Bloomberg Línea — O MPT (Ministério Público do Trabalho) investiga indícios de manipulação da jurisprudência trabalhista sobre reconhecimento de vínculo de emprego em 350 acordos envolvendo oito aplicativos de transporte e de entregas e motoristas e entregadores. Do total de acordos, 133 são da Uber (UBER), 131 são da 99 e 41 são do iFood.
O MPT acusa os aplicativos de fazer o uso de algoritmos para mapear o comportamento da Justiça do Trabalho para detectar possíveis derrotas judiciais e evitá-las, fechando acordos com trabalhadores que ingressaram com ações na justiça.
As empresas que operam os aplicativos investigados negam que eventuais acordos tenham esse suposto propósito aventado pelo MPT (leia a íntegra do posicionamento mais abaixo).
No sistema brasileiro, decisões de tribunais são usadas como precedentes para fundamentar decisões de outros juízes para resolver litígios no futuro. Ao eliminar decisões desfavoráveis sobre vínculo de emprego com os acordos, as empresas estariam criando uma “jurisprudência artificial” em seu benefício.
No Brasil, não é crime usar jurimetria por si só, mas o foco da investigação é se o instrumento faz parte ou não de fraude processual. Procuradas pela Bloomberg Línea, as empresas sob suspeita negam a prática.
Em nota enviada à reportagem, a Procuradoria-Geral do Trabalho afirma que “o comportamento das empresas de plataformas digitais perante o Judiciário revela muito claramente a estratégia processual. As empresas, em suas defesas, enaltecem a existência de decisões judiciais de não reconhecimento do vínculo de emprego”.
“O número de decisões favoráveis às empresas de plataformas digitais tende a ser maior do que o número de decisões desfavoráveis, porque elas vêm adotando evidente estratégia de jurimetria, formalizando acordos judiciais que impedem o revolvimento da matéria pelas instâncias judiciais trabalhistas, obstando a formação de posicionamentos jurisprudenciais que lhes sejam contrários”, diz a nota.
E conclui: “Esta ilusória jurisprudência amplamente favorável, construída artificialmente, serve de argumento para as empresas alinhavarem suas defesas nos processos judiciais, podendo servir como elemento de convencimento dos julgadores nos casos concretos”.
O responsável pela investigação, procurador Tadeu Cunha, da Coordenadoria Nacional de Combate a Fraudes nas Relações de Trabalho, afirmou que essa prática de fazer acordos para evitar o julgamento “é um mecanismo manipulatório”.
“Isso viola a boa-fé processual. Faz com que a jurisprudência se construa artificialmente. Se uma empresa consegue que todos os tribunais julguem no mesmo sentido, impede um recurso de revista por divergência ao Tribunal Superior do Trabalho (TST), a quem cabe uniformizar o entendimento sobre direito trabalhista”, explicou o procurador, em entrevista à Bloomberg Línea.
Segundo ele, de forma geral os acordos devem ser estimulados. Só acordos, diz ele, podem chegar a soluções boas para todas as partes e de fato pacificar uma relação social que se transformou em litígio. “Mas o que se vê com os aplicativos não é vontade de resolver problemas. Se fosse, por que, então, as empresas só oferecem acordo nos casos em que sabem que vão perder? Se fosse para resolver o conflito, elas ofereceriam acordos em todos os casos”, afirma.
O QUE HÁ DENTRO DA INVESTIGAÇÃO: As suspeitas de manipulação da jurisprudência têm encontrado nas decisões de desembargadores de distintos tribunais trabalhistas. Nos últimos dias, a Bloomberg Línea analisou sete dos casos em investigação. Os sobrenomes foram omitidos para preservar a intimidade das partes.
Alex C.S. foi motorista da 99 Táxi entre abril de 2018 e novembro de 2019, quando se desligou definitivamente do app. Em agosto do ano seguinte, entrou com uma ação trabalhista contra a 99. No processo, disse que o controle que a empresa fazia sobre suas corridas, a distribuição de pontos pelas horas em atividade, as punições pelas horas parado e os descontos nos valores recebidos pelas corridas eram, na verdade, formas de subordinação. No fim das contas, segundo a alegação em resposta aos argumentos da empresa, Alex era um trabalhador sem registro da 99, e não alguém que alugava a plataforma. Ele pediu R$ 22,7 mil de indenização à 99, além da anotação na Carteira de Trabalho. O valor englobava o pagamento de todas as verbas trabalhistas e a indenização por dano moral.
