Adaptar-se ao clima parece fácil, mas boa parte do mundo terá dificuldades

Países em desenvolvimento tiveram três vezes mais exposição a danos ao PIB por mudanças climáticas em comparação com países de alta renda

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Bloomberg — Cortar emissões não é fácil, mas a maioria das pessoas – certamente a maioria dos especialistas – concorda que esse esforço vale a pena para manter a atmosfera da Terra em um estado semelhante ao que tem permitido a vida da sociedade humana por muitos milhares de anos.

Um mote comum dos que acreditam que o esforço não vale a pena é “vamos nos adaptar” – uma ampla referência a medidas que amenizam os efeitos da mudança climática.

Um documento de 2020 que categoriza a retórica usada para prevenir a ação climática sem recorrer à negação científica direta identifica a “desistência” como um dos principais “discursos de atraso”. Os autores escrevem que isso “implica que minimizar os efeitos é fútil e sugere que a única resposta possível é a adaptação”.

No mês passado, uma fala de Stuart Kirk, do HSBC, argumentou que “nós podemos resolver o problema através da adaptação”, alegando que os medos da mudança climática foram exagerados. É uma declaração cheia de suposições.

Quem é “nós”? Claramente não é a humanidade em geral. Há muitas pessoas que não conseguem se proteger dos efeitos da mudança climática simplesmente instalando um ar condicionado ou construindo uma barreira para conter o mar. Muitas vezes isso se deve à falta de fundos, mas pode ocorrer também porque, como exposto no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) das Nações Unidas, o aquecimento está superando a capacidade de adaptação de alguns sistemas. Quando atingirmos 1,5°C de aquecimento, começaremos a nos deparar com “limites complicados”, o que significa que será fisicamente impossível se adaptar em áreas como a proteção das costas e dos recifes de corais.

Embora o Ocidente tenha ficado obcecado com a guerra na Ucrânia e o retorno da inflação, está ficando cada vez mais claro que muitas pessoas no mundo não serão capazes de se adaptar. A guerra e as pressões inflacionárias estão diminuindo ainda mais o financiamento já limitado para muitos países em desenvolvimento, elevando os preços das commodities e diminuindo o apetite por títulos de mercados emergentes.

O que preocupa é que a questão recebeu pouca atenção em Bonn, na Alemanha, onde representantes do governo de todo o mundo se preparam para a próxima conferência da ONU sobre mudanças climáticas em novembro. Anteriormente, autoridades prometeram analisar especificamente as “perdas e danos” – pagamentos de países ricos para países mais pobres para ajudá-los a se recuperar de danos causados pelo clima e aos quais é impossível se adaptar, como furacões poderosos.

Na COP26 em novembro do ano passado, um acordo mencionou a duplicação da quantidade de “financiamento climático” destinado à adaptação. Os representantes dos países também concordaram em estabelecer um “diálogo” sobre um mecanismo de perdas e danos, que pode eventualmente permitir transferências de fundos do norte global para o sul global. Estas pequenas realizações foram realmente impressionantes, considerando a falta de ação tanto na adaptação quanto nas perdas e danos ao longo dos anos. Entretanto, em Bonn, o diálogo sobre perdas e danos segue fora da agenda formal de negociações.

Cada vez mais surgem exemplos de que os países já mais suscetíveis às mudanças climáticas estão enfrentando uma forma totalmente nova de desvantagem econômica.

Essa desvantagem só será ampliada pelas agências de classificação de risco de crédito que se analisam com cuidado os riscos de impacto climático. No mês passado, a Moody’s (MCO) afirmou que a classificação de crédito soberano da Índia pode ser afetada pela onda de calor extremo que o país sofreu este ano. Standard & Poor’s publicou recentemente uma nota alertando que países de baixa e média renda foram expostos a mais de três vezes mais danos ao PIB devido às mudanças climáticas do que os países de alta renda.

Estas perdas econômicas “provavelmente serão maiores e mais persistentes”, já que que esses países têm instituições mais fracas e menor capacidade financeira para se adaptar, disse o relatório.

Os efeitos da mudança climática são particularmente ruins para os mais vulneráveis – ainda mais quando se trata de uma guerra que tem afetado o fornecimento de algumas commodities. O último relatório do Programa Mundial de Alimentos sobre a Fome divulgado desta semana adverte que os conflitos e os choques climáticos vão provocar uma fome aguda durante o mês de setembro, acrescentando que “entramos em uma ‘nova normalidade’ na qual secas frequentes e recorrentes, inundações, furacões e ciclones dizimam as safras, provocam deslocamentos e levam milhões ao limite em países de todo o mundo”.

Os próprios países vulneráveis não estão simplesmente esperando por esmolas; muitos governos estão fazendo o difícil trabalho de descobrir como poderiam se adaptar. A adaptação é muito mais complexa do que simplesmente derrubar alguns pedaços de infraestrutura; ela requer a abordagem de uma gama de perigos, vulnerabilidades e exposições interligadas que podem surgir à medida que o clima muda. A Dominica está incorporando critérios de resiliência em todo o seu processo orçamentário; Bangladesh vem realizando um trabalho semelhante há vários anos. No entanto, esse trabalho também tem um custo. O Fundo Verde para o Clima, organização multilateral, está distribuindo US$ 162 milhões a 69 países apenas para este fim, mas no geral ninguém está oferecendo fundos suficientes para realmente tirar os planos do papel.

A guerra e o agravamento dos impactos climáticos pioraram os efeitos da pandemia. O Banco Mundial advertiu esta semana que a renda real per capita em 2023 permanecerá abaixo dos níveis pré-pandemia em cerca de 40% das economias em desenvolvimento, e para “muitos países, será difícil evitar a recessão”.

É possível, sim, se adaptar. Entretanto, com o atual cenário, apenas os mais privilegiados do mundo se beneficiarão com isso. A simples garantia de que “podemos nos adaptar” ou “vamos nos adaptar” deve sair de cena. Em vez disso, devemos substituí-la por: quem terá que se adaptar, e quem será capaz de fazê-lo?

--Este texto foi traduzido por Bianca Carlos, localization specialist da Bloomberg Línea.

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