Bloomberg Opinion — O pior, ao que parece, já aconteceu na Ucrânia. Em um discurso televisionado antes do amanhecer, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou que havia ordenado uma operação destinada a desmilitarizar a Ucrânia. Ele culpou os Estados Unidos por cruzar “linhas vermelhas”. Kiev, disse ele, seria responsável por qualquer derramamento de sangue. Relatos de explosões e tiros em cidades de todo o país começaram imediatamente.
É um momento sombrio para a Rússia, para a Ucrânia, para a Europa – o mais sombrio nas duas décadas de Putin no comando. É também um ponto sem volta para o líder da Rússia e com consequências duradouras para o mundo.
Putin caiu na armadilha dos autocratas. Isolado, ele não é mais capaz de pesar a realidade como ela é; só enxerga seus medos. Ele está obcecado com o que percebe como a ameaça do movimento da Ucrânia em direção ao Ocidente e em voltar no tempo para redefinir a ordem pós-Guerra Fria. Seu discurso na quinta-feira (24) – desde a fraqueza da Rússia na época do colapso da União Soviética, até o Iraque, a Iugoslávia e uma advertência assustadora contra a intervenção ocidental – dificilmente foi produto de uma mente fria e racional. Não poderia ter contrastado mais nitidamente com os apelos anteriores de paz do presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskiy, feitos diretamente ao povo russo. O presidente dos EUA, Joe Biden, chamou as ações da Rússia de “guerra premeditada”.
Arrogância, paranoia, aventureirismo militar – uma combinação tóxica que tem sido fatal para os ditadores e seus regimes. E Putin está começando uma guerra que os russos não querem, pela qual eles pagarão o custo.
O cientista político Daniel Treisman, em seu estudo sobre os últimos atos dos autocratas, descobriu que a maioria dos regimes chega ao fim por meio de equívocos. Seja porque ignoraram as mudanças ou, como o general argentino Leopoldo Galtieri, embarcaram em uma guerra imprudente. Ele invadiu as Malvinas em 1982, supondo que a Grã-Bretanha não lutaria e que sua população se uniria para apoiá-lo. Ele estava equivocado, e o erro foi terminal.
A Rússia não é a Argentina, e não haverá tal repercussão imediata para Putin, aconteça o que acontecer. O aumento da repressão em casa é, de fato, a consequência mais provável dessa demonstração de poder no exterior – ou porque o Kremlin pode, ou porque deve.
Mas as consequências podem vir com o tempo, e o presidente russo parece estar se revelando como nunca. Mesmo para os padrões de um regime autoritário repressivo com um histórico de operações forjadas e pretextos fabricados para a guerra – e para um autocrata com uma propensão a perseguições militares machistas e imprudentes e a reescrever o passado – os últimos dias têm sido difíceis de compreender. Um discurso desconexo de uma hora de duração na segunda-feira (22), repleto de acusações infundadas, retratava a Ucrânia como uma invenção de Vladimir Lenin. Em seguida, uma reunião encenada do Conselho de Segurança com altos funcionários sendo forçados a apoiar publicamente Putin e o reconhecimento das repúblicas separatistas. Agora, uma guerra que, levando a credulidade ao limite, Putin diz que vai “desnazificar” a Ucrânia – um país que sofreu brutalmente na Segunda Guerra Mundial.
Ele deu sua cartada, além disso, enquanto o Conselho de Segurança das Nações Unidas estava se reunindo, em uma última tentativa de evitar o conflito.
O que é notável aqui não é apenas a ambição do que Putin aparentemente está fazendo - uma operação militar em grande escala com pouca consideração pelas repercussões, um esforço para destruir um vizinho e desestabilizar a região. É também a escala da ilusão, quando se trata da ameaça representada pela OTAN e – crucialmente – a capacidade de longo prazo de seu país de suportar o custo humano e financeiro do isolamento. Sim, Moscou acumulou reservas do banco central e um cofre de guerra, mas trata-se de um país cuja economia está estagnada e que já está tendo dificuldade para lidar com uma crise sanitária enquanto a covid-19 se espalha entre uma população ainda com baixos índices de vacinação.
Em suma, o Ocidente deve agora aumentar drasticamente as sanções, indo muito além dos indivíduos e atingindo agora os bancos estatais da Rússia, além de outras medidas – mesmo que poucas opções agora venham sem custo para a Europa e o resto do mundo. Vladimir Putin já começou a guerra que ninguém além dos falcões do Kremlin queria. Agora, apenas as medidas mais duras podem detê-lo.
Clara Ferreira Marques é colunista da Bloomberg Opinion e cobre commodities e questões ambientais, sociais e de governança. Anteriormente, ela foi editora associada da Reuters Breakingviews e editora e correspondente da Reuters em Singapura, Índia, Reino Unido, Itália e Rússia.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e seus proprietários.
– Esta coluna foi traduzida por Marcelle Castro, Localization Specialist da Bloomberg Línea.
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