do repasse ao varejista.
Revisando os impactos da nova resolução, a PagSeguro disse à Bloomberg Línea, por meio de nota, que os impactos estimados no lucro líquido da companhia em 2023 serão próximos de zero (+1% / -1%), dado que potenciais reduções dos custos de transação na operação de adquirência e redução do prazo de liquidação compensarão eventuais efeitos da redução de receitas na operação de emissão de cartões.
O Nubank disse em comunicado ao mercado na manhã de segunda-feira que, se a resolução estivesse em vigor desde julho de 2021, a receita da empresa teria sido afetada negativamente em 2,9%.
Segundo o Nubank, as taxas de intercâmbio de cartões pré-pago representaram 7% da receita da empresa no período de 12 meses entre julho de 2021 e junho de 2022.
A fintech disse ainda no comunicado que vai continuar monitorando as novas regras sancionadas pelo Banco Central e outros ajustes propostos pela Mastercard, bandeira de seu cartão pré-pago.
Por meio de nota, a Mastercard disse que continuará seguindo as regras dos países em que atua e que acredita que a livre concorrência é a melhor maneira de promover mais competição e inovação. “Nosso foco é garantir a segurança dos pagamentos, equilibrando os interesses e em diálogo com todos os participantes do arranjo de pagamentos”.
O que é a tarifa de intercâmbio
A tarifa de intercâmbio é a remuneração paga ao emissor do cartão a cada pagamento feito pelo credenciador do estabelecimento comercial, ou seja, aquele que aluga as maquininhas para o lojista.
As empresas de maquininhas - conhecidas como adquirentes, como PagSeguro e Stone - cobram essa tarifa do estabelecimento comercial, que repassa ao consumidor. Na prática, a depender da operação (débito, crédito ou pré-pago), a compra é mais ou menos custosa para as empresas emissoras do cartão ou adquirentes.
Em 2018, o Banco Central determinou que o teto do intercâmbio da tarifa de operações de débito deveria ser de 0,5% para quem oferecesse contas depósito, como bancos. Mas, no caso de fintechs, como o Nubank, em que o usuário utilizava o cartão pré-pago como se fosse de débito, a tarifa de intercâmbio superava o teto de 0,5% estipulada para o débito, segundo adquirentes.
Essa pessoa familiarizada com a discussão disse à Bloomberg Línea, em condição de anonimato, que o volume de transações com cartões pré-pago no Brasil é expressivo.
Em uma situação em que as transações de pré-pago eram feitas pelo varejista e por adquirentes utilizando uma taxa de débito, o emissor ganhava 0,7%. “Isso fazia com que as adquirentes tivessem um prejuízo de fato e é por isso que a Getnet entrou com ação contra o Nubank”, disse.
A ação da Getnet contra o Nubank
A Getnet, credenciadora do Santander, entrou no ano passado com ação contra o Nubank e a Mastercard em um processo de R$ 62 milhões. A alegação é que teria sofrido prejuízos porque o Nubank propagava seu cartão aos usuários como se fosse de débito, enquanto usava a tarifa de pré-pago, extraindo receita da maquininha Getnet.
Segundo uma pessoa familiarizada com os negócios de adquirência, que pediu para não ser identificada, o Nubank chegava a cobrar até 1,2% por transação. Procurado sobre essa questão, o Nubank disse que não iria comentar.
“O emissor Nubank alinhou-se em parceria exclusiva com a bandeira Mastercard, maior instituidora de arranjos de pagamentos do país, para extrair sem justa causa renda da maquininha Getnet (credenciadora)”, alega a Getnet no processo.
“Essa extração se tornou viável, com elevados prejuízos à Getnet, dada uma confluência de fatores. Em primeiro lugar, a dependência econômica que a Getnet apresenta em relação à Mastercard, responsável por mais da metade de seu faturamento. Em seguida, ao fato de que a Getnet, por força contratual, não é livre para negar a participação do Nubank em arranjos de pagamento por ela integrados”.
Segundo a Getnet na ação, isso poderia inviabilizar a operação da adquirente no mercado brasileiro caso não houvesse ação do Poder Judiciário. A Justiça negou o pedido de liminar (para interromper a prática do Nubank e da Mastercard). A Getnet recorreu e a Justiça negou o recurso em janeiro.
Para a Bloomberg Línea, a Getnet disse que, ao estabelecer um limite máximo para o valor da tarifa de intercâmbio, a resolução do Banco Central demonstraria, na sua avaliação, a suposta abusividade do valor da tarifa instituída pela Mastercard em seu arranjo de pagamento nas transações efetuadas com cartões emitidos pelo Nubank. “As perdas são suportadas única e exclusivamente pela Getnet, em benefício do emissor do cartão e da bandeira”.
