Bloomberg Opinion — O Relatório Anual Mundial de Felicidade foi publicado na sexta-feira (18) e, como era de se esperar, os países ricos nórdicos e do norte da Europa se agruparam no topo. A Finlândia e a Dinamarca foram classificadas como os recantos mais felizes da Terra, em primeiro e segundo lugares respectivamente, e os oito primeiros foram todos no norte da Europa. Afeganistão, Líbano e Zimbábue ficaram na retaguarda, como sempre ocorre entre os países empobrecidos e devastados pela guerra.
Os dados da pesquisa, divulgados pela Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável, uma afiliada das Nações Unidas, foram compilados antes da invasão da Ucrânia (nº 98) pela Rússia (nº 60) em 24 de fevereiro, que presumivelmente reduziu o nível de felicidade humana em praticamente todos os lugares.
Os Estados Unidos ficaram em 16º lugar, posição que geralmente ocupam no ranking. Para um país supostamente dedicado à “busca da felicidade” – para não mencionar o excesso de autopromoção – o resultado é sempre um pouco decepcionante. Os americanos se perguntam, balançam a cabeça e ruminam em seus nichos políticos sobre as causas. Muitas vezes há uma grande diferença entre como as pessoas se sentem em relação ao seu bem-estar individual e o que elas pensam sobre a real situação da nação.
E todos os anos eu ranjo os dentes. Classificar a felicidade como uma contagem de medalhas nas Olimpíadas faz pouco sentido. Para começar, classificar a felicidade como objeto de comparação só é logicamente coerente se tivermos uma concepção consensual do que é felicidade. Mas nós não temos. Não é uma quantidade mensurável de forma abstrata.
Falar sobre isso, ou ainda se propor a medir a felicidade, é expressar uma crença sobre o que deveria significar. O autorrelato de diferentes países, portanto, não reflete os padrões comuns de um lugar para outro. Reflete a maneira como as pessoas nesses países conceituam a felicidade e a maneira como se avaliam em relação às suas próprias concepções.
Hoje, no linguajar comum, “felicidade” significa mais algo como uma alegria sorridente, seja profundamente sentida ou meramente passageira. Os americanos são um povo sorridente, julgados pelas normas culturais do mundo.
Se aplicássemos a definição americana de felicidade a um índice mundial, os escandinavos não ficariam no topo. A versão deles de felicidade é diferente.
A observação mais importante sobre a verdadeira felicidade é que ela é muito diferente do simples sentimento de prazer ou deleite. A palavra em si tem uma história complexa em sua etimologia. Mas quando falamos disso como um ideal humano, estamos, ou deveríamos estar, nos referindo a um significado específico: felicidade como bem-estar ou florescimento ou prosperidade humana.
Isso é o que Aristóteles chamou de “eudaimonia” e definiu como viver bem e estar bem. É a isso que Thomas Jefferson se referia na Declaração de Independência quando colocou a busca da felicidade ao lado da vida e da liberdade em seu trio de direitos inalienáveis. Sua “felicidade” do século XVIII foi concebida como uma tradução da noção de Aristóteles, do latim “felicitas’'. A felicidade ideal de Jefferson era algo mais profundo do que o sorriso de hoje.
Com certeza, existem ideias diferentes sobre o que constitui o florescimento ou a prosperidade humana. Qual é o nível de relevância, por exemplo, de se contentar com a própria sorte? Algumas pessoas diriam que é o segredo para florescer. Outros diriam que se conformar com o mundo ao seu redor não traria muita motivação para transformá-lo num lugar melhor, ou a si mesmo, ou às suas circunstâncias.
Na língua inglesa, há um aspecto importante da palavra felicidade - happiness - que é sua associação etimológica com sorte ou fortuna. A palavra “hap” significa sorte, como por acaso. Ser feliz uma vez significava ser sortudo ou afortunado, pelo menos para falantes de inglês.
A sorte obviamente desempenha um grande papel nas várias concepções de felicidade medidas no relatório mundial. Ninguém escolhe onde nasce ou se entra no mundo rico ou pobre. A sorte de estar bem alimentado e saudável, sem dúvida, explica um pouco por que os cidadãos dos países mais ricos, em média, tendem a dizer que são mais felizes do que os dos pobres.
Mesmo as conexões humanas que forjamos ao longo da vida têm um grande componente de sorte. Podemos escolher nossos relacionamentos não familiares, mas é preciso sorte para estar em condições de cultivá-los. De fato, é preciso sorte para nascer em uma situação em que você tenha a capacidade de tentar se fazer feliz, seja criando laços com os outros ou por outros meios.
Reconhecer o componente de boa sorte presente na felicidade – como o próprio Aristóteles fez – justifica um olhar questionador, ou no mínimo, curioso, para a interpretação típica das pesquisas globais. Normalmente, o objetivo desses índices, seja ao medir o nível de liberdade, o valor do produto interno bruto ou a taxa de alfabetização, é motivar os formuladores de políticas a melhorar sua classificação.
A ideia básica é que nenhum país quer ficar abaixo do ranking, ou de onde “deveria” estar. Esta é a ideologia da meritocracia simplória. Classificamos todos os alunos do primeiro ao último com base na teoria duvidosa de que a classificação motivará todos a se esforçar mais, especialmente os que estão na base.
Mas considerando que o fator sorte contribui significativamente para o índice de felicidade, o ranking não vai motivar ninguém. As pessoas em Ruanda (nº 143 e um perpétuo finalista inferior) sabem que estão lutando contra a violência e a pobreza. Presumivelmente, eles querem melhorar sua situação – mas não porque querem ter uma classificação mais alta no índice de felicidade. Os finlandeses podem gostar de ouvir que são as pessoas mais felizes do mundo. Mas eles não definirão sua política social para vencer essa corrida em particular.
Classificar a felicidade, ou tentar fazê-lo, expressa a fantasia de que se trata de uma meta objetivamente alcançável – e que outra pessoa pode ter mais do que nós. A felicidade como bem-estar é um objetivo maravilhoso a ser estabelecido para nós mesmos, no nível individual e coletivo. Mas classificá-la, para uma pessoa ou um país, nos faz perder de vista o objetivo própria da felicidade.
Noah Feldman é colunista da Bloomberg Opinion e apresentador do podcast “Deep Background”. Ele é professor de direito na Universidade de Harvard e Assessor do Ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos, David Souter. Seus livros incluem “The Three Lives of James Madison: Genius, Partisan, President”.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.
– Esta coluna foi traduzida por Marcelle Castro, Localization Specialist da Bloomberg Línea.
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