Pacote do governo mira alvo errado e pode ‘matar’ o etanol, diz Adriano Pires

Consultor e especialista do setor, que chegou a ser indicado para comandar a Petrobras, alerta para o risco de a crise global do diesel chegar ao país

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São Paulo — O economista Adriano Pires, um dos consultores mais influentes do setor de energia e petróleo & gás no Brasil e que chegou a ser indicado pelo Planalto para o cargo de CEO da Petrobras em março passado, considerou “midiático e eleitoral” o pacote anunciado, ontem (6), pelo presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) para tentar reduzir os preços dos combustíveis. E pode se mostrar insuficiente caso as cotações internacionais do petróleo continuem a subir e a pressionar os combustíveis.

“O governo demorou a se movimentar, mas agora, a quatro meses da eleição, saiu da letargia. Na prática, as medidas podem ter um impacto muito forte: o preço da gasolina na bomba pode cair 10%, e o do diesel, 12%, se houver realmente repasse integral da desoneração”, estimou em entrevista à Bloomberg Línea.

O pacote prevê que os estados serão ressarcidos pela União casos aceitem zerar a cobrança do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre o óleo diesel e o gás de cozinha até 31 de dezembro deste ano, com o compromisso do governo federal de também não cobrar tributos federais (PIS, Cofins e Cide).

Para o consultor, no entanto, o pacote proposto enfrentará obstáculos políticos no Congresso, pois haverá resistência de governadores e dependerá da aprovação de uma mudança constitucional. “Aprovar uma PEC, que precisa de 3/5 dos votos nas duas Casas, em dois turnos, não é algo tão trivial.”

Pires diz que o pacote não é a “política ideal”, pois as medidas são na prática subsídios. A desoneração, segundo o ministro Paulo Guedes (Economia), pode custar até R$ 50 bilhões até o fim de dezembro. “O ideal seria pegar esse dinheiro e montar programas sociais, melhorar a vida dos taxistas e dos motoristas de aplicativos, distribuir vale-gás e voucher-caminhoneiro. As medidas apresentadas pelo governo beneficiam todos, incluindo os ricos. As pessoas de baixa renda não têm carro.”

O economista considera uma “barbeiragem” a decisão de favorecer combustíveis “sujos”, como a gasolina e o diesel, em detrimento do etanol. “Acaba a competitividade de preço que o etanol tinha quando o governo zera PIS e Cofins da gasolina. O governo pode matar o etanol. Os usineiros já estão ligando para o Tarcísio [Gomes de Freitas, ex-ministro da Infraestrutura, candidato ao governo paulista].”

O consultor também ressaltou que o eventual sucesso do pacote em conter a disparada dos preços dos combustíveis, aliviando a pressão sobre a inflação e, por tabela, sobre os juros, depende do comportamento das cotações internacionais do barril de petróleo.

A causa da alta dos preços não é o ICMS. O pacote atenua bastante ao zerar PIS, Cofins e Cide, mas se o petróleo continuar subindo com a guerra, e o dólar também, não vai resolver o problema.

Crise global do diesel

O consultor alertou para o risco de o Brasil ser afetado pela crise global do diesel, que já afeta países vizinhos como a Argentina, onde há falta do combustível. Segundo Pires, o governo tem de tomar medidas no curto prazo para evitar o desabastecimento do diesel no país no segundo semestre, como preservar a paridade de preços no país com as cotações internacionais.

Uma das propostas sugeridas pelo consultor é aumentar a mistura do biodiesel no combustível. “A economia continua muito dependente do diesel, que virou protagonista da transição energética. A guerra na Ucrânia reacendeu o debate da segurança energética”, afirmou.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista com o sócio-fundador e diretor da consultoria CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura):

Haverá uma crise do diesel no segundo semestre devido à escassez do combustível?

O problema do diesel é de escala mundial e está ligado ao gás natural: com a guerra na Ucrânia, a Europa mostrou a fragilidade de sua dependência do gás da Rússia, que é a segunda maior produtora do mundo. Com as sanções de guerra, todo mundo ficou preocupado de faltar gás. E o substituto imediato do gás é o diesel, tanto para aquecimento como para uso industrial. Por isso, o mundo todo está fazendo armazenamento e tirando diesel do mercado, fazendo com que o preço suba muito.

Pela primeira vez talvez na história, estão acontecendo dois fenômenos interessantes: um é o descolamento do preço do diesel em relação ao petróleo. O diesel está subindo mais do que petróleo. E o segundo evento interessante é que o diesel na bomba costuma ser mais barato do que a gasolina. E já há muitos países em que o litro do diesel está mais caro que o da gasolina.

