Estaria Putin redesenhando o ESG?

A ocorrência de eventos capazes de transformar profundamente relações sociais e corporativas em um espaço de tempo tão curto evidenciam o tamanho de nossa vulnerabilidade

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Bloomberg Línea Ideias — A guerra na Ucrânia tem trazido muitas reflexões que vão muito além dos prognósticos militares. Independente do desfecho da batalha, podemos inferir que o mundo não será o mesmo depois dela, assim como se transformou a partir da Covid-19.

Aliás, cabe ponderar que a ocorrência de eventos capazes de transformar profundamente relações sociais e corporativas em um espaço de tempo tão curto evidenciam o tamanho de nossa vulnerabilidade. Não é difícil supor que tal fragilidade provavelmente se revelará novamente em breves eventos futuros.

A destemperada invasão de Putin ao soberano país ucraniano provocou imediatas respostas de diferentes atores em múltiplas frentes. A partir destas reações, podemos propor considerações em assuntos ESG que podem – e provavelmente estão – redesenhando o ESG daqui em diante.

O caminho da transição energética que estava sendo percorrido terá sua velocidade acelerada ou sofrerá um cavalo-de-pau?

O intuito deste artigo é compartilhar perguntas, não respostas. Embora o escriba tenha suas visões – em alguns pontos mais claras, em outros mais turvas – a proposta aqui é o estímulo ao debate.

A – Qual o impacto da guerra para a transição energética?

O mundo já assistia à migração de um modelo energético predominantemente baseado em combustíveis fósseis para uma matriz mais limpa, baseada em fontes renováveis. A discussão acerca do assunto estava centrada tanto na velocidade que esta transição deveria ser feita como nas diferentes alternativas energéticas que seriam mais viáveis.

A eclosão da guerra ocasionou uma súbita valorização do barril de petróleo com efeito em cascata para várias cadeias industriais nas mais variadas geografias, uma vez que a Rússia é um dos maiores exportadores de petróleo do globo, sendo responsável por 11% do volume exportado.

Na lista dos dez maiores exportadores, além da Rússia, figuram nomes como Arábia Saudita, Iraque, Emirados Árabes, Kuwait e Nigéria – países com regimes não democráticos ou com democracia frágil.

Será que o mundo vai querer manter o risco de continuar dependente destes países?

As eventuais soluções para esta situação são antagônicas: ou acelerar a transição energética para outras fontes, reduzindo a dependência do petróleo... ou desenvolver novas fronteiras de exploração (por exemplo, o pré-sal brasileiro, entre outros), reduzindo a dependência das nações supracitadas. Uma solução tem foco na agenda climática, a outra na geopolítica.

Fica a pergunta: o caminho da transição energética que estava sendo percorrido terá sua velocidade acelerada ou sofrerá um cavalo-de-pau?

É evidente que o boicote é uma importante força de pressão na mão de um relevante stakeholder: o consumidor. Mas, será que, considerando a filosofia ESG, o mesmo é de fato efetivo?

B – O papel do mundo corporativo no desenvolvimento da agenda ESG foi alterado?

Poucas horas após a invasão da Ucrânia pela Rússia, vários bancos russos foram excluídos do SWIFT, que é o sistema dominante de transações financeiras globais. Tratou-se de uma decisão de governo – no caso a União Europeia, no intuito de impor sanções à Rússia.

Mas quase que simultaneamente o mundo corporativo aderiu a seus próprios mecanismos de sanção e boicote. Redes sociais como Twitter e Facebook bloquearam suas operações na Rússia, sistemas de streaming como Netflix suspenderam seus serviços naquele país, marcas como Nike, Adidas, Apple, Toyota, Coca-Cola, Danone anunciaram a retirada total ou parcial de suas operações russas; meios de pagamento como Visa, Mastercard e Paypal adotaram linha semelhante, entre muitas outras.

Estas corporações entraram no debate e tomaram um lado, abandonando a neutralidade em que muitos destes nomes se encontravam.

Passada a situação de guerra, como estas corporações se comportarão diante de outros importantes temas da sociedade? Serão estas companhias implacáveis nas ações de combate à mudança climática, racismo e desigualdades ou voltarão a ficar reclusas e omissas?

C – O posicionamento corporativo será movido à ética ou aos interesses econômicos?

