Bloomberg Businessweek — A professora de finanças Claudia Yoshinaga pediu a seus alunos estrangeiros da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, que adivinhassem a taxa média de juros que as emissoras de cartões de crédito brasileiras cobram de saldos não pagos. Ela os instruiu a chutar alto. “A aposta mais ousada deles foi de 50%”, diz ela.
A resposta correta: 346,3%. “Tenho alunos dos Estados Unidos, da Bélgica, do continente africano… e é inacreditável para eles,” diz Yoshinaga.
Brasileiros que se endividaram durante a pandemia estão sofrendo com o peso da campanha do Banco Central para domar a teimosa inflação de dois dígitos. Enquanto os formuladores de políticas nos EUA e na Europa hesitavam, as autoridades monetárias da maior economia da América Latina responderam rapidamente à alta dos preços, estimulada por lembranças de crises de hiperinflação, que se estendeu até o início dos anos 1990.
Veja mais: Inflação faz brasileiro reviver experiência dos anos 80 no supermercado
Desde março de 2021, o Banco Central do Brasil elevou sua taxa básica de juros, a Selic, em um total de 875 pontos base. O remédio amargo está começando a mostrar resultados. Preços ao consumidor subiram 10,4% em janeiro em relação a um ano antes, uma melhora em uma alta de 18 anos de quase 11% em novembro.
As taxas mais altas estão reduzindo o poder de compra dos brasileiros. Pagamentos de dívidas do consumidor, incluindo financiamento de imóvel, carros, empréstimos, cartões de crédito e outros tipos de crédito rotativo agora abocanham cerca de 52% da renda familiar - um salto de 9 pontos percentuais em relação a 2020 e a taxa mais alta registrada desde que o banco central começou a acompanhar a métrica 17 anos atrás.
Durante a pandemia, mais brasileiros desempregados ou subempregados passaram a contar com cartões de crédito ou cartões de lojas para pagar por itens essenciais como mantimentos e remédios. Alexandra Silva, 26 anos, trabalhava como especialista em iluminação de teatro na ilha turística de Florianópolis quando a crise chegou. Ela perdeu o emprego e, enquanto corria atrás de outros trabalhos, ela viu sua renda cair de R$ 3.500 por mês (US$ 700) para R$ 1.800. “Estou fazendo um esforço enorme para não perder o controle sobre minhas finanças. Mas não consigo parar de usar meus cartões de crédito”, diz Alexandra, que às vezes transfere saldos de um cartão para outro para ganhar mais tempo para arcar com todos os seus compromissos.
Quando o Banco Central reduziu a taxa básica de juros para 2% em agosto de 2020 para apoiar a economia durante a crise da covid-19, muitos brasileiros aproveitaram a oportunidade para adquirir cartões de crédito ou fazer empréstimos. Uma série de empresas fintech passaram a competir com os bancos para conquistar novos clientes. No final de 2020, havia 134 milhões cartões de crédito ativos em circulação, de acordo com os últimos dados disponíveis do Banco Central, um aumento de 35% se comparado a 2018.
Enquanto cursava administração de empresas em uma faculdade no estado do Rio de Janeiro em 2017, Nathalia Rodrigues aceitou um trabalho de meio período em uma loja de sapatos, persuadindo os clientes que faziam fila no caixa a solicitarem um cartão de crédito da loja. Não levou muito tempo para começar a se sentir culpada por estar contribuindo para o endividamento das pessoas.
Assim, Nathalia, de 23 anos, se transformou em uma guru das finanças pessoais que dá conselhos no Twitter, no YouTube e no TikTok sobre tudo, desde como elaborar (e cumprir) um orçamento doméstico até como lidar com uma herança. Ela tem meio milhão de seguidores nas redes sociais.
“Assim que completam 18 anos, os brasileiros ouvem dos pais que precisam ter um cartão de crédito mesmo sem ter dinheiro para pagar”, diz Rodrigues. “Não estou dizendo que quem tem baixa renda não possa ter cartão de crédito, mas o limite precisa ser liberado de acordo com a renda.” O problema, diz ela, é que os limites de gastos são muitas vezes altos demais, permitindo que os novos titulares desses cartões de crédito acabem acumulando dívidas.
Muitos brasileiros também aproveitaram uma sequência de três anos e meio de taxas de juros de um dígito, a mais longa da história do Brasil, para comprar uma casa. Mas como quase todos os financiamentos do país têm taxas variáveis, muitos não foram capazes de continuar pagando as parcelas quando o banco central começou a aumentar a taxa de juros. A federação bancária do Brasil, Febraban, estima que 18,7 milhões de contratos de crédito para habitação foram renegociados desde o início da pandemia, embora os dados não diferenciem entre os mutuários que estão em dificuldades financeiras e aqueles que simplesmente procuram garantir uma taxa mais baixa.
Garben Hellen, de 53 anos, servidora pública em Brasília, recebeu as chaves de sua casa recém-construída em maio, mas já está tendo dificuldade de arcar com o pagamento do financiamento, de R$1.005 por mês, que aumentou mais de 10%. “Se a prestação continuar subindo a cada mês, eu simplesmente não vou conseguir pagar”, diz ela.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, descartou as preocupações de que a inadimplência vai disparar a partir dos atuais dois dígitos, comprometendo a saúde do sistema bancário e da economia em geral. “Os volumes de crédito ainda estão crescendo de forma saudável”, disse ele em um fórum online no mês passado. “Obviamente estamos sempre preocupados com maiores níveis de endividamento, mas até agora não vimos nada fora do que esperávamos.”
Dados compilados pelo Banco Mundial mostram que o spread da taxa de juros do Brasil – a diferença entre a taxa de empréstimo média dos bancos e a taxa de depósito - foi a terceira mais alta do mundo, com 26,8%, em 2020, o último ano com dados disponíveis. Os bancos argumentaram que o grande diferencial é reflexo do fato de muitos brasileiros não terem um histórico de crédito que permita aos credores avaliarem seu risco. A legislação que limitaria as taxas de juros dos cartões de crédito estagnou no Congresso.
O aumento das taxas de juros ajudou o Brasil a entrar em recessão no ano passado e, embora a economia tenha conseguido manter o crescimento de 0,5% no último trimestre de 2021, as condições de crédito mais apertadas continuarão a atrapalhar a expansão. Economistas estão projetando pelo menos mais dois aumentos de juros em 2022, elevando a Selic para 12,25%.
A piora dos níveis de endividamento das famílias “prejudicará a atividade”, diz Cristiano Souza, economista do JPMorgan (JPM), que prevê que a economia do Brasil não registrará crescimento no ano como um todo. “Faz parte de um cenário negativo de taxas de juros mais altas que freiam o consumo, inflação alta que corrói o poder de compra e falta de aumentos salariais reais, que também é um empecilho para o consumo”, diz ele.
– Esta matéria foi traduzida por Marcelle Castro, Localization Specialist da Bloomberg Línea.
Veja mais em bloomberg.com
Leia também
Inflação no Brasil supera previsões com impacto da guerra na Ucrânia
Apenas 3 em cada 10 mulheres tomam decisões financeiras na América Latina