Dentre as várias incertezas que perturbam os mercados financeiros globais, duas têm tido papel preponderante no aumento da volatilidade dos preços de ativos e na erosão da confiança dos investidores: qual é o cenário macroeconômico mais provável na maior economia mundial, a dos Estados Unidos, e quão sérias podem ser suas consequências no resto do mundo?
É possível fornecer respostas bem objetivas a essas perguntas e abrandar as incertezas. Em relação à primeira questão, várias são as evidências de forte queda no crescimento real do PIB nos Estados Unidos. Dados preliminares apontam variação negativa nos dois primeiros trimestres deste ano frente aos trimestres imediatamente anteriores, feito o ajuste sazonal.
A discussão sobre se já se configura uma recessão técnica é pouco relevante. Mais pertinente é notar que o script de uma economia extremamente alavancada que está passando por um processo de desinflação induzido por política monetária restritiva está sendo seguido quase que à risca.
Com o equivalente a 281% do PIB em crédito total tomado pelo setor não-financeiro, o sistema econômico nos EUA tornou-se muito sensível a aumentos das taxas de juros, em especial quando associados ao fim da estratégia do Federal Reserve de compra de ativos em mercado para prover estímulo quantitativo (quantitative easing) ao nível de atividade.
Quando a autoridade monetária sobe o juro de referência para reduzir a velocidade de crescimento do nível geral de preços (desinflação), isto tem três grandes repercussões, a saber: ancoram-se as expectativas inflacionárias dos agentes econômicos, desestimula-se o consumo presente e, portanto, a absorção doméstica de bens e serviços, e deprime-se o valor presente de ativos reais, ou seja, gera-se um efeito riqueza negativo.
Em sistemas econômicos altamente alavancados, todas essas decorrências são ampliadas pelo desarranjo que o aumento do custo do capital produz nos ativos e passivos de pessoas físicas e jurídicas que tomaram muito financiamento. Não é coincidência, então, que países dependentes de crédito só consigam conviver com taxas de juros muito baixas. Nos Estados Unidos, o nível médio do juro primário nominal nos últimos 20 anos foi de 1,3% ao ano; na Suíça (300% do PIB em crédito tomado pelo setor não-financeiro), a média foi de 0,2% a.a.; no Japão (420% do PIB), ela foi de 0,06% a.a.
Com a estrutura a termo dos juros nos Estados Unidos estando agora invertida da taxa projetada para os próximos 12 meses em diante, passou-se a prever que o Federal Reserve terá que cortar o juro de referência da política monetária já no segundo semestre do ano que vem para tentar reerguer o nível de atividade, que estaria despencando nesse ínterim.
Em que parte do mundo os impactos desse cenário adverso seriam mais pronunciados? Esta é a segunda pergunta e a resposta a ela vai de encontro à sabedoria convencional. A média móvel de 10 anos da correlação entre o crescimento real do PIB nos EUA e o de outras regiões indica que a brusca desaceleração naquele país deverá ser mais fortemente sentida no grupo de nações mais desenvolvidas, o G7, que inclui Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão e Reino Unido. O coeficiente estatístico associado a esses comovimentos é superior a 90%, denotando grande sincronização dos ciclos econômicos.
Daí não se segue, contudo, que os desdobramentos no resto do mundo seriam semelhantes. Na verdade, a média móvel de 10 anos da correlação entre o crescimento real do PIB nos EUA com grandes nações emergentes não sugere comovimentos significativos.
No caso de Brasil, China e Índia, por exemplo, os respectivos coeficientes são 16%, -9% e 17%, indicativos de muito baixa sincronização dos ciclos econômicos. Cabe notar que esse fenômeno provavelmente reflete uma tendência secular, a saber, o peso cada vez menor que os Estados Unidos e os países do G7 têm na economia mundial. Em 1980, suas respectivas parcelas eram de 21% e 51% do PIB global. Em 2021 tinham caído para 16% e 31%.
Mais interessante ainda são as implicações dessa tendência secular em alguns mercados-chave. No caso de commodities, as sete maiores economias emergentes - Brasil, China, Índia, Indonésia, México, Rússia e Turquia - agora têm parcela maior da demanda global por commodities que o G7 para carvão, todos os metais básicos e preciosos e a maioria dos alimentos. Nas últimas duas décadas, responderam por não menos que 67% do aumento do consumo total de energia.
A sensível desaceleração nos Estados Unidos implica atividade global mais fraca, porém os atuais preços de ativos ao redor do mundo provavelmente superestimam o grau de adversidade do cenário que deve se consolidar, eis que sugerem uma espiral recessiva generalizada.
Salvo a ocorrência de eventos sistêmicos, as nações avançadas (G7) deverão sofrer proporcionalmente mais, porém isso não sela o destino das nações emergentes nem dos preços de commodities, que têm dinâmicas distintas. Isto posto, o ambiente atual é tal que as oportunidades parecem sobrepujar os riscos para o investidor experimentado que se dispõe a desafiar a sabedoria convencional.
Nota (1): “Demanda” inclui o uso de comodities para consumo final, assim como insumos intermediários na produção de outros produtos, inclusive para exportação. Ver “The Role of Major Emerging Markets in Global Commodity Demand” por Baffes, J., Kabundi, A., Nagle, P. and Ohnsorge, F. em World Bank Policy Research Working Paper 8495, junho 2018.
Luis Fernando Lopes é sócio, economista-chefe e estrategista do Pátria Investimentos. Para saber mais sobre o autor, clique aqui.
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