Bloomberg Línea — A corrida eleitoral no Brasil começou oficialmente esta semana, com o presidente Jair Bolsonaro, que busca a reeleição, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que quer voltar ao Palácio do Planalto. Além do efeito que isso poderia exercer sobre a política interna, os analistas também estão analisando a mudança que poderia ocorrer nas relações da principal economia latino-americana com o resto da região.
Os números continuam favorecendo Lula, de acordo com uma pesquisa divulgada nesta quarta-feira (17), pela Genial/Quaest: o ex-presidente tem 45% das intenções de voto, contra 33% para Bolsonaro.
As eleições de 2 de outubro ocorrerão em meio a uma atmosfera tensa que levou a Human Rights Watch a descrevê-las como “um teste de enorme importância para a democracia”, em meio ao questionamento de Bolsonaro sobre o processo eleitoral e a polarização política.
Toda a região está de olho no Brasil. Nas palavras do professor Alejandro Frenkel, doutor em ciências sociais pela Universidade de Buenos Aires, Bolsonaro liderou um processo de “desamericanização” após acreditar que a região tinha líderes que ameaçavam “valores essenciais da sociedade, como a liberdade, o livre mercado e a família”.
Desde que chegou ao poder, o presidente criticou o bloco comercial sul-americano do qual o país faz parte, o Mercosul, e os grupos e partidos de esquerda da região.
“Até o momento, Bolsonaro vem mostrando pouco interesse em estreitar laços com líderes que ele acredita não estarem ideologicamente alinhados a ele. Há poucos motivos para acreditar que ele mudaria se fosse reeleito”, afirmou Nick Zimmerman, que atuou como Diretor de Assuntos do Brasil e do Cone Sul no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca durante o governo Obama.
Durante seu mandato, o número de líderes latino-americanos que poderiam ser definidos como não-alinhados ou com ideologias contrastantes só aumentou. Desde sua posse em 1º de janeiro de 2019, foram eleitos Alberto Fernández, na Argentina, Pedro Castillo, no Peru, Gabriel Boric, no Chile, Xiomara Castro, em Honduras e, mais recentemente, Gustavo Petro, na Colômbia.
Esse isolamento político na região, como descreve Fernanda Cimini, pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), poderia contrastar com um eventual terceiro mandato de Lula. O ex-presidente, que durante seu governo, promoveu a criação de organizações como a União de Nações Sul-Americanas (a UNASUR, da qual Bolsonaro retirou o país) junto com Hugo Chávez, poderia priorizar a integração latino-americana.
O isolamento apontado pelos analistas também está refletido nos dados do comércio exterior do Brasil com a América Latina. Segundo dados do Centro de Comércio Internacional (ITC, na sigla em inglês), uma agência das Nações Unidas e da Organização Mundial do Comércio, Lula recebeu um país que no final de 2002 havia exportado US$ 11,957 bilhões para a região. Em seu primeiro ano na presidência, o Brasil havia exportado 29,3% a mais.
Por sua vez, Bolsonaro chegou com as exportações avaliadas em US$ 45 bilhões. No final do primeiro ano de seu governo, esse número havia caído 17,8%, chegando a US$ 36,9 bilhões. Além da tendência, os dados de 2020 sofreram com o impacto da covid-19, que afetou igualmente todo o comércio global.
Em termos de proporção, com Lula no poder, as exportações para a América Latina atingiram um pico de 26% do total das vendas externas. Depois veio um declínio durante as presidências de Dilma Rousseff e Michel Temer, chegando a 15,41% do total de exportações durante a presidência de Bolsonaro, mesmo incluindo os efeitos da pandemia em 2020.
Nesse período, a China consolidou seu papel de destaque na balança comercial do Brasil. Entre 2002 e 2022, as exportações para o gigante asiático passaram de US$ 2,6 bilhões para US$ 87 bilhões. Em 2009, o país já havia se tornado o principal parceiro comercial do Brasil, à frente dos Estados Unidos.
Atualmente, o Brasil exporta mais para a China que para toda a América Latina. Apesar das críticas à China, os analistas concordam que Bolsonaro teve uma postura econômica pragmática em relação ao país. “O Brasil sempre procurou aproveitar a concorrência das grandes potências para promover seus próprios interesses”, disse Zimmerman.
“Maré cor-de-rosa”
Esther Solano, doutora em ciências sociais pela Universidade Complutense de Madri, considera que o Brasil não teve continuidade em sua política externa, mesmo além das diferenças entre Lula e Bolsonaro.
“Bolsonaro acabou com toda a política externa do PT, de modo que quase não temos relações políticas com os países latino-americanos. Ele tentou criar um relacionamento mais próximo com os Estados Unidos porque acredita que esse é a referência, e não a América Latina”, disse Solano.
A professora afirmou que, fora do continente, Bolsonaro também tentou fortalecer as relações com Israel, chegando a abrir um escritório comercial em Jerusalém e falou sobre sua intenção de mudar a embaixada do Brasil no país para a cidade.
