Recessão americana é quase inevitável e vai doer, diz atual Nobel de Economia

Em visita ao Brasil, David Card falou à Bloomberg Línea e alertou para efeitos da desaceleração no mercado de trabalho, como salários que não vão acompanhar a inflação

Recessão tende a prejudicar mais os jovens que estão entrando no mercado de trabalho, disse em evento em São Paulo
26 de Setembro, 2022 | 08:14 AM

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Bloomberg Línea — Vencedor do Prêmio Nobel de Economia no ano passado por seus estudos sobre o mercado de trabalho, o professor americano David Card acredita ser quase “inevitável” que a economia dos Estados Unidos entre em recessão por causa do ciclo de aperto monetário promovido pelo Federal Reserve (Fed).

Na visão do economista, os efeitos da alta de juros não devem ser tão fortes quanto nos anos 1980, quando o Federal Reserve, liderado pelo então presidente Paul Volcker, elevou as taxas de juros do país ao recorde de 20% ao ano para combater a inflação. Mesmo assim, a subida deve provocar uma desaceleração da atividade econômica, com efeitos inclusive para o setor imobiliário, um dos mais importantes.

“Basicamente, a única forma de eles [os diretores do Fed] esfriarem a economia é reduzindo a atividade dos setores sensíveis às taxas de juros. Por exemplo, construção e indústria de bens duráveis. E isso vai doer”, afirmou Card em entrevista à Bloomberg Línea na última semana, quando esteve em São Paulo para um evento organizado pelo Insper.

“No pior cenário, se a economia da China sair dos trilhos, a guerra na Ucrânia se agravar e a Rússia bloquear as exportações de petróleo, o Fed aumentaria os juros e a economia desabaria. Aí teríamos uma situação muito grave”, completou Card, que é professor na Universidade da Califórnia em Berkeley.

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Uma dúvida de economistas é sobre o mercado de trabalho. Card nota que o número de vagas em aberto está muito acima do que seria esperado para o nível atual da taxa de desemprego do país (3,7% em agosto). A tendência, segundo ele, é que haja uma correção à medida que a economia desacelera.

“Dá para dizer com certa confiança de que elas [as vagas em aberto] não vão persistir nesse patamar. Parece meio irrealista. Tão logo as empresas pararem de vender nos mesmos níveis que agora, elas vão parar de contratar”, afirmou o economista, que nasceu no Canadá e é naturalizado americano.

Quem é David Card

Existem pesquisadores que desafiam o pensamento convencional e comprovam em suas pesquisas que o consenso acadêmico estava errado. David Card fez isso não apenas uma, mas duas vezes.

Card é reconhecido por um estudo publicado nos anos 1990 sobre o efeito dos aumentos do salário mínimo nos empregos. Ao contrário do que economistas acreditavam na época, Card e o seu colega Alan Krueger (que morreu em 2019) demonstraram que esses reajustes não levam as empresas a fazer cortes de funcionários para readequar os custos, o que provocaria um aumento do desemprego.

Não foi apenas o resultado que chamou a atenção mas a maneira como a pesquisa foi realizada. Card e Krueger foram dois dos pioneiros em utilizar os chamados “experimentos naturais” no campo da economia, isto é, quando se estuda o efeito de uma determinada medida sob um grupo de indivíduos em condições reais. Card e Krueger analisaram o impacto do aumento do salário mínimo em Nova Jersey em 1992 em relação ao Estado vizinho da Pensilvânia, que manteve o salário mínimo no mesmo nível.

A segunda pesquisa que marcou a carreira acadêmica de Card também foi um experimento natural. Mas, nesse caso, o economista analisou os efeitos da chegada repentina de 125.000 imigrantes cubanos à Miami em 1980, durante o chamado Êxodo de Mariel, quando o governo do então presidente Fidel Castro permitiu a saída de pessoas que quisessem deixar o país sob regime socialista.