Procurado pela Bloomberg Línea para falar sobre a ação da Getnet, o Nubank enviou o comunicado ao mercado sobre as alterações impostas pelo Banco Central e disse que não comenta o processo.
Em petição enviada à Justiça em 25 de fevereiro deste ano, a defesa do Nubank disse que é parte ilegítima para figurar no polo passivo da presente ação, já que não define a tarifa de intercâmbio aplicável no arranjo de pagamento da Mastercard, não mantém qualquer relação contratual com a Getnet e não praticou quaisquer atos ilícitos que pudessem justificar qualquer direito a indenização.
O Nubank argumenta no processo que até o momento a regulação do Banco Central não é aplicável às transações com cartões pré-pagos, pois regula apenas o teto da tarifa de operações com cartões de débito e diz ainda que instituições de pagamento são proibidas de oferecerem contas de depósito, e, por consequência, de emitirem cartões de débito.
“Cartões pré-pagos e cartões de débito são cartões de pagamento diferentes; a pretensão da Getnet, de limitação da tarifa aplicável aos cartões pré-pagos, não comporta intervenção do Poder Judiciário, pois tem o potencial de desequilibrar o mercado de pagamentos e já é objeto de análise do Banco Central, a quem compete a regulação do tema”, disse o Nubank, no processo ao qual a Bloomberg Línea teve acesso.
Segundo Fábio Braga, sócio da Demarest Advogados, a nova resolução do BC adiciona um novo capítulo a esse processo.
“À medida que se avança, é criada a necessidade de ajustes na regulação para balanço regulatório. Em um primeiro momento, o BC deu muita margem para o desenvolvimento dessa indústria. Na sequência da ação da Getnet, começou uma discussão no âmbito do Banco Central e foi colocado em audiência pública para monitorar o mercado”, disse.
O que muda com a resolução
Com a edição da resolução 246 pelo Banco Central, que estabelece limites à tarifa de intercâmbio e ao prazo de liquidação de operações de cartões pré-pagos e de cartões de débito, há um limite máximo de 0,5% aplicado à taxa de intercâmbio em qualquer transação de cartão de débito e um limite máximo de 0,7% em transações com cartões pré-pagos.
A nova regulação também estabelece mesmo prazo para disponibilização dos recursos aos estabelecimentos comerciais (o tempo necessário para o pagamento cair na conta do lojista), independentemente de o cartão ser de débito ou pré-pago. Agora, o prazo é o mesmo para as transações de débito e pré-pagos, o que, segundo o BC, possibilita melhores condições para gestão de fluxo de caixa dos estabelecimentos comerciais, além de reduzir eventuais custos de antecipação de recebíveis.
“A redução da tarifa, aliada à grande concorrência no mercado de pagamentos, tem o potencial de diminuir custos para o comerciante na aceitação de cartões, dando-lhe condições de repassar essa economia para o preço final de seus produtos,” disse o BC, em comunicado à imprensa.
A taxa de intercâmbio é em geral parte relevante da receita de fintechs que operam com cartões, com variações de caso a caso.
A Zetta, associação que representa Nubank, MercadoPago, Z1, Cora, Acesso, Mercado Bitcoin, Fit Bank, Recarga Pay, Conpay, Dock, Transfero, Modalmais, Donus, Bexs Banco, Zoop, Grupo Movile, Banco Inter, Creditas, Hash, CSU, Neon, SumUp e Iugu, disse que acredita que a nova norma sobre o limite da tarifa de intercâmbio para cartões pré-pagos levou em consideração o importante papel dos cartões pré-pagos para a inclusão financeira.
“As receitas de intercâmbio foram fundamentais para possibilitar a oferta pelas fintechs de mais de 90 milhões de contas digitais gratuitas ao longo do último ano”, disse a associação.
“A Zetta segue atuando na defesa da inclusão financeira, no uso da tecnologia e no aumento de competitividade como maneira de trazer mais eficiência, transparência e menores custos para os consumidores”.
O banco digital unicórnio Neon disse à Bloomberg Línea que a resolução não altera a estratégia de mercado da fintech. “A Neon vinha se preparando para essa mudança, incorporando-a em suas projeções, desde a consulta pública feita pelo Banco Central em outubro de 2021.″
Segundo o BC, “as medidas visam aumentar a eficiência do ecossistema de pagamentos, estimular o uso de instrumentos de pagamentos mais baratos, possibilitando a redução dos custos de aceitação desses cartões aos estabelecimentos comerciais, além de possibilitar reduções de custo de produtos aos consumidores finais, de forma a proporcionar benefícios para toda a sociedade”.