Lula mostrou propensão a uma maior integração regional durante sua campanha, ilustrada por propostas como a sua e a de seus assessores para criar uma moeda única regional que incluiria um banco central para toda a América do Sul, apesar da baixa viabilidade prevista pelos analistas. O ex-presidente também falou sobre a criação de um Conselho de Defesa Sul-Americano.
Brian Winter, vice-presidente do Conselho das Américas, acrescenta que a eleição de Lula “não deixaria dúvidas” de que a América Latina está se inclinando para a esquerda, considerando os resultados eleitorais dos últimos anos.
“O Brasil é o maior país da região e possui grande importância simbólica. Lula também está preparado para assumir um papel regional como uma espécie de estadista mais velho, caso vença, mas também é verdade que os tempos mudaram desde os anos 2000, quando ele foi presidente – agora não temos um boom de commodities, o que fará uma grande diferença”, disse.
Cimini, da CEBRI, afirmou que, se o petista vencer, o Brasil se unirá ao que muitos analistas chamaram de “segunda maré cor-de-rosa”, termo cunhado na região para se referir à sucessão de vitórias dos governantes de esquerda no início do século XXI.
“Neste cenário, o Brasil poderia retomar seu projeto de construir uma liderança regional sob uma agenda social e econômica renovada. No entanto, se Bolsonaro conseguir a reeleição, o Brasil poderá continuar no caminho do isolamento político, que já está em andamento”, contou a analista.
Mas nem todos concordam com esse ponto de vista. Para Zimmerman, os resultados eleitorais não podem ser necessariamente caracterizados como “algum tipo de mudança decisiva” para a esquerda, mas um reflexo de uma “crescente frustração” com os governos pós-pandemia. “Os baixos índices de aprovação dos líderes de esquerda em países como Argentina, Chile e Peru contam uma história mais complexa”, disse.
Do Mercosul à Amazônia
Outro impacto das eleições na região seria claramente refletido no Mercosul, “um enigma constante”, segundo descrito por Winter, em meio às tensões no bloco sobre os possíveis acordos comerciais do Uruguai (por si só) com a China e com a União Europeia (como um todo). Bolsonaro não marcou presença na cúpula em julho deste ano e, durante o evento do ano passado ele criticou as “visões arcaicas” do bloco comercial.
O vice-presidente do Conselho das Américas não vê um futuro claro para o Mercosul, independentemente de quem vencer as eleições. “Podem me chamar de cínico, mas não acredito que haverá um acordo final entre a União Europeia e o Mercosul: a Europa tem objeções a Bolsonaro, e se Lula for eleito, seus representantes disseram que reabrirão as negociações”, disse.
Cimini explica que o progresso em um acordo entre a UE e o Mercosul dependerá das exigências de ambas as partes. Os europeus demandam compromissos adicionais dos membros latino-americanos, principalmente o Brasil, em relação à proteção do meio ambiente.
“Não está claro se Bolsonaro (caso seja reeleito) está disposto a se comprometer com essas exigências de sustentabilidade ou se a UE aceitará os compromissos de Bolsonaro caso ele aceite o acordo”, acrescenta a analista.
Entretanto, embora possa haver uma chance de superar os obstáculos no que diz respeito à preservação ambiental com Lula na presidência, Cimini espera a revisão de questões importantes de “conteúdo doméstico, direitos de propriedade, política industrial, agricultura, comércio” que possam impedir a ratificação do acordo no curto prazo.
Analistas também esperam que questões ambientais tenham suas diferenças dependendo de quem vencer as eleições, principalmente no que diz respeito à proteção da Amazônia, área compartilhada por nove países da região. Como explica Winter, o aumento das taxas de desmatamento sob o governo Bolsonaro, que ameaçou tirar seu país do Acordo de Paris, tornou-se um impedimento para a ratificação do acordo com a UE.
“O próximo governo enfrentará forte oposição daqueles que se beneficiaram diretamente do atual estado de coisas (basicamente, os agricultores), que também são importantes motores da economia brasileira. Enrijecer as normas ambientais é sempre mais difícil do que relaxá-las”, acrescenta Cimini.
Para Zimmerman, Lula, que considerou a nomeação de um enviado climático para o Brasil, semelhante ao papel de John Kerry no governo americano, enfrentará um cenário externo muito mais adverso se for eleito desta vez, “e é importante lembrar que isto pode limitar sua eficácia em muitas questões, incluindo a Amazônia”. Solano acrescenta que Lula tentará promover uma agenda ambiental porque ele sabe que o Brasil pode ser visto como um gigante da diplomacia sustentável na esfera internacional.
Para Cimini, é certo que o Brasil desempenha “um papel decisivo em qualquer acordo sul-americano e nunca deve se abster da integração regional por razões ideológicas”.
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