A chegada dos imigrantes levou a um aumento de 7% na força de trabalho em Miami. Mas Card descobriu que o enorme fluxo de pessoas não provocou queda dos salários na região nem elevou a taxa de desemprego entre pessoas de baixa qualificação que já viviam em Miami. Isso contrariou o entendimento comum de que a imigração provoca perda de empregos para habitantes locais.

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Ao longo dos anos, o economista se especializou em estudos sobre o mercado de trabalho e fez importantes contribuições para políticas públicas para melhorar a educação e a redução de desigualdades.

Em uma de suas pesquisas, Card e seus colegas analisaram a diferença salarial entre brancos e não-brancos no Brasil. Eles concluíram que dois terços dessa discrepância pode ser explicada pelos níveis educacionais, mas um terço corresponde à forma como as empresas escolhem os profissionais e acabam dando preferência aos trabalhadores brancos.

Em estudo recente, Card e outros pesquisadores concluíram que meninas que tiveram aulas com um número maior de professoras mulheres durante a infância tendem a ter mais sucesso durante a vida, com maior probabilidade de fazerem faculdade, terem uma renda mais alta e de viverem por mais tempo.

Alerta para os mais jovens na recessão

Na entrevista para a Bloomberg Línea, Card ressaltou que a recessão americana pode ter um efeito negativo sobretudo para os mais jovens que estão entrando no mercado de trabalho.

“Quando há uma recessão, os trabalhadores mais jovens - se eles conseguem algum trabalho - acabam sendo colocados em empregos não muito bons. E a experiência mostra que leva algo entre 5 e 10 anos para recuperar essa perda. É muito ruim”, disse ele na entrevista a seguir, editada para fins de clareza:

Bloomberg Línea: Houve uma recuperação do mercado de trabalho desde o período mais crítico da pandemia, mas o nível de participação da força de trabalho continua abaixo do patamar pré-covid. O que isso diz sobre a saúde do mercado de trabalho?

David Card: Existem alguns fatores que levaram a essa redução. Um deles é que a força de trabalho está envelhecendo muito rapidamente nos Estados Unidos. Isso pode explicar uma parte da tendência de queda. A outra coisa que parece estar acontecendo é que há um grupo grande de trabalhadores que sentiram um esgotamento [burnout] durante a covid. Por exemplo, trabalhadores do setor de saúde, alguns professores, motoristas e maquinistas que operam trens. Eles tiveram que trabalhar longas horas. Acho que estamos vendo algo relacionado a isso. E, na verdade, existe uma situação análoga muito interessante.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a mesma coisa aconteceu. Uma grande quantidade de pessoas estava trabalhando durante longas horas, e depois da guerra houve uma série de greves, porque as pessoas sentiam que não poderiam continuar trabalhando daquela forma. A força de trabalho caiu. Há uma combinação: algumas pessoas tiveram de trabalhar muito mais durante a covid, e outras ficaram sem trabalho. E aqueles que trabalharam demais precisaram tirar uma pausa. Isso é parte disso.

Agora estamos vendo um aumento das taxas de juros nos Estados Unidos e o risco de uma recessão. Quais podem ser as consequências para o mercado de trabalho?

Eu honestamente acho que estamos caminhando para uma recessão. É quase impossível imaginar que não vamos ter uma queda [na atividade econômica]. Acredito que o Fed vai ter que aumentar muito as taxas de juros. E isso é basicamente tudo o que eles podem fazer [para combater a inflação]. E é quase inevitável. Basicamente, a única forma de eles esfriarem a economia é reduzindo a atividade dos setores sensíveis às taxas de juros. Por exemplo, construção e indústria de bens duráveis. E isso vai doer.

Quanto vai doer?

Presumo que não vai ser tão ruim quanto em 1982, quando o Paul Volcker subiu os juros. Mas há um problema. A Europa provavelmente deve entrar em uma grande recessão. E a situação da China está muito incerta. Muito da demanda por bens no mundo vem indiretamente da demanda chinesa. Essa é uma incógnita: como a desaceleração da China vai influenciar a economia mundial.

