Batalha dos VRs: a disputa no Congresso sobre o mercado de R$ 150 bilhões

iFood e startups e grandes grupos como Alelo, Sodexo, Ticket e VR discutem medida que proíbe o deságio em contratos de auxílio alimentação e abre o mercado

Restaurante em São Paulo: grandes empresas disputam o mercado de pagamento de auxílio alimentação
06 de Julho, 2022 | 08:23 AM

Bloomberg Línea — Uma disputa silenciosa por um mercado que movimenta estimados R$ 150 bilhões por ano envolve grandes empresas de um dos maiores setores da economia às vésperas do recesso parlamentar em Brasília.

De um lado, gigantes nacionais e globais como Alelo, Sodexo, Ticket e VR, que dominam 90% do mercado de auxílio alimentação; do outro, startups que buscam ampliar a fatia de 10% que atualmente detêm, das quais a que se destaca é outra gigante, o iFood. Também estão na disputa grandes empresas do país, que pagam o benefício do auxílio alimentação a milhões de trabalhadores. O alvo das negociações é uma medida provisória (MP) que o governo editou para colocar novas regras para o auxílio alimentação pago por empresas a seus trabalhadores por meio de grupos especializados.

PUBLICIDADE

A MP foi editada em março deste ano e teve a validade prorrogada. Está, portanto, em vigor. Mas, para se transformar em lei e não ter mais prazo de validade, algo fundamental para que os contratos entre as partes tenham segurança jurídica, precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado até meados de agosto. A questão é que, até agora, a tramitação não começou - o texto sequer tem relator.

Com o recesso parlamentar iminente, previsto para começar no dia 18 e durar duas semanas, seguido pelo início de fato da campanha eleitoral em agosto, o que costuma esvaziar os gabinetes do Congresso, a chance de aprovação da MP é considerada remota. Se esse cenário se confirmar, a medida perde validade em 17 de agosto, o que deixaria o mercado do auxílio alimentação continuar como está.

Até agora, o texto da medida provisória recebeu mais de 150 emendas apresentadas por deputados na Câmara, das quais 138 pedem a revogação das principais mudanças.

PUBLICIDADE

A MP foi editada pelo governo com o objetivo de levar para o auxílio alimentação as novas regras definidas por um decreto ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT).

O PAT foi criado em 1976 para conceder benefícios fiscais a empresas que oferecessem uma verba extra aos funcionários para que pudessem fazer refeições sem que houvesse aumento de salário. Hoje, as empresas que aderem ao PAT podem descontar o valor gasto com o pagamento do benefício da base de cálculo do Imposto de Renda (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Já o auxílio alimentação foi criado pela reforma trabalhista de 2017 para permitir que empresas possam pagar o benefício de forma genérica, sem aderir ao PAT nem receber os benefícios fiscais, mas sem terem que incorporar a verba ao salário dos empregados. O objetivo foi reduzir o volume de processos judiciais que pedem a inclusão do dinheiro pago como vale refeição ao salário total, algo que aumenta os custos tributários e previdenciários para os empregadores.

PUBLICIDADE

Há duas mudanças principais do decreto, ambas copiada pela MP, que estão no centro da discórdia. Uma proíbe o “deságio”, também conhecido como “taxa negativa” ou “rebate” (com a pronúncia em inglês). É um desconto oferecido pelas maiores empresas de pagamento de benefícios - chamadas de “tiqueteiras”, no jargão do mercado - às empresas em troca da assinatura do contrato. A outra abre o mercado para a oferta do benefício e de outros serviços relacionados (ver abaixo).

O valor “perdido” pelas empresas que oferecem o desconto acaba sendo recuperado de duas formas: com a conquista de mercado, ou seja, um volume maior de trabalhadores na respectiva base; e por meio das taxas cobradas dos restaurantes que aceitam os cartões de benefício. São taxas que variam de 5% a 8% sobre o valor da refeição paga com auxílio-alimentação, segundo apresentação feita a parlamentares pela Câmara-e.net, uma associação que representa empresas da chamada economia digital.

Fim do ‘almoço grátis’

A Câmara-e.net defende que o fim do deságio “pode trazer inúmeras vantagens para o trabalhador ao incentivar a inovação e a concorrência em um setor altamente concentrado, e isso se traduz em comida mais barata”, conforme disse em e-mail enviado à Bloomberg Línea.

PUBLICIDADE

Seria, portanto, o fim da ilusão do almoço grátis. A expressão foi consagrada por um dos pais da economia liberal, Milton Friedman, na década de 1970, e aponta que qualquer benefício ou desconto oferecido por governos e empresas tem na verdade um custo embutido que é pago por alguém.

Uma das empresas que têm capitaneado os esforços em prol da aprovação da MP é o iFood, startup líder do mercado de entregas de refeições no país. Para o iFood, acabar com a prática do desconto permitiria que, na ponta final, restaurantes pudessem operar com taxas menores, o que abriria espaço para cobrar preços menores dos seus clientes a fim de aumentar ou manter a demanda.

“Entendemos que o grande beneficiário da MP é o trabalhador”, disse João Sabino, diretor de políticas públicas do iFood, à Bloomberg Línea.

“Como a MP igualou as regras do PAT às do auxílio alimentação e proibiu o ‘rebate’, o trabalhador voltou a ficar no centro da política pública”, diz ele.

Segundo ele, a permissão do deságio propiciou as condições para que o fornecimento dos benefícios de alimentação tivesse a configuração atual do setor, que ele descreve como “um negócio entre quatro empresas que controlam 90% do mercado e os setores de RH das grandes companhias”.

Sabino se refere às maiores empresas do país no ramo: Sodexo, VR, Ticket e Alelo. As quatro empresas foram procuradas pela Bloomberg Línea, mas disseram que se pronunciariam por meio da associação do setor, a Associação Brasileira de Benefícios ao Trabalhador (ABBT).

A ABBT disse à Bloomberg Línea que não é contra o fim do deságio. “Se tem uma entidade que é contra o ‘rebate’, essa entidade é a ABBT. E o motivo é óbvio: nós sabemos que essa taxa negativa é um desvirtuamento do mercado”, disse o presidente do conselho da ABBT, Alaor Aguirre.

Segundo Aguirre, a ABTT representa cerca de 20 empresas que pagam benefícios alimentação e que respondem por 95% do mercado. “Todas elas são a favor do fim do desconto”, afirmou. “Quem se beneficia são as grandes empresas, que recebem os descontos.”

A Associação Brasileira de RH (ABRH), que representa essa área em grandes companhias do país, afirmou que é contra o fim do deságio. “Trata-se de uma relação comercial e o governo não deveria intervir. Se há desconto e isso não afeta o trabalhador, é uma questão de concorrência, e concorrência é mercado. Se a empresa oferece deságio, não há problema algum”, diz o diretor jurídico da entidade, Wolnei Ferreira, em entrevista à Bloomberg Línea.

O mesmo argumento consta de emendas apresentadas à MP por deputados para tentar derrubar a proibição ao deságio. Alguns dos deputados citam a ABRH, que diz ter apresentado seus argumentos e, uma audiência pública convocada pelo governo antes da edição do decreto.

Embora o deságio não seja considerada uma prática ilegal pelas regras atuais, tribunais de contas já suspenderam contratos que previam a oferta do desconto a estatais.

Abertura do mercado

A medida provisória foi editada pelo governo logo depois que as empresas de benefícios, as “tiqueteiras”, questionaram o decreto que mudou o PAT no Supremo Tribunal Federal (STF). Em ação direta de inconstitucionalidade, a ABBT afirma que o decreto tratou de assuntos que só poderiam ser definidos em lei - a Procuradoria-Geral da República (PGR) já se posicionou contra a ação.

Mas a entidade não questiona o deságio. A ação se volta contra outra novidade do decreto, reproduzida pela MP: o arranjo aberto de pagamentos. Antes do decreto, só empresas fornecedoras do benefício poderiam oferecer serviços relacionados ao tíquete alimentação, como o cadastro de restaurantes e de trabalhadores e o sistema de pagamento. Ou seja, a MP abre o mercado de vez.

Com o arranjo aberto, esses serviços podem ser distribuídos entre diversas empresas. Para a Câmara-e.net, que representa startups como o iFood, isso “aumentará a inovação no setor com a entrada de novos players, ocasionando a consequente redução das taxas”. Há startups como Caju e Flash como partes interessadas de um mercado que é considerado um dos mais promissores da economia.

De acordo com a entidade, as taxas cobradas dos restaurantes vão se aproximar dos valores cobrados pelas operadoras de cartão de crédito e débito, de entre 0,5% e 2,5%. A tese é a de que essa redução de custos será repassada aos trabalhadores pelos donos de restaurantes.

Mas a ABBT diz que a mudança vai “financeirizar” o mercado e prejudicar suas associadas.

Na ação, a ABBT, que representa Sodexo, VR, Ticket e Alelo, afirma que diversas empresas já têm o sistema de arranjo aberto implementado e em operação, “causando enormes prejuízos não somente às empresas associadas da ABBT como também para as empresas beneficiárias do PAT, que têm sofrido com perdas dos benefícios tributários e aos trabalhadores”.

Alaor Aguirre, presidente do conselho da ABBT, disse à Bloomberg Línea que hoje existem cerca de 600 mil estabelecimentos credenciados nas redes das fornecedoras de tíquetes. Caso o arranjo aberto seja permitido, esse número pode saltar para três ou quatro milhões. “Vai ficar impossível fiscalizar a qualidade da alimentação e das refeições oferecidas, obrigação que cabe às ‘tiqueteiras’. E, em vez de o cartão ser destinado para a alimentação, vai ser usado para qualquer coisa”, disse o executivo.

A ABBT cita o iFood na ação que ajuizou no Supremo. A acusação é que o iFood, que já oferece um auxílio alimentação, chamado iFood Benefícios, já pratica o arranjo aberto em suas plataformas. E, segundo a ABBT, esse dinheiro pode ser usado para qualquer produto ou serviço, não só para alimentação.

A pedido da ABBT, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) abriu um inquérito contra o iFood. A acusação é que o aplicativo oferece “benefícios cruzados”, como desconto nas taxas de entrega, a quem contratar o iFood Benefícios, o que seria uma prática anticoncorrencial.

O iFood nega irregularidades. “As alegações são infundadas. A plataforma não exerce ação que impeça a atuação de players de pagamento. Ter uma modalidade de pagamento ou outra é uma atribuição do parceiro cadastrado. Quanto mais opções de pagamento, melhor para o cliente”, disse a empresa em nota.

Leia também:

O tamanho do crescente mercado de armas para pessoas físicas no Brasil

Como o Brasil conseguiu destruir sua própria indústria de fertilizantes

Pedro Canário

Repórter de Política da Bloomberg Línea no Brasil. Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero em 2009, tem ampla experiência com temas ligados a Direito e Justiça. Foi repórter, editor, correspondente em Brasília e chefe de redação do site Consultor Jurídico (ConJur) e repórter de Supremo Tribunal Federal do site O Antagonista.