Modelo atual de ajuste das contas públicas se esgotou, diz Manoel Pires, da FGV

Próximo governo terá que lidar com aumento de gastos públicos e possível queda da arrecadação, diz economista em entrevista à Bloomberg Línea

Risco fiscal chega a R$ 430 bilhões em 2023
27 de Agosto, 2022 | 04:04 PM

Bloomberg Línea — O presidente escolhido pelos brasileiros nas eleições, seja quem for o vencedor nas urnas em outubro, vai enfrentar uma situação difícil das contas públicas em 2023 e terá que equilibrar a pressão por aumento das despesas com um possível enfraquecimento da arrecadação.

A avaliação é do economista Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), em entrevista à Bloomberg Línea.

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Pires é autor de um estudo, ao lado do economista Bráulio Borges, da LCA Consultores, que estima que o risco fiscal para 2023 pode chegar a R$ 430 bilhões, ou 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB). O valor inclui a provável manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600 a partir do ano que vem, um possível reajuste do funcionalismo, o efeito das desonerações de impostos e a revisão das despesas discricionárias, entre outros pontos.

São questões que, segundo o economista, tornam “inevitável” um aumento do gasto público em 2023. Pires defende uma ideia que tem ganhado força entre economistas: um waiver fiscal no ano que vem, uma espécie de suspensão temporária das regras fiscais para que o próximo governo faça freio de arrumação e crie um novo arcabouço fiscal para dar mais previsibilidade para as contas públicas nos próximos anos.

“Não fazer isso em 2023 vai ser uma perda de oportunidade para melhorar o arcabouço fiscal e reduzir a incerteza fiscal”, afirma Pires, que já foi secretário de Política Econômica no Ministério da Fazenda. O economista argumenta que essa suspensão já foi feita antes no governo do ex-presidente Michel Temer, em 2016, quando a regra do teto de gastos estava sendo elaborada.

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Apesar de o governo estar registrando aumentos sucessivos na arrecadação, Pires alerta que esse movimento tem sido muito influenciado pelas receitas do setor do petróleo – por causa da cotação mais elevada – e também em razão da inflação. Esses dois fenômenos, ele aponta, são temporários e tendem a se enfraquecer no ano que vem.

“Apesar de o Brasil ter apresentado um resultado fiscal melhor este ano, o fato é que, somando esse risco fiscal com a possibilidade de perder receitas em 2023, isso pode indicar que o fiscal não melhorou tanto assim. Pode até piorar”, afirma.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, feita por telefone, e editada para fins de clareza.

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Bloomberg Línea: Qual é a situação das contas públicas hoje?

Manoel Pires: Neste ano de 2022, o Brasil deve voltar a ter um superávit primário depois de muito tempo. Desde 2014 o país tem déficit. Esse é um aspecto positivo. Mas existem fatores por trás dessa evolução. Alguns deles são positivos. Outros, a meu ver, começam a apontar para alguma insustentabilidade do processo [de melhora das contas públicas], no sentido de que não é possível reproduzir essas iniciativas daqui para frente. E alguns fatores são negativos, que estão relacionados com a inflação.

Quais aspectos são esses?

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De aspecto positivo, algumas reformas começam a mostrar resultado, produzindo uma desaceleração do lado da despesa. Me refiro principalmente à reforma da Previdência e à contenção que o governo fez dos salários dos servidores públicos. Esses dois elementos contribuíram bastante para desacelerar o crescimento da despesa pública.

A despesa com funcionalismo permaneceu estável em relação ao PIB?

Sim. Em percentual do PIB, está caindo. Não teve reajuste salarial. E esse é um ponto que motiva a reflexão. Não se pode imaginar um cenário em que o congelamento dos salários vai ser reproduzido nos próximos quatro anos, o que demonstra um esgotamento dessa forma de produzir o ajuste.

E, pelo lado da receita, existem dois fenômenos importantes. O primeiro é o crescimento da arrecadação do setor de petróleo, que cresceu fortemente por causa do efeito do preço [da cotação internacional]. Esse é um efeito passageiro. Ninguém espera que o preço continue tão alto por tanto tempo. O segundo fenômeno é a inflação, que ajuda no resultado fiscal, gera um ganho arrecadatório significativo, mas é um ponto negativo para o país.