No pior cenário, se a economia da China sair dos trilhos, a guerra na Ucrânia se agravar e a Rússia bloquear as exportações de petróleo, o Fed aumentaria os juros e a economia desabaria. Aí teríamos uma situação muito grave. Minha especialidade não é macroeconomia. Mas essa é a minha visão.

E para o mercado de trabalho? Que tipo de consequências são esperadas com o aumento dos juros?

Muitas perdas de emprego. Quase sempre acontece isso. É muito duro para as pessoas que estão entrando no mercado de trabalho. Quando há uma recessão, os trabalhadores mais jovens – se eles conseguem algum trabalho – acabam sendo colocados em empregos não muito bons. E a experiência mostra que leva algo entre 5 e 10 anos para recuperar essa perda. É muito ruim.

Além disso, um setor que acaba sendo muito afetado é o mercado imobiliário residencial. Porque as pessoas dependem de hipotecas. Nos anos 80, quando eu comprei a minha casa, as taxas de juros estavam entre 9% e 10% ao ano. Mas não temos taxas nesses níveis assim há décadas. Isso vai provocar um grande ajuste. Presumivelmente, um dos efeitos é que os preços das casas tendem a cair. E isso leva um bom tempo para acontecer. Essa pode ser outra fonte de ajuste.

O senhor mencionou em sua palestra no Insper que as boas empresas param de contratar durante os períodos de recessão. Isso já está acontecendo?

Acho que não. Os dados que temos sobre a oferta de vagas são atualizados a cada trimestre. Mas as pessoas acham que a demanda [por trabalhadores] ainda está bastante alta.

Mas há algo que está muito fora do esperado. Existe um gráfico que os economistas usam que tem a taxa de desemprego no eixo x e a taxa de oferta de empregos no eixo y. É a chamada Curva de Beveridge. O ponto em que estamos agora não parece que pertence ao mesmo gráfico. O número de vagas em aberto está muito alto. Algumas empresas ainda estão anunciando vagas.

Há um aspecto interessante disso. De certa forma, as empresas estão conseguindo repassar seus aumentos de custos e os salários não acompanharam a inflação. De certa forma, isso é bom para os empregadores. As empresas falam: ‘ok, vamos contratar essa pessoa’.

Os salários devem recuperar a perda da inflação?

Eles não vão. Essa é uma redução pontual e única dos salários reais, de algo de 10%. Vai levar uma década para se mover de volta. É minha visão. Há algumas pessoas que conseguiram ter um ganho salarial. Mas para quase todo mundo houve uma perda.

O senhor vê possibilidade de a recessão ocorrer sem que a taxa de desemprego suba tanto por causa do grande número de vagas em aberto?

O número de vagas tem um comportamento diferente. A empresa pode publicar uma vaga e decidir que não vai contratar. Podem parar de contratar em questão de segundos. Vemos empresas anunciando isso toda hora. Algumas do setor de tecnologia falaram isso: têm vagas abertas, mas não vão contratar.

E nós não temos um histórico muito longo de dados sobre vagas em aberto. Só apenas desde os anos 2000. O comportamento delas é meio difícil de prever. Eu acho que dá para dizer com certa confiança que elas não vão persistir nesse patamar. Parece meio irrealista. Tão logo as empresas parem de realizar vendas nos mesmos níveis que agora, elas vão parar de contratar.

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Filipe Serrano

É editor da Bloomberg Línea Brasil e jornalista especializado na cobertura de macroeconomia, negócios, internacional e tecnologia. Foi editor de economia no jornal O Estado de S. Paulo, e editor na Exame e na revista INFO, da Editora Abril. Tem pós-graduação em Relações Internacionais pela FGV-SP, e graduação em Jornalismo pela PUC-SP.