Opinión - Bloomberg

A comida é tão vital quanto o petróleo para a segurança nacional

Mais de 70% da Ucrânia são terras agrícolas de primeira linha que produzem a maior parte do trigo do mundo, bem como milho, cevada, centeio, óleo de girassol e batatas

Granos
Tempo de leitura: 6 minutos

Bloomberg Opinion — Embora a guerra de Putin na Ucrânia esteja causando choques no mercado de energia e elevando os preços dos fertilizantes, o maior problema se tornou o aumento do custo do trigo. A Rússia está levando o mundo a uma crise de segurança alimentar cada vez mais grave – agravando a escassez já causada pela pandemia e pelas mudanças climáticas.

Mais de 70% da Ucrânia são de terras agrícolas de primeira linha que produzem a maior parte do trigo do mundo, bem como milho, cevada, centeio, óleo de girassol e batatas. As exportações de safras da Ucrânia para a União Europeia, China, Índia e todo o norte da África e Oriente Médio estão despencando à medida que as forças russas paralisam os portos ucranianos. Pode ser que muito em breve elas cessem completamente. Enquanto isso, pesadas sanções ocidentais estão interrompendo o fluxo de exportações de safras da Rússia, o maior produtor mundial de trigo.

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As organizações de segurança alimentar já estão duramente pressionadas a lidar com a disseminação da fome. A expansão da escassez “será um inferno na terra”, previu o diretor do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, David Beasley, na semana passada. A ameaça é maior em países que já estão à beira da fome e naqueles que dependem fortemente de importações ucranianas e russas. Beasley disse que sua organização “não terá escolha a não ser tirar comida dos famintos para alimentar os famintos” e, a menos que mais fundos cheguem imediatamente, “corremos o risco de não sermos capazes de alimentá-los”.

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A guerra na Ucrânia está ensinando aos líderes internacionais uma lição que eles já deveriam ter aprendido: a estratégia agrícola de longo prazo deve ser incorporada aos planos de segurança nacional. Isso significa começar agora a investir em práticas agrícolas mais sustentáveis, culturas resistentes ao clima e novas tecnologias de cultivo, bem como cadeias de suprimentos ágeis que podem girar em torno de interrupções quando necessário. A segurança alimentar também deve se tornar um foco central dos acordos comerciais internacionais.

A fome alimenta a agitação civil e um ciclo vicioso de transtornos. Isso adiciona fardos, distrações e custos enormes aos governos já sobrecarregados com o esforço de importar alimentos a preços mais altos. Em algum momento, pode levar a um êxodo em massa: civis famintos fugindo de sua terra natal em busca de comida.

Por milênios, sistemas alimentares robustos conferiram poder político. Desde as civilizações dos maias da Mesoamérica aos vikings da Escandinávia, seu crescimento se deu à medida que seus suprimentos de alimentos floresciam, e sua contração também ocorria à medida que diminuía o acesso a alimentos. Ainda hoje, as nações com suprimentos de alimentos menos confiáveis tendem a ter as economias menos diversificadas e os governos mais propensos a conflitos. Em 2012, a fome ajudou a fomentar a Primavera Árabe depois que as secas prejudicaram os campos de trigo na Rússia e nos Estados Unidos, fazendo com que os preços dos grãos disparassem em todo o mundo. Protestos em torno da escassez de alimentos eclodiram em dezenas de cidades.

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Essa crise alimentar global há uma década forçou as nações do Grupo dos Oito a começar a se concentrar na segurança alimentar. Eles prometeram um financiamento significativo para ajuda alimentar. A administração Obama, por sua vez, criou o Feed the Future, um programa que mobilizou a USAID e outras agências em países-alvo para ajudar a melhorar o acesso aos alimentos. Esses foram esforços importantes – mas não suficientes.

Hoje, tanto as nações ricas quanto aquelas em desenvolvimento precisam dobrar essa empreitada. Os preços do trigo já estão nos níveis que estavam na crise alimentar de 2008 – e subindo. “Só podemos imaginar o quanto isso vai ser devastador”, disse Catherine Bertini, especialista em segurança alimentar do Conselho de Assuntos Globais de Chicago e ex-diretora do Programa Mundial de Alimentos da ONU. “O risco que estamos enfrentando é sem precedentes.”

A invasão da Ucrânia tem três níveis de influência negativa na segurança alimentar: primeiro, nos povos da Ucrânia e da Rússia que estão enfrentando interrupções no fornecimento; segundo, em países que dependem fortemente de suas exportações; e terceiro, em populações mais amplas que já estão sentindo o choque dos preços mais altos dos alimentos. Atualmente, em todo o mundo, 283 milhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar aguda e 45 milhões estão à beira da fome. Países atingidos pela fome, como o Iêmen, são os que mais sofrem com a diminuição das exportações de alimentos ucranianos, mas também são vulneráveis o Egito, a Turquia e Bangladesh, que importam bilhões de dólares de trigo ucraniano anualmente.

Muitas outras nações que já têm dificuldades com o abastecimento de alimentos dependem das exportações ucranianas. Veja o Quênia, por exemplo: 34% de seu trigo vem da Rússia e da Ucrânia, e 70% de sua população não tem dinheiro para comida. Ou Marrocos: 31% de seu trigo vem da Rússia e da Ucrânia, e 56% de sua população não pode pagar um suprimento estável de alimentos. Nada menos que metade do trigo comprado pelas Nações Unidas para assistência alimentar em todo o mundo vem da Ucrânia.

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Mas nenhum país está isolado dos contratempos alimentares daqui para frente – incluindo e especialmente os Estados Unidos. Com todos os apelos que ouvimos por maior independência energética, poucos se preocupam com o fato de que, enquanto os EUA exportam cerca de US$ 150 bilhões anualmente em produtos alimentares, o país importa quase a mesma quantidade – cerca de US$ 145 bilhões.

Por que a segurança alimentar não é um tema-chave nas principais conferências globais? Mal foi discutido no ano passado no Fórum Econômico Mundial em Davos, nem foi uma prioridade na conferência do clima, COP 26, ou na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. A União Européia, a Organização Mundial do Comércio e outros grupos de comércio internacional devem priorizar relações estáveis de comércio de alimentos – especialmente para os países mais pobres e vulneráveis aos alimentos.

Mesmo que a guerra da Rússia contra a Ucrânia seja resolvida em breve e suas exportações voltem à normalidade, os impactos climáticos na produção de alimentos e as interrupções na cadeia de suprimentos se tornarão cada vez mais graves. De acordo com o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas divulgado na semana passada, secas e condições de cultivo mais quentes e mais voláteis já estão prejudicando os sistemas alimentares em todo o mundo, e até 30% das fazendas e pastagens atualmente produtivas não poderão mais servir de apoio à produção de alimentos até final deste século, se as tendências atuais continuarem.

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As nações devem direcionar mais dinheiro para organizações como o Centro Internacional de Melhoramento de Milho e Trigo, com sede no México, que está promovendo pesquisas cruciais sobre como cultivar trigo e milho mais resilientes em regiões que estão se tornando cada vez menos aráveis.

No entanto, esse não é apenas um problema do futuro – países e comunidades que enfrentarem com mais urgência seus desafios de provisão de alimentos serão os mais bem equipados para sobreviver a interrupções e prosperar economicamente agora.

Amanda Little é colunista da Bloomberg Opinion. Ela é professora de jornalismo e redação científica na Vanderbilt University e autora de “The Fate of Food: What We’ll Eat in a Bigger, Hotter, Smarter World”.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

– Esta coluna foi traduzida por Marcelle Castro, localization specialist da Bloomberg Línea.

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