Bloomberg Línea — Uma disputa silenciosa por um mercado que movimenta estimados R$ 150 bilhões por ano envolve grandes empresas de um dos maiores setores da economia às vésperas do recesso parlamentar em Brasília.
De um lado, gigantes nacionais e globais como Alelo, Sodexo, Ticket e VR, que dominam 90% do mercado de auxílio alimentação; do outro, startups que buscam ampliar a fatia de 10% que atualmente detêm, das quais a que se destaca é outra gigante, o iFood. Também estão na disputa grandes empresas do país, que pagam o benefício do auxílio alimentação a milhões de trabalhadores. O alvo das negociações é uma medida provisória (MP) que o governo editou para colocar novas regras para o auxílio alimentação pago por empresas a seus trabalhadores por meio de grupos especializados.
A MP foi editada em março deste ano e teve a validade prorrogada. Está, portanto, em vigor. Mas, para se transformar em lei e não ter mais prazo de validade, algo fundamental para que os contratos entre as partes tenham segurança jurídica, precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado até meados de agosto. A questão é que, até agora, a tramitação não começou - o texto sequer tem relator.
Com o recesso parlamentar iminente, previsto para começar no dia 18 e durar duas semanas, seguido pelo início de fato da campanha eleitoral em agosto, o que costuma esvaziar os gabinetes do Congresso, a chance de aprovação da MP é considerada remota. Se esse cenário se confirmar, a medida perde validade em 17 de agosto, o que deixaria o mercado do auxílio alimentação continuar como está.
Até agora, o texto da medida provisória recebeu mais de 150 emendas apresentadas por deputados na Câmara, das quais 138 pedem a revogação das principais mudanças.
A MP foi editada pelo governo com o objetivo de levar para o auxílio alimentação as novas regras definidas por um decreto ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT).
O PAT foi criado em 1976 para conceder benefícios fiscais a empresas que oferecessem uma verba extra aos funcionários para que pudessem fazer refeições sem que houvesse aumento de salário. Hoje, as empresas que aderem ao PAT podem descontar o valor gasto com o pagamento do benefício da base de cálculo do Imposto de Renda (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Já o auxílio alimentação foi criado pela reforma trabalhista de 2017 para permitir que empresas possam pagar o benefício de forma genérica, sem aderir ao PAT nem receber os benefícios fiscais, mas sem terem que incorporar a verba ao salário dos empregados. O objetivo foi reduzir o volume de processos judiciais que pedem a inclusão do dinheiro pago como vale refeição ao salário total, algo que aumenta os custos tributários e previdenciários para os empregadores.
Há duas mudanças principais do decreto, ambas copiada pela MP, que estão no centro da discórdia. Uma proíbe o “deságio”, também conhecido como “taxa negativa” ou “rebate” (com a pronúncia em inglês). É um desconto oferecido pelas maiores empresas de pagamento de benefícios - chamadas de “tiqueteiras”, no jargão do mercado - às empresas em troca da assinatura do contrato. A outra abre o mercado para a oferta do benefício e de outros serviços relacionados (ver abaixo).
O valor “perdido” pelas empresas que oferecem o desconto acaba sendo recuperado de duas formas: com a conquista de mercado, ou seja, um volume maior de trabalhadores na respectiva base; e por meio das taxas cobradas dos restaurantes que aceitam os cartões de benefício. São taxas que variam de 5% a 8% sobre o valor da refeição paga com auxílio-alimentação, segundo apresentação feita a parlamentares pela Câmara-e.net, uma associação que representa empresas da chamada economia digital.
Fim do ‘almoço grátis’
A Câmara-e.net defende que o fim do deságio “pode trazer inúmeras vantagens para o trabalhador ao incentivar a inovação e a concorrência em um setor altamente concentrado, e isso se traduz em comida mais barata”, conforme disse em e-mail enviado à Bloomberg Línea.
Seria, portanto, o fim da ilusão do almoço grátis. A expressão foi consagrada por um dos pais da economia liberal, Milton Friedman, na década de 1970, e aponta que qualquer benefício ou desconto oferecido por governos e empresas tem na verdade um custo embutido que é pago por alguém.
Uma das empresas que têm capitaneado os esforços em prol da aprovação da MP é o iFood, startup líder do mercado de entregas de refeições no país. Para o iFood, acabar com a prática do desconto permitiria que, na ponta final, restaurantes pudessem operar com taxas menores, o que abriria espaço para cobrar preços menores dos seus clientes a fim de aumentar ou manter a demanda.
“Entendemos que o grande beneficiário da MP é o trabalhador”, disse João Sabino, diretor de políticas públicas do iFood, à Bloomberg Línea.
“Como a MP igualou as regras do PAT às do auxílio alimentação e proibiu o ‘rebate’, o trabalhador voltou a ficar no centro da política pública”, diz ele.
Segundo ele, a permissão do deságio propiciou as condições para que o fornecimento dos benefícios de alimentação tivesse a configuração atual do setor, que ele descreve como “um negócio entre quatro empresas que controlam 90% do mercado e os setores de RH das grandes companhias”.
