As principais plataformas de entrega e mobilidade que atuam no Brasil falham em garantir direitos trabalhistas básicos como remuneração justa, contratos bem estabelecidos, políticas de gestão, segurança e antidiscriminação críveis, além de canais de comunicação e possibilidade de representação eficazes. Essas são as conclusões do estudo Fairwork Brasil 2021, coordenado pelo Oxford Internet Institute e WZB Berlin Social Science Centre, publicado na quinta-feira (17).
Nenhum aplicativo brasileiro conseguiu mais do que 2 pontos na avaliação desses padrões mínimos de trabalho considerados decentes, na avaliação da Fairwork . A pontuação máxima era 10. Foi a primeira vez que o Fairwork, realizado em 27 países, analisou as seis maiores plataformas de entrega do Brasil. O iFood e a 99 receberam 2 pontos, enquanto a Uber recebeu um. Rappi, GetNinjas e UberEats não pontuaram.
Chile e Equador tiveram resultados semelhantes à pesquisa brasileira, com a maior pontuação sendo 3. Mas os resultados da América Latina são piores do que os da África, Ásia e Europa, onde há plataformas com alta pontuação, atingindo 7, 8 e 9.
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Rafael Grohmann é o principal investigador para a Fairwork Brasil. Ele explica que plataformas locais pontuam melhor do que multinacionais. “A nota da Uber em vários países é 1 ou 2. É uma política global”, disse. De acordo com Grohmann, as empresas que não pontuaram significam que a pesquisa não teve evidências suficientes para provar o que foi cumprido.
“Nossa metodologia envolve entrevistas com trabalhadores, reuniões com plataformas e pesquisa documental. Há casos que entramos em contato com as plataformas e não tivemos retorno”, disse, em entrevista à Bloomberg Línea.
O estudo, que conta com uma rede global de pesquisadores de várias universidades, manteve o UberEats na pesquisa porque ela foi feita ao longo de 2021, enquanto as operações de entrega de comida da plataforma ainda estavam ativas. No Brasil, a Unisinos realizou a pesquisa junto com uma equipe de acadêmicos.
Apenas a 99 conseguiu demonstrar por meio de declaração pública que todos os seus trabalhadores ganham acima do salário mínimo local, que em 2021 era de R$ 5,50 por hora ou R$ 1.212 por mês, segundo o relatório.
A maioria das plataformas, segundo o estudo, não atinge esse limite básico, porque não possui um piso de remuneração ou cobra altas comissões ou taxas. Isso significa que o entregador pode trabalhar com delivery pelo app o mês todo e ainda assim receber menos que o salário mínimo.
As tarifas e as horas de trabalho também são altamente voláteis, levando a uma alta insegurança de renda para os trabalhadores, segundo o relatório.
Duas plataformas (Uber e 99) conseguiram evidenciar ações para os trabalhadores de riscos específicos de tarefas alinhados com os princípios Fairwork, como o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPI) e políticas claras de seguro contra acidentes e saúde.
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Em outras plataformas, se o EPI foi oferecido, muitos trabalhadores enfrentaram barreiras significativas para acessá-lo, por exemplo, por conta do local de coleta distante. Ainda segundo o relatório, outra reclamação recorrente dos entregadores foi a falta de infraestrutura básica como acesso a banheiros, áreas de descanso e água potável. “Muitos trabalhadores enfrentam sérios riscos à saúde decorrentes de acidentes de trânsito, agressões, exposição excessiva ao sol, problemas nas costas, estresse e sofrimento mental. As plataformas precisam fazer mais para mitigar esses riscos”, diz o estudo.
Apenas o iFood conseguiu evidenciar padrões básicos em relação a contratos justos, como resultado do envolvimento com a Fairwork, diz o relatório. Mas a maioria das plataformas ainda não fornece um contrato que seja comunicado em linguagem clara, compreensível e acessível aos trabalhadores o tempo todo, e não notifica os entregadores sobre as alterações propostas dentro de um prazo razoável, diz a pesquisa.
Nenhuma plataforma conseguiu provar que seus contratos estavam livres de cláusulas abusivas e que não excluem injustificadamente a responsabilidade por parte da plataforma.
O estudo também pontua que nenhum aplicativo conseguiu evidenciar canais de comunicação eficazes, processos de apelação transparentes e políticas antidiscriminação.
