Bloomberg Opinion — Nova Delhi parece estar pegando fogo. O calor sobe da estrada em ondas escaldantes, e a água que flui da torneira fria é quente demais para ser tocada. As temperaturas diurnas atingiram 44°C (111 Fahrenheit) e muitas vezes, mesmo à noite, não caem para menos de 30°C. Um aterro gigante nos arredores da capital entrou em combustão espontânea há uma semana, e o lixão de 17 andares que contém milhões de toneladas de lixo continua em brasas, piorando o ar já perigosamente poluído da cidade.
As interrupções diárias de energia causadas por um aumento na demanda por eletricidade resultaram em apagões de até oito horas em algumas partes da Índia, enquanto os estoques de carvão – o combustível que responde por 70% da geração de eletricidade do país – estão acabando, provocando alertas de uma nova crise energética. A safra de trigo do norte está queimada. Foi o março mais quente em 122 anos. A primavera simplesmente não aconteceu, e essas temperaturas extremas continuaram em abril e maio (embora estejam previstas para diminuir esta semana). Ainda assim, espera-se que as monções só cheguem em junho para oferecer algum tipo de alívio.
O mais alarmante sobre essa onda de calor é que não é um fato isolado, mas uma amostra do que está por vir, já que os efeitos do aquecimento global colocam a Índia e seus vizinhos em uma situação em que o clima é uma ameaça central à saúde humana.
A medição meteorológica mais preocupante não é o calor normalmente relatado nas previsões, mas a temperatura de bulbo úmido, que combina calor e umidade para indicar quanta evaporação pode ser absorvida no ar. Em temperaturas de bulbo úmido acima de 35°C, nos tornamos incapazes de reduzir nossa temperatura através da transpiração e sofreremos uma insolação potencialmente fatal após apenas algumas horas, mesmo com sombra e água. Efeitos semelhantes podem resultar para aqueles que trabalham ao ar livre quando as temperaturas de bulbo úmido excedem 32 °C, e medidas tão baixas quanto 28 °C causaram dezenas de milhares de mortes nas ondas de calor europeias e russas de 2003 e 2010.
A umidade cai à medida que a temperatura aumenta, então esses eventos já foram considerados extraordinariamente raros. Um estudo de 2018 concluiu que as temperaturas mais severas de quase 35°C “quase nunca ocorrem no clima atual”. De fato, uma análise mais detalhada dos dados das estações meteorológicas feitas em 2020 sugere que elas já estão acontecendo com relativa frequência, principalmente no cinturão densamente povoado do Golfo Pérsico, passando pelo Paquistão e noroeste da Índia.
Apenas 12% dos 1,4 bilhão de cidadãos da Índia têm acesso a ar condicionado, o que significa que centenas de milhões de pessoas simplesmente não conseguem se refrescar quando seus corpos atingem o ponto de insolação. É uma situação espelhada no vizinho Paquistão, que está passando por condições catastróficas de ondas de calor semelhantes. Os assalariados diários, que labutam nos campos, trabalham nas fábricas e na construção, varrem ruas e constroem estradas, não têm escapatória.
Várias regiões da Índia já chegaram perto de temperaturas críticas de bulbo úmido na semana passada, de acordo com dados do governo, embora as umidades máximas não tenham necessariamente ocorrido ao mesmo tempo que as temperaturas de pico. No estado de Odisha, no leste, os picos de temperatura e umidade em partes da capital, Bhubaneswar, no domingo (1) teriam produzido temperaturas de bulbo úmido de 36,6 °C se ocorressem ao mesmo tempo, mostram os dados. Calcutá, uma cidade maior do que Los Angeles ou Londres, na sexta-feira passada (29) também chegou a condições que atingiriam 35 °C se tivessem ocorrido simultaneamente.
O risco é que, mesmo que os níveis mais perigosos sejam evitados na atual onda de calor, cada estação quente é um novo lance de dados sobre se ocorrerá um evento estranho que levará a um grande número de mortes. As chances aumentam a cada ano que passa. O mundo está atualmente nas garras de um ciclo climático La Nina, que normalmente traz um clima de verão mais frio para a Índia. Quando isso se transformar em El Niño, os riscos aumentarão ainda mais.
O fato do governo não ter declarado um desastre nacional e lançado uma resposta apropriada não será surpresa para aqueles que viveram a epidemia mortal de covid-19 do país.
A Índia tem um “Plano de Ação Nacional sobre Doenças Relacionadas ao Calor”, e o governo federal emitiu, em 1º de maio, um aviso aos estados pedindo-lhes que garantissem que os hospitais estivessem prontos para lidar com um aumento esperado na demanda. Mas, dado que o Departamento Meteorológico da Índia (que começou a coletar registros nacionais em 1901) fez alertas de ondas de calor em 25 de abril, tudo parece um pouco mal feito. Medidas recomendadas, como caiação de telhados para resfriar o interior dos edifícios, seriam insuficientes para lidar com uma grande onda de calor. Conselhos para garantir um fornecimento de energia seguro nos centros de saúde não ajudarão se o calor e a carga de milhões de condicionadores de ar fizerem com que a rede elétrica caia quando for mais necessário.
Há um ano, a Índia estava se recuperando de uma onda mortal de covid-19, quando os cidadãos foram às mídias sociais implorar por oxigênio e os hospitais recusaram pessoas ofegantes em estado crítico, enquanto o sistema de saúde subfinanciado entrava em colapso sob o peso de décadas de negligência do governo. A Organização Mundial da Saúde estima que pelo menos 4 milhões de indianos morreram nessa carnificina, muito além do número oficial de pouco menos de 524.000 mortes. (O governo do primeiro-ministro Narendra Modi contesta esse dado, embora tenha sido replicado por outros especialistas.)
Nunca saberemos, pois a maioria das mortes não é registrada na maior democracia do mundo. Muitos daqueles que morrem de calor, morrendo nas calçadas escaldantes em que dormem ou nas favelas insuportavelmente quentes nas margens da cidade, também não serão contados. Isso significa que os governos, estaduais e federais, nunca se prepararão adequadamente para as ondas de calor, nem investirão na infraestrutura e nos sistemas necessários para fornecer alívio e ajudar a reduzir a intensidade desses desastres causados pelas mudanças climáticas. Com um planeta em aquecimento e a crescente intensidade de eventos climáticos extremos, isso precisa mudar.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.
Ruth Pollard é colunista e editora da Bloomberg Opinion. Anteriormente, ela foi líder de equipe do governo do Sul e Sudeste Asiático na Bloomberg News. Ela foi correspondente na Índia e em todo o Oriente Médio e se concentra em política externa, defesa e segurança.
David Fickling é colunista da Bloomberg Opinion que escreve sobre commodities, empresas industriais e de consumo. Foi repórter da Bloomberg News, Dow Jones, Wall Street Journal, Financial Times e Guardian.
– Esta notícia foi traduzida por Marcelle Castro, Localization Specialist da Bloomberg Línea.
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