Como o Brasil conseguiu destruir sua própria indústria de fertilizantes

Sob os mandatos de cinco presidentes, a dependência do exterior saltou de 46% para 85%. Agora, com a guerra, agronegócio corre risco de desabastecimento

Planta da unidade de fertilizantes da Petrobras em Três Lagoas (MS): R$ 3,2 bilhões gastos antes de ser abandonada
17 de Março, 2022 | 10:45 AM

Bloomberg Línea — Nos últimos 25 anos, decisões tributárias duvidosas, escândalos de corrupção e mudanças da Petrobras produziram, juntos, o quadro de crescente dependência do país de fertilizantes produzidos no exterior, deixando o agronegócio brasileiro – um setor responsável por seguidos superávits comerciais e por 30% do PIB – vulnerável à escalada dos preços internacionais e diante da incerteza do fornecimento no futuro.

Menos fertilizantes na lavoura se traduzem em colheitas menores e, em efeito cascata, menor entrada de recursos no país e mais inflação nos preços dos alimentos. A guerra da Ucrânia escancarou essa realidade: Rússia e Belarus, uma ditadura aliada de Putin no Leste Europeu, principais fornecedores do Brasil, estão sob embargo da comunidade internacional e cresceu o risco de os insumos necessários não chegarem ao agricultor brasileiro.

Em 1996, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), para cada tonelada de fertilizantes que produzia internamente, o país importava outra tonelada. No ano passado, a dependência atingiu seu maior volume da história recente: 85% dos insumos vieram de fora.

Diretor executivo do Sinprifert (Sindicato Nacional das Indústrias de Matérias-Primas de Fertilizantes), Bernardo Silva reconhece que a política de desinvestimentos da Petrobras foi um marco importante no mercado. Mas, segundo ele, a dependência brasileira de produtos importados não foi causada pelos desinvestimentos da Petrobras, e sim por uma política que ele considera equivocada adotada ainda nos anos 1990.

PUBLICIDADE

Veja mais: Crise de fertilizantes gera pressão por mineração na Amazônia

Em 1997, o Confaz (Conselho Nacional das Secretarias de Fazenda) aprovou um convênio que zerou o ICMS cobrado de fertilizantes importados e manteve a alíquota cobrada do similar nacional em 8,4% – parte desse problema foi resolvido no ano passado, com a aprovação do Convênio ICMS 26, que pretende reequilibrar as alíquotas do imposto até 2024.

Segundo dados do Sinprifert, em 1996 a indústria brasileira produzia 6,7 milhões de toneladas de NPK (sigla para nitrogênio, fósforo e potássio, matérias primas para a fabricação de fertilizantes) e importava 5,5 milhões. Em 2021, foram importadas 39,2 milhões de toneladas. Um aumento de 613% em 25 anos, diz Bernardo Silva.

“Isso mostra claramente que não houve políticas que tirassem as amarras que impedem a rentabilidade de projetos nacionais”, diz Silva.

“Nossa situação não foi criada pelos desinvestimentos da Petrobras. Os desinvestimentos foram apenas reflexo bastante fidedigno do ambiente de absoluto desestímulo à produção de fertilizantes no país. A Petrobras cansou de ter prejuízo e de operar em margens escassas para ser usada como política industrial e decidiu focar onde teria mais rentabilidade e retorno para seus investidores”, afirma.

Uma década depois da decisão do Confaz, os importados já tinham conseguido inverter o equilíbrio da gangorra. Em 2006, no governo Lula (PT), o país importava 58% da demanda de seus agricultores e produzia 42%.

O FATOR LAVA JATO

PUBLICIDADE

Uma década mais tarde, sob a presidência de Dilma Rousseff (PT), a situação da dependência dos fertilizantes importados tornou-se mais aguda em meio ao escândalo do petrolão. Embora a área de fertilizantes da Petrobras não tenha tido casos de corrupção comprovados, ela foi desmontada na reestruturação da empresa.

Em agosto de 2014, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa disse ao Ministério Público Federal no Paraná que havia um esquema de corrupção na estatal: grandes empreiteiras haviam se organizado num cartel para fraudar licitações e superfaturar contratos. Para manter o esquema funcionando, pagavam propina a diretores da companhia, que davam uma parte do dinheiro a políticos e partidos. O valor da propina era de 3% sobre o valor original dos contratos, segundo o ex-executivo.