Segundo a Fairwork, apenas o iFood conseguiu destacar políticas básicas criando um Fórum de Entregadores como canal de comunicação com lideranças de entregadores. A maioria das plataformas, no entanto, não possui uma política documentada que reconheça a voz do entregador e da organização dos trabalhadores, diz a pesquisa.
“Os direitos dos trabalhadores à liberdade de associação são muitas vezes limitados. Vários trabalhadores relatam que já foram penalizados por participarem de greves”, diz o estudo. O maior movimento grevista dos entregadores foi em julho de 2020, no chamado “Breque dos Apps”, organizado por entregadores de plataformas como o iFood, Loggi, UberEats e Rappi.
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Um dia depois da publicação do estudo, o iFood anunciou que está ajustando a taxa mínima de remuneração por entrega de R$ 5,41 para R$6 para seus mais de 200 mil entregadores. A empresa também concedeu um acréscimo de 50% (R$ 1 para R$ 1,50) por quilômetro rodado para mitigar perdas referente ao aumento dos combustíveis, mas a iniciativa seguirá de forma permanente. O reajuste será válido para entregadores que utilizem todos os meios de transporte e não haverá critérios especiais de elegibilidade. O iFood disse que este é o terceiro aumento concedido aos entregadores no ano.
iFood
Segundo o iFood, em novembro e janeiro a empresa lançou um fundo de R$ 8 milhões para ajudar a compensar os sucessivos aumentos dos preços dos combustíveis no Brasil. Para a Bloomberg Línea, Roberto Gandolfo, VP de Logística e Restaurantes do iFood, respondeu por e-mail que “embora haja uma realidade atual de que os preços dos combustíveis estão subindo muito em todo o mundo, o aumento aos entregadores é resultado de um diálogo aberto e ativo entre os executivos e os entregadores para aumentar remuneração e benefícios para pessoas que buscam trabalho flexível por meio do aplicativo e plataforma do iFood”.
Gandolfo diz que a decisão de aumentar os ganhos dos entregadores parceiros tem mais a ver com a estratégia de ser o aplicativo principal dos entregadores do que com a inflação do preço dos combustíveis.
O aumento entrará em vigor em 2 de abril. Mas, segundo Gandolfo, mesmo com o pagamento atual, os entregadores do iFood já ganhavam cerca de quatro vezes o salário mínimo por hora do Brasil. “Estimamos que isso aumentará os ganhos totais para nossos parceiros de entrega em R$ 3,2 bilhões nos próximos 12 meses”, disse.
Ele afirmou ainda que a última classificação Fairwork mostra que, embora as iniciativas adotadas pelo iFood posicionem a empresa à frente do setor, é preciso fazer mais. “É isso que estamos fazendo hoje. Nossa equipe se reunirá com o Fairwork nos próximos dias para ouvir seus comentários sobre o estudo e coletar contribuições importantes para melhorar ainda mais nossas políticas em favor dos parceiros de entrega”.
O executivo disse ainda que além dos recentes reajustes, a empresa criou um seguro de acidentes pessoais, oferecendo cobertura para lesões temporárias; construiu parcerias com estabelecimentos para a criação de mais de 1.400 pontos de apoio; e avançou no relacionamento com os entregadores, incluindo o primeiro fórum com líderes da categoria de delivery. O encontro serviu de base para a construção de uma Carta Compromisso do iFood com os entregadores no dia 15 de dezembro de 2021.
Em 2020, as operações do iFood geraram cerca de R$ 31,8 bilhões do PIB brasileiro e 739 mil empregos, segundo a plataforma. “O iFood foi mais longe no debate sobre o aumento da equidade e dignidade dos trabalhadores da plataforma e defendeu publicamente a necessidade de construção urgente de mecanismos que apoiem os entregadores no âmbito previdenciário, em consonância com o novo modelos de trabalho que garantem autonomia profissional e flexibilidade de seu tempo na forma que consideram mais adequada à atividade e que, hoje, estão abandonados pela legislação vigente”, disse o VP.
Segundo Grohmann, agora o Fairwork começa a segunda rodada para avaliar as empresas neste ano e pretende ampliar o número de plataformas avaliadas. “Não é inevitável esse cenário. Mesmo o iFood e 99 a partir das reuniões conosco se comprometeram a fazer mudanças”.