Sabino se refere às maiores empresas do país no ramo: Sodexo, VR, Ticket e Alelo. As quatro empresas foram procuradas pela Bloomberg Línea, mas disseram que se pronunciariam por meio da associação do setor, a Associação Brasileira de Benefícios ao Trabalhador (ABBT).
A ABBT disse à Bloomberg Línea que não é contra o fim do deságio. “Se tem uma entidade que é contra o ‘rebate’, essa entidade é a ABBT. E o motivo é óbvio: nós sabemos que essa taxa negativa é um desvirtuamento do mercado”, disse o presidente do conselho da ABBT, Alaor Aguirre.
Segundo Aguirre, a ABTT representa cerca de 20 empresas que pagam benefícios alimentação e que respondem por 95% do mercado. “Todas elas são a favor do fim do desconto”, afirmou. “Quem se beneficia são as grandes empresas, que recebem os descontos.”
A Associação Brasileira de RH (ABRH), que representa essa área em grandes companhias do país, afirmou que é contra o fim do deságio. “Trata-se de uma relação comercial e o governo não deveria intervir. Se há desconto e isso não afeta o trabalhador, é uma questão de concorrência, e concorrência é mercado. Se a empresa oferece deságio, não há problema algum”, diz o diretor jurídico da entidade, Wolnei Ferreira, em entrevista à Bloomberg Línea.
O mesmo argumento consta de emendas apresentadas à MP por deputados para tentar derrubar a proibição ao deságio. Alguns dos deputados citam a ABRH, que diz ter apresentado seus argumentos e, uma audiência pública convocada pelo governo antes da edição do decreto.
Embora o deságio não seja considerada uma prática ilegal pelas regras atuais, tribunais de contas já suspenderam contratos que previam a oferta do desconto a estatais.
Abertura do mercado
A medida provisória foi editada pelo governo logo depois que as empresas de benefícios, as “tiqueteiras”, questionaram o decreto que mudou o PAT no Supremo Tribunal Federal (STF). Em ação direta de inconstitucionalidade, a ABBT afirma que o decreto tratou de assuntos que só poderiam ser definidos em lei - a Procuradoria-Geral da República (PGR) já se posicionou contra a ação.
Mas a entidade não questiona o deságio. A ação se volta contra outra novidade do decreto, reproduzida pela MP: o arranjo aberto de pagamentos. Antes do decreto, só empresas fornecedoras do benefício poderiam oferecer serviços relacionados ao tíquete alimentação, como o cadastro de restaurantes e de trabalhadores e o sistema de pagamento. Ou seja, a MP abre o mercado de vez.
Com o arranjo aberto, esses serviços podem ser distribuídos entre diversas empresas. Para a Câmara-e.net, que representa startups como o iFood, isso “aumentará a inovação no setor com a entrada de novos players, ocasionando a consequente redução das taxas”. Há startups como Caju e Flash como partes interessadas de um mercado que é considerado um dos mais promissores da economia.
De acordo com a entidade, as taxas cobradas dos restaurantes vão se aproximar dos valores cobrados pelas operadoras de cartão de crédito e débito, de entre 0,5% e 2,5%. A tese é a de que essa redução de custos será repassada aos trabalhadores pelos donos de restaurantes.
Mas a ABBT diz que a mudança vai “financeirizar” o mercado e prejudicar suas associadas.
Na ação, a ABBT, que representa Sodexo, VR, Ticket e Alelo, afirma que diversas empresas já têm o sistema de arranjo aberto implementado e em operação, “causando enormes prejuízos não somente às empresas associadas da ABBT como também para as empresas beneficiárias do PAT, que têm sofrido com perdas dos benefícios tributários e aos trabalhadores”.
Alaor Aguirre, presidente do conselho da ABBT, disse à Bloomberg Línea que hoje existem cerca de 600 mil estabelecimentos credenciados nas redes das fornecedoras de tíquetes. Caso o arranjo aberto seja permitido, esse número pode saltar para três ou quatro milhões. “Vai ficar impossível fiscalizar a qualidade da alimentação e das refeições oferecidas, obrigação que cabe às ‘tiqueteiras’. E, em vez de o cartão ser destinado para a alimentação, vai ser usado para qualquer coisa”, disse o executivo.
A ABBT cita o iFood na ação que ajuizou no Supremo. A acusação é que o iFood, que já oferece um auxílio alimentação, chamado iFood Benefícios, já pratica o arranjo aberto em suas plataformas. E, segundo a ABBT, esse dinheiro pode ser usado para qualquer produto ou serviço, não só para alimentação.
A pedido da ABBT, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) abriu um inquérito contra o iFood. A acusação é que o aplicativo oferece “benefícios cruzados”, como desconto nas taxas de entrega, a quem contratar o iFood Benefícios, o que seria uma prática anticoncorrencial.
O iFood nega irregularidades. “As alegações são infundadas. A plataforma não exerce ação que impeça a atuação de players de pagamento. Ter uma modalidade de pagamento ou outra é uma atribuição do parceiro cadastrado. Quanto mais opções de pagamento, melhor para o cliente”, disse a empresa em nota.
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