O tamanho do crescente mercado de armas para pessoas físicas no Brasil

Fabricantes ampliam receitas na casa de dois dígitos ao ano em segmento que teve alta de 262% do número de civis que registraram armas a partir de 2019

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Bloomberg Línea — Três anos e meio depois da chegada ao poder de um presidente a favor de que pessoas físicas tenham a posse de armas para ser defender, a indústria de armas leves no Brasil se descolou da economia de baixo crescimento e se destaca como um dos setores com maior dinamismo nos negócios. É uma expansão alavancada pela aquisição de produtos por pessoas físicas no país.

De acordo com dados compartilhados com a Bloomberg Línea pelo Instituto Igarapé, um think tank dedicado a questões de segurança pública, climática e digital, pessoas civis registraram 1,6 milhão de armas desde o início do governo Bolsonaro. Do começo de 2018 até 2021, o número de armas nas mãos de civis aumentou 131%, o que representa uma expansão média anual de 32,2%.

O crescimento anual na casa de dois dígitos do setor de armas no Brasil é superior ao do mercado internacional. As 100 maiores empresas do setor no mundo aumentaram suas vendas em termos reais em apenas 1,3% entre 2020 e 2021, com faturamento de US$ 531 bilhões, de acordo com levantamento do Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês).

Os Estados Unidos representam 54% dessas vendas. O país, que tem extensa tradição de vendas de armas para pessoas físicas, teve queda nos registros entre 2020 e 2021, mas o mercado veio de crescimento nos anos anteriores. Segundo o banco de consultas a antecedentes criminais para vendas de armas (Nics, na sigla em inglês) mantido pelo FBI (Federal Bureau of Investigation), civis registraram 39,6 milhões de armas em 2020, 71% a mais que em 2019. Em 2021, foram registradas 38,8 milhões armas, queda anual de 2%.

De acordo com o Nics, existem 424,8 milhões de armas nas mãos de civis nos EUA, para uma população de 332,4 milhões de pessoas, o que dá uma média de 1,28 arma para cada habitante. No Brasil, essa média, tomando como base o dado do Instituto Igarapé, é de 0,0075 arma por habitante.

Os números de faturamento dos fabricantes de armas instalados no Brasil são escassos. A Bloomberg Línea buscou diferentes fontes nas últimas semanas para fazer um cruzamento de dados que pudesse dar a dimensão do tamanho e da evolução dessa indústria no país. Muitos dos dados foram coletados com base na Lei de Acesso à Informação e por meio de ONGs que se dedicam a questões de segurança pública, uma vez que os representantes dessa indústria não divulgam informações de mercado.

A Aniam (Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições) estimou recentemente à VEJA que o mercado brasileiro movimenta R$ 5 bilhões por ano. A estimativa anterior da entidade apontava R$ 3,5 bilhões. A Aniam foi procurada pela Bloomberg Línea, mas não quis se pronunciar.

Outras fontes de informações corroboram esse crescimento do mercado de armas para civis no país. O número de pessoas registradas como colecionadores, atiradores esportivos ou caçadores, que integram uma categoria conhecida como CACs, chegou a 605.313 em março deste ano (número mais recente disponível), segundo dados levantados pela ONG Instituto Sou da Paz. Em julho de 2019, na primeira vez que o dado foi compilado pela ONG, os CACs eram 167.390. Um aumento de 262%.

Para fins de ilustrar o que representa esse número, o Brasil conta com 406 mil policiais militares (PMs) na ativa, enquanto as Forças Armadas têm 356 mil militares na ativa, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e o Ministério da Defesa.

O crescimento das compras por pessoas físicas é explicitado por outros dados colaterais produzidos pelas autoridades que registram armamentos no país. Havia 794,9 mil armas nas mãos de colecionadores, atiradores esportivos e caçadores até setembro de 2021, conforme dados levantados pelo Instituto Sou da Paz junto ao Exército por meio da Lei de Acesso à Informação e enviados à Bloomberg Línea.

Trata-se de um aumento de 17% em relação ao fechamento de 2020, quando o número de armas nas mãos dos CACs era de 569,7 mil - após um crescimento de 32% em relação ao ano anterior.