A situação do fiscal é essa. Há notícias positivas, reformas cujos resultados estão amadurecendo. Tem pontos de interrogação, sobre até que ponto conseguimos manter esse padrão de ajuste. E tem a pressão para aumentar os programas de transferência de renda: o Auxílio Brasil, para manter em R$ 600.

Esse cenário positivo já começou a mudar?

Do ponto de vista da arrecadação, ainda temos uma dinâmica bastante favorável. E, por causa desse ganho de arrecadação, o governo adotou algumas desonerações bastante significativas. Argumentou que, como estava arrecadando muito, poderia desonerar um pouco. O que chama a atenção é que, como esse ganho arrecadatório é temporário, tem um risco quando se adotam desonerações permanentes. Quando a arrecadação cair, pode ter um efeito líquido negativo.

O senhor e o economista Bráulio Borges indicaram que há um risco fiscal de R$ 430 bilhões para as contas públicas. Que risco é esse?

O trabalho não apresenta o custo das medidas. Apresenta o mapeamento dos riscos fiscais. Esses riscos podem se materializar ou não. Isso não quer dizer que o déficit vai aumentar R$ 430 bilhões. Mas que as questões que seguem em aberto e geram incerteza fiscal totalizam R$ 430 bilhões.

O efeito final vai depender de como o governo vai equacionar essas várias demandas. Como ele vai decidir a questão do funcionalismo dos servidores. Como vai tratar a questão do aumento do Auxílio Brasil. Como vai recuperar os investimentos públicos. Como vai tratar as desonerações daqui para frente. Tem várias questões judiciais, como precatórios e como a Justiça vai definir sobre a mudança que o governo fez sobre eles.

O que percebemos é um risco fiscal relevante que merece cuidado para ser bem equacionado, para diminuir o impacto negativo desses vários elementos para as contas públicas, exatamente para não se deteriorar.

Esse custo é um risco para a meta fiscal e o resultado do superávit primário no ano que vem?

O mapeamento totalizou R$ 430 bilhões. Em percentual do PIB fica em 4,2%. Não quer dizer que o fiscal vai piorar 4,2% do PIB. Mas, apesar de o Brasil ter apresentado um resultado fiscal melhor neste ano, o fato é que, somando esse risco fiscal com a possibilidade de perder receitas em 2023, pode indicar que o fiscal não melhorou tanto assim. Pode até piorar. É mais ou menos essa a mensagem.

Como lidar com essa situação?

Pessoas que estão fora do governo e que estão olhando essa questão têm sugerido o que tem sido chamado de um waiver fiscal. Suspendem-se as regras fiscais para fazer um freio de arrumação no Orçamento e estabelecer um planejamento fiscal mais seguro. O nosso trabalho elabora sobre isso. Faz um mapeamento de risco fiscal e mostra como as estratégias fiscais estão sendo moldadas e discutidas em torno dos problemas enxergados a partir das dinâmicas de políticas públicas a partir do próximo ano.

Como avalia essa proposta de um waiver fiscal?

O crescimento do risco fiscal é sinônimo de mais incerteza. À medida que vai crescendo, é preciso de um tempo para arrumar a casa. Isso já foi feito antes. Quando o governo Temer assumiu, só criou o teto de gastos para o ano seguinte. Ele ficou de abril de 2016 até dezembro de 2016 arrumando a casa, para preparar a vigência do teto.

O Paulo Guedes fez isso também. Quando chegou a pandemia, a incerteza era tão grande sobre o que tinha de ser feito que ele aprovou o tal do Orçamento de guerra e suspendeu todas as regras fiscais por um ano. Depois elas voltaram. O waiver fiscal é uma tese que tem ganhado força em razão de declarações de vários economistas que estão trabalhando com isso e enxergando esse problema.

Extensão do Auxílio Brasil a R$ 600 é dado como certo, diz Pires

O ano de 2023 é um ano de arrumação?

As coisas estão convergindo para isso. Não fazer isso em 2023 vai ser uma perda de oportunidade para melhorar o arcabouço fiscal e reduzir a incerteza fiscal. E, de novo, ainda temos muito do dever de casa para fazer do ponto de vista fiscal. Tem que virar essa página para começarmos a discutir as reformas que precisam ser feitas, a reforma tributária, por exemplo. Temos que sair desse “curtoprazismo” fiscal que vivemos o tempo inteiro para pensar em um sistema mais estruturado que possa permitir crescimento e desenvolvimento do país.

