Bloomberg Línea — Imigrante russa com aspirações de pertencer à alta sociedade de Nova York, Anna Sorokin cresceu na Alemanha e viveu em Paris antes de chegar a Manhattan, em 2014. Usando o nome falso de Anna Delvey, ela levou no bico banqueiros, socialites e celebridades, pendurando contas e acumulando dívidas em hotéis, restaurantes, bancos e em uma operadora de jatos privados no valor de centenas de milhares de dólares.
Foi considerada culpada, por um júri do Estado de Nova York, por quatro acusações de crimes que equivalem, no ordenamento jurídico brasileiro, a estelionato e furto mediante fraude. Conseguiu ser absolvida em duas acusações formuladas pela Promotoria.
Anna Delvey/Sorokin se tornou, ela própria, uma celebridade global, graças à série Inventing Anna (Inventando Anna), que se tornou um blockbuster da Netflix (NFLX). Escrita/produzida por Shonda Rhimes (Grey’s Anatomy e Scandal) e protagonizada pela americana Julia Garner (Ozark), a série tem estado no topo da lista dos mais assistidos nos mercados onde a Netflix atua. Cada episódio começa com uma advertência irônica: “Esta história é completamente verdadeira. Exceto pelas partes que foram totalmente inventadas.”
A Bloomberg Línea analisou os documentos públicos que integram os autos da condenação de Delvey/Sorokin na Justiça do Estado de Nova York, para separar o “completamente verdadeiro” do “totalmente inventado”.
Conforme os autos, ela entrou nos Estados Unidos pela última vez, vinda de viagem ao exterior, em 7 de junho de 2017, com um visto para 90 dias. Foi a partir daí que começou a desmoronar a farsa da herdeira alemã com pretensões de criar, em Nova York, uma fundação com o seu próprio nome (o falso), dedicada a artistas e multimilionários do jet set internacional. Ela foi presa em 25 de outubro de 2017.
Diferentemente do Brasil, onde apenas réus em processos de crimes dolosos contra a vida (com intenção de matar) são levados a júri popular, no ordenamento jurídico de muitos Estados americanos, como Nova York, crimes contra o patrimônio são julgados por cidadãos escolhidos aleatoriamente pela Justiça. Foi o caso de Anna Sorokin, em Nova York.
O julgamento levou um mês.
AS TESTEMUNHAS QUE NÃO QUISERAM APARECER
Algumas vítimas enganadas pela falsa herdeira alemã chegaram a ser arroladas para depor como testemunhas de acusação, mas elas não apareceram no julgamento.
O caso mais famoso, e que está retratado na série, é o da personal trainer Kacy Duke. A personagem na ficção foi interpretada por Laverne Cox inspira-se na verdadeira Kacy Duke, que na vida real é uma celebridade do mundo fitness. Duke treinou estrelas do cinema como Denzel Washington, Bruce Willis e Julianne Moore. Sites especializados afirmam que ela cobra US$ 300 por sessão de uma hora.
Anna Sorokin contratou (e não pagou) sessões de exercícios para si e para sua então amiga (e depois algoz) Rachel Williams, que à época era editora de fotos da prestigiosa revista Vanity Fair. Kacy Duke é a testemunha de número 28, segundo os autos.
Também não apareceram:
Testemunha número 13: André Balazs, dono dos hotéis Chiltern Firehouse (Londres), Chateau Marmont (Los Angeles) e Mercer (Nova York). De acordo com os autos, ele se reuniu com Anna Sorokin para discutir apoio e a parte hoteleira da suposta Fundação Anna Delvey.
Testemunha 34: Roo Rogers, filho do célebre arquiteto Richard Rogers, que trabalhava com André Balazs na parte de fornecimento de alimentos e bebidas e que também se encontrou com Sorokin para discutir um contrato de fornecimento de bebidas para a fundação.