A Polícia Federal, que registra as armas em mãos de pessoas particulares, estima que oito em cada dez armas vendidas no mercado brasileiro recentemente estejam nas mãos de civis e que o restante vai para empresas de segurança privada ou compras governamentais, conforme dados levantados pelo site de notícias Fiquem Sabendo, especializado no uso da Lei de Acesso à Informação.

Para especialistas, os números de expansão do setor nos anos recentes, dos quais mais de dois com baixo crescimento do país em meio à pandemia - o PIB avançou cerca de 2% do fim de 2018 até o término de 2021 -, têm relação direta com dois decretos do presidente Jair Bolsonaro (PL).

Um decreto permitiu aos civis registrados como CACs (colecionadores, atiradores esportivos ou caçadores) ter até 60 armas, das quais 30 podem ser de calibre restrito ao uso de forças de segurança.

O outro decreto, de janeiro de 2019, mudou a interpretação do Estatuto do Desarmamento, uma lei federal, para facilitar o registro de armas por civis. O Estatuto diz que, para ter acesso a uma arma, é necessário comprovar à PF a “efetiva necessidade” do registro. O decreto determina que a “efetiva necessidade” da posse de uma arma fica presumida depois do envio dos documentos necessários.

Essa relação causa-efeito não se dá por acaso, segundo o pesquisador Mateus Tobias Vieira, autor de uma dissertação de mestrado em Ciências Sociais na Unesp (Universidade Estadual Paulista) sobre o mercado de armas. Ele diz que a principal característica do setor no Brasil é a relação próxima com o Estado.

“De um lado, temos a indústria, que sempre foi protegida pelo Estado, especialmente pela União. E, de outro, o mercado consumidor, que depois de anos de queda na demanda a partir do Estatuto do Desarmamento em 2003, voltou a crescer estimulado pelo presidente Bolsonaro”, afirma.

Do lado da indústria, existe um “oligopólio que é quase um monopólio”, diz Vieira. “São três grandes empresas, a Imbel, a Taurus e a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC). A Imbel é estatal, e a CBC, que havia sido comprada por uma empresa estrangeira, foi renacionalizada — com dinheiro do BNDES — em 1979 e hoje é a acionista controladora da Taurus”, diz. “É tudo como se fosse uma empresa só.”

Do lado do mercado consumidor, segundo o pesquisador, houve um “esvaziamento total da regulação trazida pelo Estatuto do Desarmamento por meio de decretos que também serviram para aquecer o mercado”. “A ditadura editou, em 1965, um decreto que proibia a instalação de fábricas estrangeiras de armas no Brasil e a importação de armas por brasileiros. Essas medidas protecionistas só foram cair no governo Temer. E agora temos o Bolsonaro dizendo que todos têm o direito de ter uma arma.”

Taurus: domínio de mercado

Negociada na bolsa de valores brasileira, a B3, a Taurus (TASA4) vive seus melhores anos de negócios no governo Bolsonaro. Em 2021, a Taurus alcançou lucro líquido de R$ 635,1 milhões com a venda de 2,3 milhões de armas de fogo - o ganho financeiro foi equivalente a 2,4 vezes o resultado de 2020. O volume vendido cresceu 45% na base anual, e as receitas líquidas, 47%, totalizando R$ 2,741 bilhões.

Em 2018, a Taurus havia registrado receitas líquidas de R$ 845,3 milhões, o que significa que a companhia cresceu 224% nos últimos três anos - ou 48% na média anual desde então.

A empresa também anunciou o pagamento de R$ 194,3 milhões em dividendos. Foi a primeira vez que distribuiu dividendos aos acionistas desde 2013.

Junto com a CBC (Companhia Brasileira de de Cartuchos), a fabricante com sede em São Leopoldo (Rio Grande do Sul) detém estimados 78% do mercado nacional.

No balanço financeiro relativo a 2021, a Taurus disse ter alcançado o posto de líder mundial em vendas de armas leves entre empresas de capital aberto. Segundo o site Gun Genious, que publica periodicamente dados de vendas de armas e baixo calibre, a Taurus G2, uma 9 mm, foi a sexta arma mais vendida do mundo na categoria em 2021. No Brasil, esse modelo custa em média entre R$ 3.500 e R$ 4.500, a depender das especificações, e encabeça as listas de mais vendidas também em lojas nacionais.

