Venezuela: país socialista agora tem cassinos e Ferraris

O país comandado por Nicolás Maduro atravessa um momento em que tudo pode levar a um novo caminho de prosperidade - ou desmoronar com a mesma rapidez

Ferrari em concessionária no bairro de Las Mercedes, em Caracas: símbolo de riqueza dos novos tempos na Venezuela
Por Andreina Itriago Acosta - Nicolle Yapur y Ezra Fieser
15 de Junho, 2022 | 09:06 AM

Bloomberg Línea — Perto das 22h30, apostadores já estão dispostos em frente às máquinas caça-níqueis do cassino. Garçons oferecem bebidas grátis, dançarinos se mexem ao som do merengue e jogadores de bingo competem por um prêmio de US$ 500 próximos às mesas de pôquer. À meia-noite de uma sexta-feira em maio, um sortudo ganha uma rifa de uma motocicleta Yamaha de US$ 2.900 e troca as chaves por dinheiro.

É Las Vegas, porém com um toque latino. Não muito tempo atrás, o jogo era ilegal em Caracas, um reduto da extrema esquerda. Hugo Chávez, líder populista da Venezuela que morreu em 2013, proibiu os cassinos anteriormente, dizendo que causavam degeneração social comparável à “prostituição, vício e drogas”.

Mas esses dias já se foram e isso fica claro para quem visita Las Mercedes - o movimentado bairro ao leste do centro da cidade, onde o novo cassino Humboldt fica localizado. “Na última década, precisávamos de um lugar como este, onde pudéssemos nos divertir”, diz María Elena Millán, uma corretora de imóveis de 52 anos, antes de ir para a roleta com seu marido.

Mais de duas dúzias de torres de escritórios se erguem nas laterais das ruas estreitas do distrito de Las Mercedes. No térreo da Torre Jalisco, de 15 andares, quem passa pode se maravilhar com três Ferraris vermelhas expostas em uma concessionária. O conversível Portofino de quatro lugares mais barato é vendido por mais de US$ 200 mil, equivalente ao salário anual de 590 funcionários públicos em começo de carreira. Do outro lado da rua, um prédio residencial está em construção.

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Il Bacio, varejista de luxo em Las Mercedes

Uma propaganda anuncia que a cobertura terá piscina, sala de jogos, academia e espaço de coworking. Logo na esquina, uma loja de departamentos vende roupas Hermès e Pronovias. Não muito longe, uma loja exibe sapatos de salto de US$ 1 mil de Gianvito Rossi, um designer de Milão.

Essa atmosfera representa uma nítida mudança, ainda em seus estágios iniciais e disponível apenas para os mais ricos deste país de 30 milhões de pessoas. Até recentemente, a economia venezuelana era vista como um caso perdido econômico, com hiperinflação se aproximando de 2.000.000% ao ano. Sua moeda, o bolívar, valia tão pouco que os criminosos nem se preocupavam em roubá-la, e empreendedores natos usavam as cédulas em artesanato para vender aos turistas por alguns dólares americanos.

A transformação do bairro vem acontecendo depois de uma surpreendente mudança bastante radical do presidente Nicolás Maduro, ex-vice-presidente escolhido por Chávez como seu sucessor. Nos últimos três anos, Maduro aliviou as restrições às empresas, bem como os controles e as regulamentações de preços; e, no ano passado, decidiu suspender a proibição de cassinos.

Mas a mudança mais significativa veio no final de 2018, quando Maduro permitiu que o dólar americano circulasse legalmente. Todos, de executivos a vendedores ambulantes, agora carregam dólares, o que poderia significar prisão sob o comando de Chávez. “A dolarização ajudou muito”, diz Andrea Malavé, gerente geral da loja Paw3r em Las Mercedes, que vende camisetas e leggings esportivas numa versão venezuelana da marca canadense Lululemon.

Malavé lembra como ela e seus sete funcionários lutaram para lidar com os aumentos de preços. Agora que a inflação está mais sob controle, seu negócio tem prosperado. As camisetas Paw3r, última tendência entre jovens e atletas, estão por toda parte. A empresa agora tem 30 funcionários trabalhando em duas lojas na regição leste de Caracas, e há planos de abrir mais duas unidades até o final do ano.

Dados mostram que a economia está mesmo melhorando. Em janeiro, a hiperinflação acabou oficialmente. Alguns dos seis milhões de venezuelanos que migraram para outros países da região em busca de uma vida melhor também começaram a voltar para suas casas.