Testemunha 35: Aby Rosen, poderoso empresário do setor imobiliário de Nova York e dono da RFR Holding, que é proprietária do edifício que Sorokin queria alugar para a sua suposta fundação. A propósito, o endereço do verdadeiro edifício é 281 Park Avenue South, e não 281 Park Avenue, como aparece na série.
Na época em que Anna Sorokin foi presa, em outubro de 2017, a RFR alugou o edifício de seis andares para a Fotografiska New York, braço norte-americano de uma fundação sueca de museus de fotografia. O museu abrigado no prédio de 1892 foi aberto em dezembro de 2019, quando Sorokin já estava condenada e cumpria pena.
A viagem a Marrakech
Um dos episódios retratados na série da Netflix que estão muito próximos do que aconteceu na sala do tribunal em Manhattan foi o depoimento de Rachel Williams, a ex-amiga, sobre o estilo de vida luxuoso que supostamente Anna Delvey/Sorokin pagava.
Williams contou da famosa viagem à Marrakech (Marrocos) onde a então amiga tinha prometido pagar tudo, mas sempre encontrava uma desculpa para não pagar coisa alguma. No final, William acabou pagando, ela própria, mais de US$ 60 mil em jantares, compras e estadia em uma vila particular de altíssimo padrão. Anna Sorokin devolveu a ela somente US$ 5.000, segundo a Promotoria.
Diferentemente do Brasil, onde só quem pode legislar em matéria penal é o Congresso e as leis produzidas valem para todo o país, nos Estados Unidos, a competência em matéria penal pertence aos Estados – uma herança da autonomia de cada uma das 13 colônias que se uniram na Guerra da Independência contra os ingleses, no século 18. Cada Estado tem sua própria lei penal.
No caso de Nova York, a lei penal estadual determina que o estelionato seja reprimido com mais vigor pelo Estado conforme uma gradação de valores envolvidas no delito: até US$ 3.000, estelionato simples (“Grand Larceny in the Fourth Degree”, na descrição original); se o crime envolve entre US$ 3.000 e 50 mil (“Grand Larceny in the Third Degree”). Se o valor supera US$ 50 mil, mas fica abaixo de US$ 1 milhão (“Grand Larceny in the Second Degree’'). E, por fim, se o valor for superior a US$ 1.000.000, a modalidade mais grave do delito, (”in the First Degree”, ou em primeiro grau).
É por isso o caso de Marrakech, a acusação de número cinco da lista de dez apresentadas pela Promotoria, recebeu a qualificação de estelionato “em segundo grau”, a segunda mais grave da escala.
Tal como na série, Rachel Williams realmente foi às lágrimas diante do júri. Uma reportagem do jornal The New York Times registrou as palavras da ex-editora da Vanity Fair contando aos 12 jurados o seu relacionamento com a ex-melhor amiga aos prantos: “Esta é a experiência mais traumática pela qual já passei. Eu gostaria de nunca ter conhecido Anna. Se eu pudesse voltar no tempo, eu faria. Não desejo isso para ninguém.”
A comoção dos jurados com as lágrimas não durou muito.
O advogado Todd Spodek, que defendeu Anna Sorokin, conseguiu reverter a simpatia dos jurados ao expor que a ex-melhor amiga – que durante anos teve jantares e despesas pagas (ou supostamente pagas) por Sorokin – “monetizou” o próprio sofrimento, vendendo a experiência em um livro e uma possível série para a HBO.
Rachel Williams admitiu que recebeu US$ 100 mil nos primeiros acordos pelo livro e a série, com a expectativa de muito mais. Ela disse que usou o dinheiro para pagar as pessoas por empréstimos contraídos após a viagem a Marrakech.
O júri considerou Anna Sorokin inocente da quinta acusação.
Rachel Williams tem sido uma das mais duras críticas ao trabalho de Shonda Rhimes, desde que a série da Netflix estreou este ano, por, em sua visão, favorecer a golpista na narrativa.