Na Argentina, já estamos vendo fila de caminhão nos postos para abastecer com diesel. O Brasil não tem ainda o problema de falta de diesel. Aqui e acolá tem o que é normal por uma questão de logística. Uma das razões para o Brasil não ter falta de diesel é o fato de ter uma política de preços que acompanha o mercado internacional. Isso vem desde o governo Temer, que teve que criar um subsídio para o diesel por um período para evitar uma greve dos caminhoneiros. Agora é diferente: é uma problema mundial.

O senhor avalia, então, que existe o perigo de uma crise?

O diesel continua sendo o principal combustível fóssil para movimentar caminhões, trens e a logística do mundo, apesar da transição energética. A economia continua muito dependente do diesel, que virou protagonista da transição energética. A guerra na Ucrânia reacendeu o debate da segurança energética, um conceito que havia sido deixado de lado.

Para que não ocorra falta de diesel, o Brasil tem que tomar algumas medidas: primeiro, manter a política de preços de acompanhar o mercado internacional para não desestimular as importações.

Segundo: tentar reduzir - já está atrasado em relação a outros países - os efeitos ruins e daninhos do diesel caro. São efeitos sociais e econômicos causados pela inflação. O diesel é o combustível que mais transporta mercadorias no Brasil. E tem impacto social sobre a classe dos caminhoneiros. Com esse ganho muito alto de receita oriunda do preço alto do petróleo, o Brasil já poderia ter desenvolvido programas sociais específicos para reduzir esse impacto negativo do efeito guerra para a sociedade.

Por exemplo: voucher-caminhoneiro no caso do diesel; no caso do botijão de gás, aumentar o número de famílias que recebem o auxílio-gás; criar mecanismos nos Estados que hoje estão com cofres cheios de arrecadação recorde de ICMS em razão dos preços dos combustíveis; não aumentar a tarifa de transporte urbano. No curto prazo, vejo essas medidas do ponto de vista da demanda.

Do ponto de vista da oferta, tem o biodiesel. Se a crise aumentar, o governo poderia aumentar o limite da mistura do biodiesel. Hoje a mistura é de 10% de biodiesel no diesel. Chegou a ser 13% no ano passado. Em um momento de falta do combustível, o governo pode aumentar tecnicamente essa mistura para algo entre 10% e 15%. O efeito ruim é que isso vai aumentar o preço do diesel na bomba.

A média e longo prazo, temos que discutir substitutos do diesel. A Europa e os EUA já estão fazendo isso. Existe a alternativa do biogás, que também é uma fonte de energia e que vai ter uma importância muito grande. Com o biogás, é possível criar o biometano. Esse é o cenário que vejo.

O litro do diesel está acima de R$ 7. Há expectativas no mercado de que fique acima de R$ 10 no segundo semestre. Com a guerra na Ucrânia se prologando, isso se torna mais provável?

Não sabemos como a guerra vai prosseguir. É um elemento importante. Segundo ponto: haverá agora um fator de pressão sobre o diesel e outros derivados porque vai começar a temporada de furacões nos EUA, que atingem muito a Louisiana, onde tem muita refinaria. No Brasil, temos no segundo semestre um aumento no consumo de diesel por causa da exportação dos grãos do Centro-Oeste para o mundo. São esses os três fatores que podem pressionar os preços do diesel nos próximos meses.

Quanto à Petrobras, o presidente da Câmara, Arthur Lira, recomendou realizar uma oferta pública para vender as ações da União. Essa discussão de privatização deve ser levada a sério?

Deveria ser levada a sério. Mas estamos discutindo um assunto muito importante no fim de mandato, quando a discussão desse tipo de assunto deveria acontecer no início de governo. Acho que o Brasil está hoje maduro para discutir a privatização da Petrobras. Não tem mais sentido em uma economia como a brasileira o Estado ser sócio controlador de uma empresa de petróleo. Não faz o menor sentido. Agora está terminando a privatização da Eletrobras. Um modelo de privatização da Petrobras deveria ser um tema sério para ser discutido no Congresso Nacional a partir de 1º de janeiro de 2023.

Hoje é o pior dos mundos: uma empresa em que o Estado é controlador e ela é caracterizada como sendo de economia mista. É pior dos mundos porque se o controlador quer fazer alguma coisa com a empresa, ele é acusado de intervenção, dizem que não pode mexer. É um controlador que não manda. Se intervém na empresa, causa prejuízo para o acionista. Temos que saber o que queremos da Petrobras.