A indústria poderia crescer até 10% este ano, isso se o governo estimular o consumo, reduzir impostos sobre importações, melhorar os serviços públicos e a política fiscal, disse Luigi Pisella, presidente da Conindustria, a confederação venezuelana de indústrias do país.

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A Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo e é um tesouro que pode se tornar ainda mais valioso à medida que os países cortam as importações da Rússia como boicote depois da invasão e do ataque à Ucrânia. E, no entanto, ainda 90% do país vive na pobreza, sobrevivendo com apenas US$ 30 por mês.

A indústria petrolífera estatal definha com a falta de investimentos. Além disso, Maduro já disse que a dolarização não veio pra ficar. De muitas maneiras, ele se apega à identidade revolucionária da Venezuela para manter vivo o legado de Chávez. Um exemplo disso é que ele apoia o presidente russo Vladimir Putin, assina acordos de petróleo com o Irã e defende outros esquerdistas latino-americanos em Cuba e também na Nicarágua. “Essa estabilização é bastante frágil”, diz Luis Arturo Bárcenas, economista sênior da Ecoanalítica, uma empresa de análise financeira de Caracas.

Em suma, a economia da Venezuela atravessa um momento em que tudo pode levar a um novo caminho - ou simplesmente desmoronar com a mesma rapidez.

Mudanças e contrastes

O governo de Maduro eliminou impostos sobre milhares de produtos importados, incluindo matérias-primas essenciais para a indústria local. Em questão de meses, as prateleiras vazias das lojas ficaram cheias de itens importados, muitas vezes vendidos mais baratos do que os produtos locais.

A disponibilidade de alimentos trouxe uma certa sensação de normalidade a algumas regiões do país, reprimindo os ressentimentos contra o governo. No entanto, diante de problemas econômicos estruturais não resolvidos, alguns economistas venezuelanos céticos chamam o momento de “pax bodegónica” - uma espécie de pausa na crise.

A Venezuela foi um dos únicos países das Américas a reduzir drasticamente seu déficit durante o pico da pandemia, contrariando a tendência global. O déficit foi reduzido de 30% do PIB para menos de 5%, segundo o economista e professor da Universidade Central da Venezuela em Caracas, Luis Oliveros. Isso aconteceu porque o governo implementou um tipo de austeridade normalmente imposta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), instituição responsável pela estabilidade financeira global.

Uma cena comum na região: construções e carros de luxo estacionados

A virada para mercados mais livres também trouxe de volta um consumismo bastante chamativo, típico da Venezuela dos anos 1970. Ao aceitar alguns elementos do capitalismo ao estilo americano, Maduro avançou com dois objetivos: acabar com a crise financeira dos anos 2010 e manter Juan Guaidó, o líder da oposição apoiado pelos EUA em 2019, sob controle.

Há três anos, os EUA endureceram as sanções econômicas, citando comportamento antidemocrático e outros abusos na Venezuela, depois de concluir que Maduro havia fraudado a eleição. Mas, para incentivá-lo a negociar com a oposição, o governo do presidente Joe Biden disse em maio que aliviaria algumas sanções.

De alguma forma, em todo o país, é possível sentir alguma mudança.

Las Mercedes, que surgiu das terras agrícolas há um século, tornou-se na década de 1950 um reduto da classe média. Na década de 1980, tinha vida boêmia e acabou virando uma área mais comercial. Mas é um espaço de contrastes. Torres de escritórios e lojas de itens de luxo se alinham em calçadas estreitas e ruas de pista única completamente vulneráveis a inundações. Além disso, a fonte de energia não é confiável.

Oscar Ramírez administra um restaurante de fast-food em que metade dos clientes paga e dá gorjeta em dólares. Ele e sua esposa possuem um pequeno apartamento, mas não têm economias. Embora alguns de seus amigos e familiares tenham voltado ao país, outros permanecem na Colômbia e no Peru. “A inflação ainda não acabou”, diz ele. “A economia da Venezuela não foi consertada. Há muitas coisas para resolver, a começar pelo serviço de água e luz.”

Galería Freites, uma das atrações de Las Mercedes

Ali perto, Ilana Chavez e seu marido vendem um brunch no estilo americano em seu restaurante, o Marguerite. Uma refeição normalmente custa US$ 20, cerca de três quartos do salário mensal de um funcionário público. “As coisas estão mudando, as pessoas vão ao Marguerite para comer uma sobremesa, quando antes não o faziam. Estávamos em declínio e agora estou vendo um pouco de luz”, diz Chavez.

– Esta notícia foi traduzida por Melina Flynn, Content Producer da Bloomberg Línea.

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