Alguns candidatos têm falado de propostas que elevam gastos, como tornar o Auxílio Brasil de R$ 600 permanente e fazer a correção da tabela do Imposto de Renda, algo que sempre aparece nas campanhas. Há espaço fiscal para esse tipo de medida?

Algumas coisas me parecem ser inevitáveis. Todo mundo já dá como certa a manutenção do Auxílio Brasil em torno de R$ 600. Isso vai ter um custo. A questão do reajuste do funcionalismo vai ter de ser tratada de alguma forma, mesmo que não signifique um reajuste para todo mundo. O governo vai ter que enfrentar esse tema, apresentar uma proposta para tentar conciliar isso com uma reforma administrativa. Tentar proteger quem tem salários mais baixos no serviço público. A forma como o próximo governo vai enfrentar esse tema também altera essa conta.

Nós chamamos a atenção para o fato de que o aumento de gastos e, junto com isso, o próprio reajuste da tabela do Imposto de Renda estão se tornando inevitáveis.

É importante tratar dessa questão com racionalidade porque estamos falando de um país que ainda tem inflação muito alta. Aumentar o gasto público de forma estrutural não ajuda no combate à inflação. E os juros já estão muito altos. Aumentar o gasto público e fazer isso de forma descuidada para o mercado também pode ter repercussão nos juros. Estamos em um momento macroeconômico bastante delicado. É importante que essas questões sejam resolvidas de forma racional, com alguma moderação, para poder achar um bom meio termo e atender todas as partes.

A solução passa por uma reformulação do teto de gastos?

Várias despesas inadiáveis afetam o espaço que o teto de gastos oferece para o Orçamento. Considerando que no ano que vem vamos ter um primeiro ano de governo, que é um ano em que normalmente se faz reforma, é possível fazer esse tipo de revisão de maneira mais estruturada e organizada.

A ideia que colocamos na proposta é basicamente ajustar os problemas do teto de gastos original. Significa entender que no longo prazo não dá para o gasto público crescer só a inflação. Isso é muito pouco. Ele tem que crescer mais que a inflação, mas menos que o PIB, para a despesa em percentual do PIB cair. O que estipulamos é uma taxa de crescimento acima da inflação condizente com isso.

Segundo, uma coisa que ficou visível durante a pandemia é que, em algumas circunstâncias, o teto precisa ter exceções. Em situações de grande comoção nacional, de tragédia natural. Grandes recessões. São situações que abririam excepcionalidade para aumentar o gasto em programas públicos temporários, só para lidar com a situação que motivou a excepcionalização. E o terceiro ponto é como lidar com o passivo contingente, como é o caso dos precatórios. Também deveria haver uma excepcionalidade para tratar de passivos contingentes.

Dessa forma, conseguimos preservar mais a regra fiscal, porque ela fica menos sujeita a mudança o tempo inteiro. Você preserva a essência de controle da despesa de longo prazo, que é o que importa. E conciliar isso com a sustentabilidade da dívida. Em um horizonte de oito ou dez anos, a dívida cai de maneira consistente.

O que exatamente ficaria fora do teto de gastos? Precatórios e gastos sociais?

Passivos contingentes. São despesas judiciais basicamente. E situações excepcionais. Situações de guerra, recessão grave, pandemia, catástrofe natural, esse tipo de coisa. É algo que o teto original não previu.

Benefícios sociais não?

Não. Só crédito extraordinário, porque é uma despesa imprevisível. O teto seria todo o universo de despesas, exceção dos créditos extraordinários.

Chegaram a receber contato da campanha de algum candidato em relação a essas propostas?

Não. Nós apresentamos a ideia em vários lugares e nós sabemos que o texto circula. Ele é aproveitado de várias formas. É uma contribuição para o debate. À medida que há candidatos e equipes econômicas dos candidatos estudando essa questão, eles aproveitam essas propostas e tentam verificar se isso é condizente com o espírito da candidatura.

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Filipe Serrano

É editor sênior da Bloomberg Línea Brasil e jornalista especializado na cobertura de macroeconomia, negócios, internacional e tecnologia. Foi editor de economia no jornal O Estado de S. Paulo, e editor na Exame e na revista INFO, da Editora Abril. Tem pós-graduação em Relações Internacionais pela FGV-SP, e graduação em Jornalismo pela PUC-SP.