Já a Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviço) disse, por meio de nota, que é a favor da livre concorrência entre os agentes econômicos que atuam no setor de meios eletrônicos de pagamento e contra qualquer tipo de tabelamento de preços por parte do regulador.
“A imposição de um teto de preço geralmente restringe a inovação e pode gerar custos ao consumidor, uma vez que as empresas impactadas buscam alternativas para reequilibrar suas receitas, ainda mais em se tratando de uma mesma tarifa para transações em ambientes com riscos bastante diversos”, disse.
A associação alegou ainda que o mercado e a iniciativa privada, sob orientação do regulador, têm condições de se autoajustar para mitigar eventuais desequilíbrios, sem limitar a livre competição.
“Recentemente, os instituidores de arranjo de pagamento (bandeiras) publicaram e submeteram à aprovação do Banco Central propostas de ajustes no intercâmbio e prazo de liquidação para o produto pré-pago na tentativa de atender ao mercado. Essas propostas foram superadas pela edição da Resolução 246 do Banco Central”.
Segundo a Abecs, a modalidade de cartões pré-pagos movimentou R$ 99,4 bilhões no primeiro semestre de 2022, valor 138% maior do que o mesmo período do ano passado. Já o cartão de débito movimentou R$ 488 bilhões no primeiro semestre de 2022, valor 17% maior do que o mesmo período do ano passado.
O Movimento Inovação Digital, que representa startups, disse acreditar que, com a nova norma sobre o limite da tarifa de intercâmbio, o Banco Central reconhece os cartões pré-pagos como importante instrumento para a inclusão financeira que, em sua avaliação, vem sendo promovida pelas fintechs.
“O movimento celebra mais esse passo nessa trajetória [...] Agora o desafio é manter a remuneração dessas novas fintechs por meio de tarifas que contribuam com mais concorrência para o setor”.
O que dizem os especialistas
Vinicius Carrasco, diretor da Abipag (Associação Brasileira de Instituições de Pagamentos), disse acreditar que a nova regulação mitiga, mas não elimina, os efeitos da assimetria de tratamento dado a cartões de débito e pré-pago (que são similares na perspectiva tanto de portadores quanto de varejistas).
“É, portanto, um passo importante e na direção correta. Acreditamos, no entanto, que o prazo de implantação possa ser menor do que o proposto e, não menos importante, esperamos que haja mais passos na direção de se reduzir a diferença de intercâmbios aplicáveis”, disse.
Para João Bragança, diretor sênior da consultoria alemã Roland Berger, com a alteração do prazo de liquidação dos cartões pré-pagos, que antes demoravam tanto quanto uma transação de crédito e rendiam a uma taxa de juros de 14% ao ano, a receita das fintechs será afetada.
Em sua avaliação, a resolução é mais um passo que pode levar a maior consolidação dessa indústria por meio de M&As (fusões e aquisições), afetando em especial as fintechs menores.
“A estrutura de gestão dessas contas de pagamento é normalmente padronizada. O negócio fintech é altamente escalável porque, quanto mais negócios existem, mais elas conseguem diluir seus custos fixos. Se a receita fica menor, a fintech tem menos capacidade para diluir custo fixo e para investimentos. Mas se duas fintechs de dimensões menores se juntarem, acaba sendo criada uma maior”, explicou.
Além disso, em um momento em que a captação de fintech por meio de venture capital é mais restrita, há ainda mais incentivos para esse tipo de acordo de fusões entre as fintechs pequenas. Por outro lado, pode ser uma oportunidade de consolidação para os grandes players.
O Nubank divulgou na segunda que alcançou a marca de 70 milhões de clientes na América Latina, sendo 66,4 milhões a operação brasileira, mais de 3,2 milhões no México e mais de 400 mil na Colômbia.
Impacto no resultado
Segundo Bragança, quando o Nubank diz ao mercado que teria uma receita reduzida em cerca de 3% nos 12 meses até junho de 2022 se as normas já estivessem em vigor, é preciso observar o resultado.
“3% parecem ok, mas qual é o impacto disso no resultado? Talvez isso seja mais interessante, não o impacto na receita, mas no resultado. Naturalmente há uma questão tributária, já que na receita gera menos imposto. Mas me parece que uma coisa é o impacto na receita, e outra, no resultado”, afirmou Bragança.
Ele explicou que, para fintechs, a receita que vem da taxa de intercâmbio é certa, enquanto a advinda da taxa de juros envolve riscos de inadimplência e prejuízo.
“Se pensarmos que a maioria das fintechs no Brasil tem problema com risco, qualquer linha de receita que tenha a natureza da certeza é importante para compor o resultado.”
-- Atualizada com a petição do Nubank no processo contra a Getnet
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