Em 2014, a Petrobras tinha três fábricas de fertilizantes (FaFen, na sigla do mercado), uma em Sergipe, uma no Paraná e uma na Bahia. Hoje, as unidades do Nordeste estão arrendadas para a Proquigel, do Grupo Unigel, e a do Paraná está parada - ou “hibernada”, como dizem os comunicados da Petrobras.

Veja mais: Ministra embarca para o Canadá atrás de fertilizantes para o Brasil

Também havia a Unidade de Fertilizantes Nitrogenados III (UFN III), em Três Lagoas, Mato Grosso do Sul, que teve a obra interrompida em 2015, quando estava 80% concluída e já haviam sido investidos R$ 3,2 bilhões, sob a alegação de superfaturamento – o que nunca foi demonstrado. Hoje, a Petrobras negocia a venda da unidade para o grupo russo Acron – que, por causa das sanções ao governo de Vladimir Putin, também subiu no telhado.

Havia planos da construção de outras três unidades do tipo, uma em Uberaba (MG), uma em Laranjeiras (SE) e uma em Linhares (ES). Os planos foram abandonados em 2016, já no governo-tampão de Michel Temer (MDB), quando a Petrobras decidiu sair do mercado de fertilizantes.

Em 2016, o país já importava 73% de todos os fertilizantes que consumia.

A worker operates a machine to fill sacks of Apaviva NPK(S) phosphate fertilizer at the PhosAgro-Cherepovets fertilizer plant, operated by PhosAgro PJSC, in Cherepovets, Russia, on Thursday, Dec. 2, 2021. Russia plans to impose a six-month quota on some fertilizer exports to safeguard local supplies and limit costs for farmers after the energy crisis sent nitrogen nutrient prices soaring. Photographer: Andrey Rudakov/Bloomberg

A ÁGUA SUJA E A CRIANÇA

Quando o balanço do terceiro trimestre de 2014 finalmente saiu, em abril de 2015, foi o começo da virada política na Petrobras, lembra o petroleiro Gerson Castellano, diretor da FUP (Federação Única dos Petroleiros) e ex-funcionário de uma das fábricas de fertilizantes. Naquele balanço, a equipe da então presidente da empresa, Graça Foster, contabilizou o que seria o impacto da Lava Jato sobre seus negócios: R$ 6,194 bilhões.

Isso seria a “baixa de gastos capitalizados indevidamente”, de acordo com o documento. Chegou-se a esse valor por meio da aplicação da cifra de 3% sobre todos os contratos apontados pelos delatores como parte do esquema descoberto pela Lava Jato.

Essa conta é questionada até hoje por advogados que trabalharam na operação, porque os 3% fazem parte de um depoimento prestado em regime de delação premiada, quando o depoente recebe benefícios em troca de informações, e não foi reconhecido como regra geral pelos demais delatores. O TCU (Tribunal de Contas da União), por exemplo, trabalha com outras formas de cálculo.

A própria Petrobras reconhece as dificuldades das contas: “A Petrobras acredita que os valores que foram pagos a mais em decorrência do referido esquema de pagamentos indevidos não deveriam ter sido incluídos no custo histórico do seu ativo imobilizado. Contudo, a companhia não consegue identificar especificamente os valores de cada pagamento realizado no escopo dos contratos com as empreiteiras e fornecedores que possuem gastos adicionais ou os períodos em que tais pagamentos adicionais ocorreram”.

A conta, no entanto, fez parte de um impairment feito pela estatal que se reproduziu nos balanços seguintes, até que, em 2015, foi registrado prejuízo anual recorde, de R$ 38,836 bilhões. As justificativas foram a queda do valor do petróleo, a desvalorização do real e a perda do grau de investimento do país, diante do contexto de crise política causado pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

Veja mais: Falta de fertilizante afeta custos e planejamento da safra no Brasil

Embora o impairment tenha sido feito ainda na gestão de Graça Foster, ele foi integrado ao balanço pela gestão de Aldemir Bendine. Ele assumiu o comando da Petrobras em fevereiro de 2015. Em março, a companhia anunciou um aumento em seus “desinvestimentos”. Sairia dos US$ 5 bilhões a US$ 11 bilhões até 2018, anunciados em 2014, para US$ 13,7 bilhões até dezembro de 2016.