A Taurus hoje é uma empresa voltada para o mercado americano, segundo a analista Flávia Ozawa, que cobre a Taurus para a casa de análises Eleven Financial. Segundo o balanço da companhia, 70% de suas vendas são para os Estados Unidos, onde recentemente inaugurou uma fábrica exclusivamente dedicada ao mercado local, na cidade de Bainbridge, no estado da Geórgia.

O desempenho da Taurus não está ligado diretamente ao crescimento da indústria de armas no Brasil com ações tomadas no governo Bolsonaro - foram 41 atos do Executivo entre decretos, portarias e resoluções, segundo levantamento do Instituto Sou da Paz -, diz a analista de mercado. De acordo com Ozawa, a expansão se relaciona com a reestruturação interna iniciada em 2013 e concluída em 2015.

“Hoje, é outra empresa. O endividamento era uma questão [de preocupação do mercado] e hoje não é mais, está em 0,2% do Ebitda [indicador de geração de caixa operacional]. Havia muitos problemas reputacionais, com relatos de armas que não funcionavam ou disparavam sozinhas por causa de um processo artesanal de fabricação e havia questões de governança. Tudo isso parece resolvido, e a empresa entrou em 2019 e 2020 preparada para aproveitar os bons anos tanto aqui no Brasil quanto nos EUA”, diz a analista.

Ozawa afirma que, enquanto no Brasil houve uma redução das restrições para a compra de armas por pessoas físicas, nos EUA o mercado é “movido a riscos”. “Lá, o que se percebe é que o consumidor reage a grandes acontecimentos e ao risco que ele avalia que corre. E os anos de 2020 e 2021 foram recheados de grandes eventos, com a eleição presidencial e a vitória dos Democratas e a pandemia”, analisa.

A Taurus recusou os pedidos de entrevista feitos pela Bloomberg Línea ao longo das últimas semanas.

Importações em alta

Atualmente é possível para uma pessoa civil com porte adquirir armas de fabricantes internacionais como a austríaca Glock, a italiana Beretta e a americana Smith & Wesson em lojas físicas no país. Isso é reflexo da flexibilização das normas que abriram caminho para que as importações aumentassem.

Em 2021, as importações de armas totalizaram US$ 43,6 milhões (R$ 218 milhões ao câmbio dos dias de hoje). Um ano antes, esse volume havia sido de US$ 35,41 milhões, conforme a ComexStat, portal do governo brasileiro com dados de comércio exterior (importações e exportações).

Do início do governo Bolsonaro em 2019 até o final do ano passado, o crescimento das importações foi de 57%. Os dados, porém, estão incompletos, uma vez que as informações que dizem respeito à segurança nacional e à defesa do país, como as compras feitas pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI), são mantidas em sigilo pelo governo.

Segundo a gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, muito do crescimento se deve a uma portaria do Ministério da Defesa de abril de 2020 que facilitou as importações de armas. No mesmo ano, o Ministério da Economia zerou o Imposto de Importação sobre revólveres e pistolas (a maioria das importações), mas a medida foi suspensa pelo ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal.

Em julho de 2021, o governo federal também revogou o Imposto de Exportação cobrado sobre as armas vendidas a países da América do Sul e do Caribe.

Na esteira do aumento do volume de armas em mãos de civis no país, a venda de munições dobrou desde 2018. Foram 195,7 milhões de munições vendidas em 2018, quantidade que passou para 393,4 milhões, em 2021, segundo dados levantados pelo portal R7 por meio da Lei de Acesso à Informação.

Do total de munições e cartuchos vendidos no ano passado, 241,1 milhões foram para o mercado de varejo, o que exclui as empresas de segurança e os consumidores institucionais, como as Forças Armadas e as polícias. De 2018 até o ano passado, o crescimento das vendas para o varejo foi de 154%.

Em dezembro do ano passado, o então ministro da Defesa, general Braga Netto, disse que a indústria de defesa (que envolve, além de armas e munições, equipamentos, veículos e peças) exportou o equivalente a R$ 1,5 bilhão até novembro daquele ano e que a expectativa era fechar 2021 com R$ 2 bilhões em exportações. Os dados não foram atualizados pela pasta nem pela associação representativa do setor, a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde). A entidade diz representar cerca de 200 empresas do setor, que é composto ao todo por 1.100 companhias.

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