Na primeira instância da Justiça, o argumento do motorista não prosperou. Em novembro de 2020, a juíza Fernanda Nunes Teixeira, da 3a Vara Trabalhista de BH, decidiu que não havia relação empregatícia entre o motorista e a empresa, já que ele não tinha chefe direto e nem controle de horários. “O que se constata, em verdade, é que o reclamante [Alex] remunerava a ré [99] pelo aplicativo disponibilizado, o qual viabilizava a captação de clientes”, escreveu.
Alex recorreu ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Minas Gerais. Antes que o caso fosse a julgamento, no entanto, a 99 pediu que a relatora do processo, desembargadora Juliana Vignoli Cordeiro, retirasse o caso de pauta: haviam chegado a um acordo no qual a 99 se comprometia a pagar R$ 14 mil ao motorista sem anotação na Carteira. Em contrapartida, Alex desistiria da ação e se comprometia a “nunca e nada mais reclamar, seja a qual título for”.
A desembargadora declarou o acordo ilegal e não o homologou. Ela reclamou de a empresa ter apresentado a petição do acordo menos de uma semana antes do julgamento e disse que a 99 estava, na verdade, tentando evitar que o recurso fosse julgado, diante da derrota provável.
“O que se pretende com a minuta de ‘acordo’ apresentada ultrapassa em muito o regular direito de transação. Ao contrário, pretende-se coibir o direito de ação, a todos garantido, com o amplo acesso ao Judiciário”, escreveu em seu voto, acompanhado pela maioria dos desembargadores de sua turma julgadora.
O colegiado mandou a 99 pagar um salário semanal de R$ 300 ao motorista pelo período em que ele esteve cadastrado na plataforma, mais o equivalente a uma hora extra por dia - além do registro em Carteira e as verbas trabalhistas decorrentes.
“DISTORÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA”: Dias antes, em 9 de dezembro de 2020, outra turma julgadora do TRT de Minas havia adotado o mesmo entendimento em um processo de um motorista contra a Uber. Dessa vez, Rodrigo, o motorista, pedia R$ 28 mil à Uber. Perdeu em primeira instância, com uma decisão muito parecida com a do caso de Alex, e recorreu ao TRT. Um dia antes de o recurso ser julgado, a Uber apresentou um pedido de homologação de acordo em termos semelhantes ao que a 99 ofereceu a Alex.
O relator, desembargador Antônio Gomes de Vasconcelos, rejeitou o acordo.
Disse ter sido alertado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) para uma manobra que vinha sendo empreendida pela Uber: por meio da análise do comportamento das turmas julgadoras do TRT, a empresa via onde tinha mais chances de perder e oferecia um acordo ao motorista. Nas turmas onde tinha mais chances de vitória, deixava o recurso ser julgado.
Com isso, disse o MPT num parecer, a empresa evitava que casos contrários aos seus interesses fossem julgados e evitava a criação de precedentes desfavoráveis ao seu modelo de negócio, que não envolve contratar os motoristas como empregados. Os procuradores do MPT em Minas levantaram que a Uber tinha 279 processos no TRT local, mas só ofereceu acordos nos casos que estavam para ser julgados pelas turmas onde já havia decisões contra a empresa.
Segundo escreveu o desembargador Antônio Vasconcelos no voto, a Uber “tem dado sinais de uso estratégico do processo com o objetivo de fazer transparecer uma visão distorcida do estado da arte da jurisprudência”.
“Parece bastante plausível que, ao se disporem a fazer acordo em casos tais, busca-se evitar decisões que reconheçam a existência de vínculo de emprego entre as partes. Se configurada a estratégia, ela concorre para que a comunidade jurídica e os trabalhadores desse setor de atividade tenham a impressão de que a jurisprudência é, por princípio e em quaisquer circunstâncias, uníssona em uma direção”, disse.
“Generalização desta apenas aparente concepção unitária da jurisprudência acaba por desestimular trabalhadores que tenham fortes razões para levar seu caso à apreciação do Poder Judiciário, deixando de fazê-lo por absorver a existência de higidez da jurisprudência - dissimulada pela estratégia adotada pela reclamada.”
PRECEDENTES: Alex e Rodrigo viraram precedentes na Justiça do Trabalho. Em abril de 2021, o TRT de Campinas (SP) rejeitou outro acordo, também envolvendo a Uber. Assim como nos casos de Minas, a Uber conseguiu uma vitória em primeira instância e, na véspera do julgamento do recurso pelo tribunal, pediu que um acordo fosse homologado.
Mais uma vez, o acordo foi rejeitado. “A estratégia da reclamada [Uber] confere-lhe vantagem desproporcional porque assentada em contundente fraude trabalhista extremamente lucrativa, que envolve uma multidão de trabalhadores e é propositadamente camuflada pela aparente uniformidade jurisprudencial, que disfarça a existência de dissidência de entendimento quanto à matéria, aparentando que a jurisprudência se unifica no sentido de admitir, a priori, que os fatos se configuram de modo uniforme em todos os processos”, escreveu, em seu voto, o desembargador João Batista Martins César.
Nesse caso, o motorista pedia R$ 73,3 mil. A Uber ofereceu R$ 35 mil para encerrar o processo. No final, acabou condenada a indenizar o motorista em R$ 70 mil e pagar um salário mensal de R$ 3 mil - com registro em Carteira e todas as verbas trabalhistas - pelo período em que ele ficou cadastrado na plataforma.
HISTÓRICO: O uso de acordos para evitar a formação de precedentes desfavoráveis já havia sido identificado antes de o primeiro caso ser julgado pelo TRT de Minas. Em artigo publicado na revista acadêmica do TST, as pesquisadoras da Universidade Federal de Minas (UFMG) Adriana Goulart de Sena Orsini e Ana Carolina Reis Paes Leme chamaram a prática de “litigância manipulativa de jurisprudência”.
Elas identificaram um acordo assinado pela Uber com um motorista em janeiro de 2018, um dia antes de o caso ser julgado pelo TRT de Minas. O motorista pedia indenização de R$ 24 mil, a empresa ofereceu pagar R$ 21 mil ao motorista e R$ 2,9 mil ao advogado dele. Antes, a empresa acusou o relator do caso de já ter posições pré-definidas sobre a Uber, por causa de uma palestra.
“Dois pontos chamam a atenção no que toca à consecução da conciliação. Explica-se: o papel do nome/pessoa dos magistrados de 2º grau para a realização ou não do acordo e a inclusão do processo na pauta da sessão de julgamento como o gatilho da conciliação com a retirada do processo de pauta”, diz o artigo, publicado na edição de janeiro de 2021 da revista. “A predição dos magistrados e seus julgamentos teria um papel mais importante nestas conciliações do que as condições que geralmente são estudadas na teoria conciliatória.”
As autoras concluíram que “as empresas de plataformas digitais de transporte se utilizam da celebração de acordos com a finalidade de impedir a formação de jurisprudência reconhecedora de direitos trabalhistas aos seus motoristas”. Chamaram isso de “procedimento conciliatório estratégico”.
Tadeu Cunha, o chefe do núcleo antifraude do MPT, conta que o artigo e as posições dos desembargadores de Minas e de Campinas foram responsáveis pelo início das revisões dos acordos celebrados entre os aplicativos e os motoristas e entregadores.
“Ficou muito claro ali que o interesse era usar o acordo para impedir a formação de jurisprudência apenas em um sentido. Porque o normal seria a empresa assinar acordo em todos os casos, aí não haveria jurisprudência nenhuma, nem contra nem a favor. Mas usar os acordos para simular uma tendência favorável é um direcionamento sistemático dos acordos, o que pode ser considerado ilegal”, comenta.
GIG ECONOMY: Os acordos começaram a chamar atenção do MPT porque o órgão vem investigando o modelo de negócio dos aplicativos já há algum tempo. Em novembro do ano passado, o MPT ajuizou ações civis públicas contra Uber, 99, Rappi e Lalamove pedindo que a Justiça declare que os motoristas e entregadores que usam as plataformas fornecidas pelos apps são, na verdade, empregados.
De acordo com o MPT, os aplicativos criaram uma forma de lidar com trabalhadores que precariza as relações de trabalho. São as empresas que detêm todas as informações e a tecnologia sobre o serviço prestado pelos entregadores e motoristas. Isso seria uma forma de controle da atividade, no entendimento do órgão.
Segundo o informe do MPT sobre as ações pedindo o reconhecimento do vínculo empregatício, estão em trâmite hoje 625 inquéritos civis sobre as relações entre os apps e os motoristas e entregadores.
Catorze empresas estão envolvidas: Uber (230), iFood (94), Rappi (93), 99 Tecnologia (79), Loggi (50 procedimentos), Cabify (24), Parafuzo (14), Shippify (12), Wappa (9), , Lalamove (6), Ixia (4), Projeto A TI (4), Delivery (4) e Levoo (2).
O procurador-geral do Trabalho, José Lima, reconhece que essas empresas transformaram o mercado de trabalho e que a sociedade precisa se adaptar às novidades. “Essa adaptação, no entanto, não pode significar precarização do direito do trabalhador. É preciso que o Estado elabore regras específicas para esse tipo de trabalho e que os direitos garantidos na Constituição de 1988 cheguem aos trabalhadores”, disse, no comunicado do MPT sobre as ações civis públicas.
EMPRESAS CONTESTAM A TESE DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO: As empresas citadas no levantamento do Ministério Público do Trabalho contestaram os dados do órgão e disseram que não fazem acordos para evitar a formação de precedentes desfavoráveis.
Em nota enviada à Bloomberg Línea, a Uber disse que as alegações da Justiça do Trabalho e do Ministério Público de que tenta forçar um entendimento favorável por meio de acordos “pressupõem descrença na imparcialidade da magistratura e deveriam ser encaradas como desrespeito à independência do Poder Judiciário”.
A companhia disse ainda que, “assim como outras empresas que lidam com causas trabalhistas, a Uber considera uma série de fatores na análise do cabimento de uma tentativa de conciliação, feita processo a processo, como os valores envolvidos, as custas processuais para apresentar recurso, honorários advocatícios, entre outros”.
“A tese de que a Uber teria capacidade para criar uma ‘ilusória jurisprudência’ não se sustenta quando confrontada com a realidade dos fatos”, afirma a Uber. “Os motoristas são trabalhadores independentes que utilizam a plataforma de intermediação digital da Uber para gerar renda. Em todo o país, são mais de 2 mil decisões de varas do Trabalho e tribunais regionais, além de cinco decisões do Tribunal Superior do Trabalho, reconhecendo não existir relação de emprego de motoristas com a plataforma.”
Já a 99 disse que “não comenta processos que estejam em andamento na Justiça”.
O Mercado Livre, dono do aplicativo Mercado Envios, contesta os dados do Ministério Público do Trabalho. Em nota, disse que nunca enfrentou processos judiciais sobre o reconhecimento de vínculo empregatício com seus usuários e que “não pratica análise jurisprudencial para acordos dessa natureza”. “O aplicativo Mercado Envios Extra é disponibilizado atualmente apenas para microempreendedores.”
O iFood disse que “não tem uma prática habitual de celebração de acordos, sendo celebrado apenas em situações excepcionais” e que não faz análise estatística de jurisprudência para se posicionar. “As partes dos processos são livres para pactuarem acordos que entendam ser benéficos para ambos, não havendo qualquer ilicitude em tal prática, e que os mesmos ainda estão sujeitos à homologação do próprio Poder Judiciário”, afirmou.
Recentemente, o TST reconheceu o vínculo empregatício entre um motorista e a Uber, em sua primeira decisão desfavorável à empresa. Há outro caso em trâmite no tribunal, na Subseção de Dissídios Individuais, órgão do TST responsável por definir a jurisprudência quando há divergências entre as turmas julgadoras. Nesse caso, o vínculo não foi reconhecido, mas ainda há um recurso pendente de julgamento.
A Loggi não comentou os dados do MPT, mas disse que “não possui política de acordos”.
E o Rappi disse que “não coaduna com qualquer prática que possa incorrer em manipulação de jurisprudência”.
O Pão de Açúcar, dono do aplicativo James, e o Wappa não responderam aos pedidos de comentários da Bloomberg Línea.
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