Estilista, Frank Sinatra e condenação
Na primeira semana do julgamento, Anna Sorokin realmente compareceu, diante do júri, ostentando roupas de grife escolhidas pela estilista Anastasia Walker. Numa entrevista ao BuzzFeed News em 2019, a estilista disse que realmente auxiliou a ré a escolher o outfit para aparecer diante dos jurados, o que acabou atraindo forte atenção das redes sociais ao julgamento.
“Pessoas são pessoas. Eu tenho uma boa reputação. Isso não me incomoda”, disse a Anastasia Walker sobre a cliente. A partir da segunda semana, contudo, a Anna passou a se vestir com mais sobriedade.
A sustentação oral de Todd Spodek, o advogado de defesa, não está registrada nos documentos relacionados aos autos do processo a que a Bloomberg Línea teve acesso.
Uma reportagem do The News York Times de 29 de abril de 2019 – cinco dias após o fim do julgamento – registra que o advogado usou a letra de “New York, New York”, imortalizada por Frank Sinatra, na sustentação. (O refrão citado: “If I can make it there, I’ll make it anywhere”, ou em tradução literal, “se eu conseguir chegar lá, farei em qualquer lugar”.)
E prosseguiu com a defesa, segundo o jornal: “Anna não se contentou em ser espectadora, quis ser participante. Anna não esperou por oportunidades, Anna criou oportunidades. Agora todos podemos nos enxergar nisso. Há um pouco de Anna em todos nós.”
No dia 24 de abril de 2019, os jurados apresentaram o veredito de culpada para duas acusações de estelionato qualificado (em segundo grau), uma de estelionato (terceiro grau) e para “furto de serviços”, um delito que se aproxima do furto mediante fraude, previsto no Código Penal Brasileiro.
Não foi uma derrota absoluta para a defesa. O júri considerou-a inocente da acusação de oferecer documento falso para tentar obter um empréstimo US$ 22 milhões (para viabilizar a suposta Fundação Anna Delwey) e da acusação do caso de Marrakech.
No Brasil, Anna poderia ter respondido em liberdade
Em maio de 2019, mês seguinte ao da condenação, a Justiça de Nova York estabeleceu a pena mínima de 4 anos e máxima de 12 anos para a condenação (a variação depende do comportamento do condenado no sistema carcerário). No Brasil, o cálculo da pena – chamada dosimetria, em jargão jurídico – é feita pelo próprio juiz após o veredito do júri (que, lembrando, só é acionado em crimes dolosos contra a vida).
Comparar a pena conferida a Anna Sorokin nos Estados Unidos com o que teoricamente teria ocorrido em um processo semelhante no Brasil não é um exercício de precisão.
“Em tese, haveria dois caminhos possíveis. O primeiro é o do chamado concurso material, em que o juiz simplesmente considera cada crime separadamente e soma as penas de cada um. Mas aqui também poderia ser aplicado o conceito de crime continuado”, explica Orky Kibrit, professora de Direito Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Diferentemente do concurso material, a chamada continuidade delitiva é uma ficção jurídica prevista no artigo 71 do Código Penal Brasileiro, que é quando o agente pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes. Se receber este enquadramento, a pena é mais branda: aplica-se a pena do crime considerado mais grave e, depois, ela é aumentada de de um sexto a dois terços.
Uma diferença notável entre os dois sistemas é o da execução da pena. A regra no Brasil é o condenado em primeira instância – caso de Anna Sorokin em Nova York – permanecer em liberdade enquanto apela para as instâncias superiores.
No dia 11 de fevereiro do ano passado, quase quatro anos depois de sua prisão, Anna Sorokin saiu da prisão, com bom comportamento.
A liberdade durou pouco:em 25 de março de 2021, o ICE (autoridade migratória dos EUA) deteve-a com uma ordem administrativa para expulsá-la para a Alemanha.
Desde então, ela aguarda em estabelecimento de detenção administrativa o julgamento de seus recursos para tentar permanecer em território americano. Esta história ainda não chegou ao desfecho.