É o fim da bonança para a economia de consumo

Americanos passaram a controlar gastos; a culpa é da mudança de hábitos no pós-pandemia ou da inflação galopante que assola famílias?

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Bloomberg Opinion — No ano passado, praticamente todos os setores de varejo e consumo se deram bem.

As tendências de ficar em casa não haviam desaparecido completamente, então as pessoas ainda gastaram com artigos de culinária e bricolagem. Ao mesmo tempo, cidades reabriam, e os compradores compravam roupas e produtos de beleza com avidez.

Agora, a bonança do setor de varejo está chegando ao fim. Mas não está totalmente claro se isso se deve à mudança de hábitos do consumidor – ou seja, a “Grande Rotação” de hábitos pandêmicos para aqueles associados a economias abertas – ou à inflação crescente.

Isso dificulta muito para varejistas, investidores e formuladores de políticas saber o que está acontecendo com os consumidores e os balanços das famílias.

Algumas categorias são vítimas claras da mudança de tendências da pandemia. A Peloton Interactive (PTON), por exemplo, entrou em parafuso quando seus clientes voltaram para a academia. Os consumidores também diminuíram as compras on-line à medida que as restrições às lojas físicas diminuíram, fazendo despencar as vendas digitais nos dois lados do Atlântico.

Outros setores saíram ganhando com a reabertura. A Estée Lauder (EL) viu um “renascimento” da maquiagem em todo o mundo, mesmo quando os lockdowns em Xangai interromperam as remessas e cortaram sua orientação.

No entanto, é difícil decifrar alguns setores.

Analisemos o streaming. A Netflix (NFLX) perdeu 200 mil assinantes no primeiro trimestre deste ano – a primeira vez que havia perdido usuários desde 2011 – e projetou que perderia mais 2 milhões de clientes no segundo trimestre. É possível relacionar o aumento da vida noturna com a redução do uso do streaming. Mas talvez o aumento dos preços de aluguel, comida e gás seja o culpado – uma assinatura da Netflix pode ser uma das coisas mais fáceis de cortar do orçamento, principalmente se aquele delivery cada vez mais caro também estiver sendo cortado.

Bens domésticos são outro enigma. Os consumidores abriram as carteiras para ajeitar seus arredores quando passavam grande parte de seus dias dentro de casa. Mas quantas vezes você precisa repaginar sua cozinha? Faz sentido que o setor tenha vendas mais fracas após a pandemia.

No entanto, os bens domésticos são itens grandes e caros e são as primeiras coisas que os consumidores cortam quando os orçamentos ficam apertados. Esses itens também ficaram ainda mais caros, pois tendem a ser volumosos e ocupam mais espaço em contêineres.

Na semana passada, o Walmart (WMT) disse que os americanos estavam gastando mais dinheiro com comida, retirando recursos de áreas como móveis.

A Target (TGT) relatou o mesmo: uma desaceleração repentina no início de março, quando os americanos estavam lutando com o aumento dos preços dos alimentos e dos combustíveis. Isso afetou grandes compras, como televisores, eletrodomésticos e móveis para áreas externas. Em vez disso, a varejista disse que os consumidores estão focando em pequenos toques decorativos, como velas e quadros. Embora isso possa refletir a fadiga da repaginação dos ambientes, também é notável que esses itens sejam muito mais baratos.

Quanto ao vestuário, a interação entre rotação e retração de consumidores é ainda mais complexa.

Embora os varejistas tenham visto uma demanda mais fraca por roupas, isso foi liderado pela redução do interesse em roupas casuais. Os consumidores ainda estão dispostos a gastar com sapatos novos ou vestidos para ocasiões especiais. A loja de departamentos Kohl’s, que fez do athleisure e do estilo casual a base de sua estratégia, está trabalhando para adicionar mais peças da moda ao seu estoque. Enquanto isso, o retorno das viagens está impulsionando a demanda por malas e biquínis.

Há alguns sinais de que a mudança de hábitos de consumo tem mais a ver com a inflação do que com a covid. Por exemplo, o McDonald’s (MCD) disse no final do mês passado que estava recebendo pedidos menores e trocas por itens mais baratos. A Kohl’s disse que seus clientes também estavam comprando menos.

Em geral, mais consumidores estão escolhendo marcas próprias mais baratas em vez de nomes conhecidos. Essa é uma estratégia clássica para lidar com preços mais altos. Enquanto isso, a queda na confiança do consumidor indica que a mudança nos padrões de demanda pode ser mais uma questão de contenção do que uma realocação de recursos para áreas como viagens e entretenimento.

De qualquer forma, os varejistas precisam descobrir o que está acontecendo – e rápido.

Em breve, varejistas americanos receberão pedidos para o pico da temporada de gastos de férias de inverno. Um erro de cálculo pode deixá-los com falta de itens em demanda ou com muito estoque de coisas que os compradores não querem mais. O Walmart e a Target já estão sofrendo com seus estoques lotados depois de acumular mercadorias durante os problemas de transporte do ano passado.

Varejistas e empresas de bens de consumo também precisam levar em consideração que os gargalos da cadeia de suprimentos não desapareceram. A Target disse que o fornecimento permaneceu “irregular”. Algumas empresas, incluindo a Nike (NKE), ainda têm uma alta proporção de mercadorias em trânsito. Outros podem ser forçados a fazer seus pedidos de férias mais cedo do que o habitual, devido à interrupção contínua dos lockdowns na China. Isso aumenta o risco de que mais mercadorias cheguem no momento em que os consumidores estão controlando seus gastos.

A forma como os grupos navegam nos próximos seis meses terá influência na economia em geral.

Um consumidor tranquilo e estoques inflados provavelmente significarão uma Black Friday abundante – grandes descontos podem compensar parte da pressão ascendente sobre os preços de alimentos e combustíveis. Muita cautela, no entanto, nos levaria ao mesmo tipo de escassez de suprimentos que vimos nos dois últimos feriados de fim de ano. Lembre-se de que parte da escassez no final de 2020 ocorreu porque as redes de lojas fizeram pedidos muito conservadores seis meses antes, em meio à primeira onda da pandemia.

O sentimento dos CEOs nesta temporada de balanços é que eles “estão otimistas” com o futuro. Dadas todas as incertezas que enfrentam, provavelmente não deveriam ter uma atitude tão positiva.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Andrea Felsted é colunista da Bloomberg Opinion e escreve sobre os setores de varejo e bens de consumo. Anteriormente, escrevia para o Financial Times.

--Este texto foi traduzido por Bianca Carlos, localization specialist da Bloomberg Línea.

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