De acordo com o investigador, o relatório olha as empresas para que não sejam mudanças pontuais para melhoria de imagem, o chamado “fairwashing”.
“Muitas plataformas, embora tenham discurso de serem a favor da cidadania, não se atentam aos princípios básicos, e o trabalho decente é algo que é importante para a própria reputação das empresas. Muito tem sido sido estratégia e relações públicas das empresas. Queremos ver se o projeto é perene ou se é algo embrionário, se nada ainda foi feito. É uma relação contínua”.
Uber
Por meio de nota, a Uber disse que acredita que é preciso avançar em mecanismos que melhorem a proteção social dos trabalhadores de aplicativo para que esses profissionais independentes possam exercer plenamente sua atividade.
“Nos últimos anos, em diálogo com motoristas parceiros, a Uber vem implementando uma série de medidas nessa direção”. A empresa reconheceu que “ainda há muito o que avançar”, mas lamentou que o Fairwork Brasil tenha “ignorado os fatos em pelo menos três princípios, remuneração, gestão e contratos”.
“A Uber é a única plataforma a exibir em seu site, com transparência, informações sobre a média de ganhos dos parceiros de acordo com a cidade e o número de horas online. Qualquer pessoa pode consultar os dados e inclusive verificar detalhes sobre a metodologia de cálculo. O site aponta que, na cidade de São Paulo, por exemplo, os parceiros que dirigem por volta de 40 horas têm ganhos de cerca de R$ 1.300 por semana. Os dados são calculados com base na média de ganhos dos parceiros nas últimas quatro semanas”, disse a empresa.
Segundo a Uber, a desativação de contas de motoristas parceiros não acontece com frequência, e a Uber é a única plataforma a disponibilizar processos, incluindo um portal, para que o parceiro possa solicitar revisão de alguma decisão que entenda equivocada. Os detalhes e o passo a passo dos processos de revisão são informados no site da Uber.
A plataforma disse ainda que todos os motoristas parceiros necessariamente precisam revisar os Termos e Condições Gerais quando se cadastram na plataforma, o documento sempre permanece à disposição para consulta, e quando existe qualquer atualização é enviado um comunicado para nova revisão obrigatória. “Além disso, todas as regras e políticas da plataforma, como o Código da Comunidade ou a política de desativação de contas, são informados no site da Uber,” diz a nota.
Rappi
Também por meio de nota, o Rappi disse que mantém um diálogo constante com os entregadores e que está permanentemente atento a soluções que possam favorecê-los. “É oferecido a eles centros de atendimento presenciais, suporte em tempo real, cursos de capacitação, informativos de segurança no trânsito, botão de emergência para situações de risco, seguro para acidente pessoal, invalidez permanente e morte acidental e dois planos de assistência em saúde”.
O unicórnio disse ainda que criou um fundo de R$ 25 milhões para os entregadores parceiros, como uma forma de garantir aumentos em seus ganhos no período de jun/2021 e jan/2022, com o aumento da gasolina entre os principais fatores desse investimento.
‘Com isso, foi possível aumentar seus rendimentos, numa média de aumento de 34% por pedido. O Rappi tem trabalhado continuamente para aperfeiçoar os seus serviços e continuar sendo um ecossistema atrativo para os entregadores parceiros.
Quanto ao relatório da Fairwork, o Rappi reconhece a importância da iniciativa, e irá considerar as suas conclusões para aperfeiçoar as iniciativas que desenvolve em prol dos entregadores parceiros”.
GetNinjas
Já o GetNinjas, no âmbito executivo da empresa, disse que não foi consultado durante a elaboração do relatório Fairwork Brasil para esclarecer o modelo de operação da plataforma que a difere das demais empresas citadas pelo levantamento.
“Destacamos que o GetNinjas opera como um classificado online, em que prestadores de serviço - o que inclui micro e pequenos empreendedores - anunciam seus serviços e conseguem novos potenciais clientes. Dessa forma, os profissionais utilizam a plataforma como um canal de anúncio para divulgar serviços e negociar com potenciais clientes. O contato, negociação e pagamento do serviço entre profissional e cliente são realizados fora da plataforma e, desta forma, são os prestadores que definem preço, horário e condições do serviço junto ao cliente. Portanto, o nosso modelo de negócio se diferencia dos demais citados na pesquisa”, disse a empresa, por meio de nota. A Bloomberg Línea entrou em contato com a 99, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria