De trens a aviões: greves em diferentes setores ameaçam economia global

Funcionários de transporte e logística ao redor do mundo estão exigindo melhores acordos à medida que a inflação consome seus salários

Condições de mercado apertadas e necessidade desses trabalhadores contribuem para maior peso nas mesas de negociações, destaca especialista
Por Augusta Saraiva - Bryce Baschuk
24 de Julho, 2022 | 12:55 PM

Bloomberg — A pandemia de covid-19 colocou uma pressão sem precedentes nas cadeias de suprimentos globais – bem como nos trabalhadores, que mantiveram esses sistemas funcionando, apesar das difíceis condições. Mas parece que a conta agora chegou.

Uma onda de greves e demais protestos trabalhistas está ameaçando as indústrias em todo o mundo, principalmente aquelas que envolvem a movimentação de mercadorias, pessoas e energia. De trabalhadores ferroviários e portuários nos Estados Unidos a campos de gás natural na Austrália e motoristas de caminhão no Peru, os funcionários estão exigindo melhores acordos à medida que a inflação consome seus salários.

Isso porque seus serviços são tão cruciais para a economia mundial agora – com cadeias de suprimentos ainda frágeis e mercados de trabalho apertados –, que esses trabalhadores têm mais poder na mesa de negociação. Quaisquer interrupções causadas por disputas trabalhistas podem aumentar a escassez e os preços crescentes, que ameaçam desencadear recessões.

Isso está encorajando os funcionários de transporte e logística – que abrange tudo, de armazéns a caminhões – a enfrentarem seus chefes, de acordo com Katy Fox-Hodess, professora de relações trabalhistas na Sheffield University Management School, no Reino Unido. Ela chama a atenção para as condições de trabalho já difíceis na indústria após anos de desregulamentação.

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Momento desafiador

“As cadeias de suprimentos globais não foram calibradas para lidar com uma crise como a pandemia, e os empregadores realmente empurraram essa crise para as costas dos trabalhadores”, diz Fox-Hodess.

Os bancos centrais têm se preocupado com o fato de os trabalhadores serem pagos demais e desencadear uma espiral de preços e salários, como a que elevou a inflação na década de 1970. Não há, contudo, sinais disso, dado que os ganhos salariais têm geralmente ficado atrás dos preços, em parte, porque os sindicatos são muito menos poderosos do que eram naquela época.

Mas isso pode mascarar um problema diferente. Grande parte da inflação de hoje decorre de pontos de estrangulamento específicos – e a agitação trabalhista nessas indústrias-chave pode ter efeitos mais amplos sobre os preços. Uma ameaça de greve dos trabalhadores de energia da Noruega, por exemplo, provocou novos tremores nos mercados europeus de gás natural no início deste mês.

Variação do rendimento real do trabalho a partir do quarto trimestre de 2019

Há ainda um risco para o reequilíbrio das economias. Na pandemia, as pessoas compraram mais bens em detrimento de serviços como passagens de avião ou quartos de hotel, pressionando as cadeias de suprimentos e a inflação.

A expectativa é de que os hábitos de consumo voltem à normalidade, com os consumidores ansiosos para retomarem as viagens, por exemplo. Mas greves de comissários de bordo da Ryanair Holdings (RYAAY), bem como de funcionários de aeroportos em Paris e Londres, estão afastando possíveis turistas.

Confira, a seguir, um resumo de alguns dos setores com maior agitação trabalhista que podem abalar a economia global:

Trens e caminhões

Nos Estados Unidos, onde um movimento trabalhista há muito declinante está mostrando sinais de retomada à medida que os sindicatos se estabelecem em empresas como Starbucks (SBUX) e Amazon (AMZN), algumas das maiores disputas estão no setor de transporte. Pairando sobre as cadeias de suprimentos já prejudicadas do país, está a ameaça de uma greve ferroviária que pode paralisar o movimento de mercadorias.

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Após dois anos de negociações malsucedidas com as maiores ferrovias do país, o presidente Joe Biden estabeleceu este mês um painel para resolver uma profunda divergência entre 115 mil trabalhadores e seus empregadores. O Conselho de Emergência Presidencial tem até meados de agosto para apresentar um plano de contrato aceitável para ambos os lados.

Trabalhadores ferroviários do Reino Unido iniciam maior greve ferroviária em três décadas

“Há um mercado de trabalho muito apertado, o que coloca os trabalhadores em uma posição em que eles se sentem empoderados”, disse Eli Friedman, professor associado da Universidade de Cornell. A universidade rastreou 260 greves e cinco lockouts nos EUA envolvendo cerca de 140 mil funcionários em 2021, levando a cerca de 3,27 milhões de dias de greve.

Em muitos países, os caminhoneiros que protestam contra o alto custo do combustível estão na vanguarda da agitação trabalhista. Caminhoneiros no Peru estão realizando uma greve nacional este mês.

Na Argentina, os bloqueios de estradas por motoristas em junho duraram uma semana, atrasando cerca de 350 mil toneladas de colheitas – cerca de 10 pequenas cargas de navios. Na África do Sul, motoristas bloquearam estradas, incluindo uma importante ligação comercial com o país vizinho Moçambique, em uma manifestação contra os preços recordes nos postos de combustíveis.

Portos e navios

A disputa trabalhista que mais preocupa nos EUA é a que envolve mais de 22 mil estivadores na costa oeste. O contrato expirou no início de julho e a International Longshore and Warehouse Union está negociando um novo. Ambos os lados dizem que querem evitar paralisações, que podem fechar portos que lidam com quase metade das importações dos Estados Unidos.

Enquanto isso, o Porto de Oakland, o terceiro mais movimentado da Califórnia, teve que fechar alguns de seus portões e terminais na semana passada – aumentando o tempo de espera para mercadorias importadas –, dado que caminhoneiros bloquearam o acesso em protesto contra uma lei de trabalho temporário, que poderia tirar 70 mil motoristas da estrada.

Mas não é só nos EUA. Na Alemanha, os portos estão sendo afetados depois que uma greve de dois dias no início deste mês piorou os gargalos de carga, prejudicando o transporte e a maior economia da Europa.

Na Coreia do Sul, a indústria de construção naval viu um aumento nos pedidos em meio à crise da cadeia de suprimentos. Trabalhadores protestam há várias semanas em uma doca da Daewoo Shipbuilding & Marine Engineering, na cidade de Geoje, no sul, exigindo um aumento salarial de 30% e uma redução de sua carga de trabalho. A ação já atrasou a produção e a saída do porto de três navios, e o presidente Yoon Suk Yeol pediu aos ministros que resolvam a situação.

Caos no setor aéreo

Além dos meios de transporte por terra e água, a logística aérea também está enfrentando problemas. As disputas trabalhistas contribuíram para o caos das viagens de verão na Europa, com empresas aéreas e ferroviárias já com falta de pessoal após o aperto pandêmico nos mercados de trabalho.

Transportadoras como Ryanair, EasyJet e SAS, da Escandinávia, viram seus horários interrompidos por greves.

Uma paralisação no aeroporto Charles de Gaulle, nos arredores de Paris, forçou o cancelamento de voos, e o Heathrow, em Londres, corria risco de um destino semelhante. A Unite Union, contudo, cancelou uma paralisação proposta na quinta-feira (21), dizendo que havia recebido uma melhor oferta para os aumentos salariais.

Aeroporto de Paris cancela voos em meio a greves

Mesmo na Jamaica, os controladores de voo fizeram uma greve de um dia em 12 de maio para reclamar de salários baixos e longas horas, fechando o espaço aéreo jamaicano e interrompendo as viagens de mais de 10 mil pessoas na ilha caribenha.

Setor de energia também é afetado

Em meio a uma crise de energia na Europa – atingida pela guerra na Ucrânia, com fluxos reduzidos de gás da Rússia –, uma greve de trabalhadores do petróleo na Noruega chegou a ameaçar outro golpe no abastecimento de energia do continente.

A disputa foi resolvida quando o governo interveio para propor um quadro de salários compulsórios. A ministra do Trabalho do país disse que não tinha escolha a não ser intervir, devido ao potencial de “impactos sociais de longo alcance para toda a Europa”. Uma nova escalada da greve poderia ter encerrado mais da metade das exportações de gás da Noruega.

Na Austrália, um dos maiores exportadores mundiais de gás natural liquefeito, os trabalhadores da unidade de produção de GNL flutuante Prelude da Shell (SHEL), na Austrália Ocidental, estenderam a ação industrial até 4 de agosto, de acordo com o sindicato Offshore Alliance. A paralisação interrompeu o carregamento em uma instalação de exportação, ampliando a escassez global de combustível.

Também na África do Sul, grupos trabalhistas da estatal Eskom Holdings SOC ganharam um aumento salarial que praticamente acompanha a inflação, após uma paralisação de uma semana que agravou os cortes de energia no país.

-- Com a colaboração de Josh Eidelson, Lin Zhu, Jim Wyss, Michael McDonald, Jonathan Gilbert, Theophilos Argitis, Zeinab Diouf, Gem Atkinson e Ana Monteiro.

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