Essa discussão de oferta de ações vinga no segundo semestre?

Acho que não. Não tem clima no Congresso Nacional. Como há uma crise muito grande de combustível e como o preço dos mesmos no Brasil sempre influenciou muito as decisões de eleição, e o presidente não está controlando os preços da Petrobras, acabam sendo criadas “cortinas de fumaça”: troca de presidente da Petrobras, troca de ministro, anúncio de privatização da Petrobras, de privatização da PPSA [Pré-Sal Petróleo]. São assuntos de extrema importância que merecem discussão séria.

A Petrobras vai ser o principal assunto da campanha eleitoral presidencial?

Já está sendo. Por quê? Se olharmos a história da Petrobras, ela sempre foi usada por todos os governos com maior ou menor intensidade, principalmente em época de eleição. A maioria dos governos, como acionista majoritário, em vez de olhar a Petrobras preocupada se ela está produzindo muito petróleo e gerando lucro, sendo eficiente, a enxerga como um instrumento de política econômica: para controlar a inflação e ajudar a ganhar a eleição. Isso é uma norma em todos os governos brasileiros.

Obviamente, a intensidade varia: depende de como o mercado está naquele determinado ano de eleição ou de inflação. Estamos vivendo uma tempestade perfeita neste ano: ano eleitoral, petróleo acima de US$ 100 por causa da guerra e câmbio muito alto. Então, a gasolina virou o grande tema de campanha. A única solução é esta: ou estatiza de uma vez tudo ou privatiza.

O senhor falou de Eletrobras. Há algum risco de interrupção ou reversão desse processo?

Acho que não. Esse processo passou. Também não acredito nesse discurso, por exemplo, do ex-presidente Lula - estou falando dele porque ele está na frente [das pesquisas], mas o Ciro Gomes [PDT] fala a mesma coisa, algo parecido - de que ele vai reestatizar a empresa. A [capitalização da] Eletrobras vai acontecer, não vai ter reestatização nenhuma. Imagine o custo para o país de uma reestatização.

No médio prazo, a ação da Eletrobras vai subir muito. A Eletrobras vai ser uma corporação gigantesca, é hoje a maior empresa geradora de energia renovável da América Latina, a maior geradora brasileira e em linhas de transmissão. É uma empresa hoje que está muito amarrada por ser estatal, por não poder investir o que tem condições. Ela, como empresa privada, vai se livrar das amarras. Quem comprar ações da Eletrobras e aguardar vai ganhar dinheiro. Vai ser uma operação de sucesso como foi a da Vale.

Já se passaram mais de dois meses desde seu anúncio de desistência do convite para ser CEO da Petrobras. O senhor se arrepende da decisão?

Não me arrependo. Foi um prêmio o presidente da República e o ministro Bento Albuquerquer [Minas e Energia] terem lembrado do meu nome para a maior empresa de energia do Brasil, uma das maiores petroleiras do mundo. Sempre que você tem uma proposta dessa magnitude, você tem que colocar na balança. Naquele momento, para mim, para minha família e para o meu negócio, tinha mais custo do que benefício. Estou nesse setor há mais de 30 anos. Foi um orgulho ser lembrado.

O mercado tem especulado se haverá ou não mudança na política comercial dos combustíveis da Petrobras. Qual sua aposta?

Não acredito que mude. O país está viciado na discussão de que a única política que existe para segurar o preço do combustível no Brasil é intervir na Petrobras, porque isso é a tradição brasileira. Mas o Brasil é hoje outro país: é um grande produtor de petróleo. Vai dobrar a produção até 2030. O petróleo caro no Brasil não é tão mau negócio, pois gera muita receita. O setor da economia que mais gerou dinheiro para o Tesouro Nacional foi o de petróleo e gás. E vai continuar sendo nos próximos anos.

O governo pode promover com esse dinheiro uma grande revolução nas contas públicas. Pode socializar essa receita principalmente com os consumidores, com a população de baixa renda, já que é um dinheiro extra que está entrando. O país tem de beneficiar a sociedade com programas sociais.

Há três questões na indústria do petróleo que o Brasil tem de enfrentar: o imposto é muito alto. Tem ainda a questão de logística: o país tem que construir infraestrutura de dutos e transportar combustível em trens, navios e por cabotagem. O transporte feito de caminhão é muito caro. A terceira coisa é a privatização. Tem que existir concorrência. Não é só reduzir o imposto. Tem que ter esses três elementos juntos.

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