A saída do mercado de fertilizantes foi uma decisão de negócio empurrada pela Lava Jato, afirma Castellano, da FUP. Também na gestão de Parente foi decidido que a Petrobras passaria a praticar seus preços de acordo com uma “política de paridade de preços internacionais”. Ou seja, a companhia passaria a praticar os preços do petróleo no mercado internacional, conforme as variações do barril e do dólar.

“A Petrobras tinha uma série de projetos e parou por causa da Lava Jato. Jogamos a criança fora junto com a água suja”, diz Castellano.

Em março de 2018, a Petrobras anunciou que colocaria as fábricas de fertilizantes em “hibernação”. Isso seria feito até o final do primeiro semestre daquele ano.

BOLSONARO

Dois anos depois, já no governo de Jair Bolsonaro (PL) e sob a presidência do general Silva e Luna, a companhia anunciou que as fábricas do Nordeste seriam arrendadas à Proquigel, do Grupo Unigel. O valor, R$ 117 milhões por ano, é o equivalente a 1% da expectativa de receita das unidades por ano, segundo as contas do Sindicato dos Petroleiros (Sindipetro).

A justificativa da Petrobras para o arrendamento era que as unidades davam prejuízo. Em 2017, a fábrica da Bahia apresentou déficit de R$ 200 milhões. A de Sergipe, de R$ 600 milhões. A unidade do Paraná continua “hibernada”.

Unidade de produção de fertilizantes em Minas Gerais; o Brasil só detém cerca de 3% das reservas mundiais de potássio e fósforo

Já Castellano acredita que essas decisões foram tomadas por causa da política de paridade. Como os preços passaram a ser praticados em dólar e conforme o mercado internacional, afirma, os insumos necessários para a fabricação de fertilizantes nas três unidades que estavam em funcionamento (Sergipe, Bahia e Paraná) ficaram muito caros. Aliado a isso, havia uma política de tributo zero para os produtos importados, conta o petroleiro.

Veja mais: Mercado de fertilizantes tem nova pressão após sanções dos EUA

“Quem importava, os grandes players do agronegócio, deu pouca importância à situação, porque ficou mais barato importar do que comprar o produto fabricado aqui. Sempre dissemos que isso precisava ser rediscutido, porque era uma questão geopolítica, de segurança alimentar, e não apenas econômica, de custos. No final, optamos pela pior solução: destruir o parque já instalado e passar a depender de outros países”, afirma.

O presidente Jair Bolsonaro vem usando a crise dos fertilizantes para empurrar a tramitação de um projeto de lei que visa a permitir a mineração em terras indígenas. Segundo ele, é na foz do Rio Madeira, na região da Amazônia, que está a maior reserva de potássio do Brasil, o que poderia ajudar a conter a alta de preços dos insumos agrícolas.

No entanto, essa informação é imprecisa. Segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, a maioria das reservas de potássio está fora de reservas indígenas. Ao longo do Rio Madeira, há diversas áreas de mineração já no nome da Petrobras e da empresa Potássio do Brasil, controlada pelo banco canadense Forbes & Manhattan, diz o jornal.

Outro agravante é que o Brasil só detém cerca de 3% das reservas mundiais de potássio e fósforo, outro insumo para fabricação de fertilizantes. E 80% da reservas desses minerais do mundo estão concentradas na Rússia, na Belarus e no Canadá, segundo dados da FUP.

“Portanto, não adianta destruir floresta, poluir rios e retirar os indígenas de suas terras. Na matéria prima de origem mineral, o Brasil sempre será dependente de outros países. Nossa saída são os nitrogenados, que dependem de gás natural para serem fabricados. Era nisso que a Petrobras investia antes de ser atropelada pela Lava Jato. Se aqueles projetos não tivessem sido abandonados, hoje não estaríamos nessa situação”, comenta Gerson Castellano, da FUP.

Leia também:

Esterco de galinha vira negócio de milhões para produtor de ovos

Escassez global de fertilizantes aumenta demanda por esterco

Pedro Canário

Repórter de Política da Bloomberg Línea no Brasil. Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero em 2009, tem ampla experiência com temas ligados a Direito e Justiça. Foi repórter, editor, correspondente em Brasília e chefe de redação do site Consultor Jurídico (ConJur) e repórter de Supremo Tribunal Federal do site O Antagonista.