A ampla participação corporativa na guerra, ainda que de forma indireta, chamou a atenção, conforme discutimos no item anterior.

Em geral, empresas tendiam a se mover quase que exclusivamente por interesses econômicos e, neste conjunto de ações, deu-se a entender que violações de direitos humanos e empatia ao próximo teriam subido ao topo da agenda. Será?

As empresas que estão deixando de operar na Rússia certamente terão, em maior ou menor grau, impacto em suas receitas e lucro. Daí, muitos podem concluir que estão realizando sua dose de contribuição em favor da paz.

Pode ser. Mas também há de se considerar que aqueles que seguissem operando na Rússia e não se posicionassem – a despeito da opinião pública predominante no mundo ocidental – poderiam sofrer boicotes e ver os valores de suas marcas corroídas.

Portanto, seria a ação na Rússia uma atitude de legítima defesa de direitos humanos ou apenas um olhar financista buscando a decisão que minimiza perdas financeiras?

Vale acompanhar a postura das mesmas companhias diante de outros casos de violações de direitos antes de realizar juízo de valor.

D - Boicotes compõem o ferramental ESG?

Bem antes da guerra na Ucrânia já se aventava a possibilidade de o Brasil ser boicotado na exportação de carne bovina por conta do desrespeito nacional no combate ao desmatamento. Anteriormente a isso, marcas ocidentais que se posicionaram contra a possibilidade de trabalhos forçados de uigures, tibetanos e cazaques na província de Xinjiang haviam sido boicotadas na China. O tema do boicote associado a questões socioambientais já vinha amadurecendo.

Contudo, a partir da guerra na Ucrânia o expediente do boicote pode ter ganho uma nova dimensão. Subsequentemente à eclosão da guerra, sucederam-se diversas iniciativas de boicote em todo o mundo, levando inclusive à irracionalidade de boicotar pratos de origem russa em restaurantes, a leitura de autores russos ou mesmo ouvir compositores daquela geografia.

É evidente que o boicote é uma importante força de pressão na mão de um relevante stakeholder: o consumidor. Mas, será que, considerando a filosofia ESG, o mesmo é de fato efetivo?

Se o boicote é realizado para pressionar o opressor e proteger o oprimido, temos que entender qual o efeito que o mesmo causa e sobre quem. Para tanto, o ponto de partida é dissociar governo de sociedade civil.

É possível que um boicote com espírito legítimo de pressionar governos resulte em, por exemplo, fome, desemprego e pobreza da sociedade civil daquele país. Hipoteticamente, se o mundo exterior fechar as portas para os produtos brasileiros por conta do desmatamento, como ficam os brasileiros que lutam contra esta prática? E as companhias responsáveis? E as entidades e instituições que estão firmemente engajadas nesta causa? Um eventual boicote irrestrito causaria sofrimento inclusive naqueles que já são vítimas.

Fica então a questão: que tipo de boicote cabe na agenda ESG? Todo? Nenhum? Algum? Quais?

E – Setores excluídos serão reclassificados?

Mesmo aqueles que estão nos primeiros passos da integração ESG naturalmente incluem alguns setores em suas listas de exclusão: tabaco, jogos de azar, pornografia e setor de defesa são alguns exemplos.

O setor de defesa é um caso curioso. Em inglês, chamado de “defense”, cabe questionar por que não é chamado de “offense”. Provavelmente, já seria esta uma tentativa de aculturar investidores e outros stakeholders de que armamento seja algo necessário para proteção apenas, suavizando a narrativa sobre quem a produz.

A guerra na Ucrânia tem sido utilizada pela indústria bélica como argumentação para reconsiderar o posicionamento ESG sobre este setor. Caso o setor de defesa deixe o rol dos vilões, automaticamente teria o custo de financiamento reduzido e também atrairia investidores que outrora o excluíam.

O fato é que esta discussão realmente está ocorrendo e já levou alguns importantes investidores a reverem seus conceitos e reclassificarem o setor como aceitável.

A pergunta é: a partir deste exemplo, irão outros setores se organizarem para encontrarem subterfúgios para saírem das listas de exclusão, alegando que geram emprego, renda, contribuem tributariamente entre outros efeitos?

A lista de perguntas é bem mais extensa que o espaço destinado para este artigo.

O texto termina, mas que se sigam as reflexões!