Bloomberg Opinion — Os forasteiros estão vencendo as figuras mais tradicionais da política nas urnas em toda a América Latina. Em uma região onde o establishment sempre teve uma forte vantagem eleitoral, salvo raras exceções, os candidatos que concorreram contra o status quo político venceram mais da metade das últimas 15 eleições presidenciais, inclusive no Brasil, México, El Salvador, Peru e Chile. Com os eleitores justificadamente frustrados pela falta de empregos, violência e corrupção contínuas e o tratamento inepto da covid-19, muitos observadores agora esperam que a região desvie para um novo caminho político e econômico de esquerda.
No entanto, sejam elas expressas com esperança ou com medo, essas expectativas perdem o foco. Mais importante do que a direção ideológica desses novos líderes é se eles têm capacidade de governar: forjar coalizões políticas, promulgar legislação e aproveitar ao máximo as alavancas administrativas e as ferramentas burocráticas de que dispõem. A direção futura e a estabilidade das democracias baseadas no mercado da América Latina dependem disso.
Democracia e governança estão em tensão há muito tempo : Locke, Rousseau e Montesquieu fizeram seus nomes evocando maneiras para que ambas coexistam. A democracia depende da garantia do sufrágio universal, do acesso à informação e de eleições livres e justas. A governança é mais complicada, exigindo uma maneira de canalizar a constante participação em ações políticas e de representação.
Poucas democracias encontraram uma maneira de governar sem partidos políticos. Embora os partidos baseados em plataformas programáticas sejam melhores do que aqueles que dependem do clientelismo puro, ambos os tipos ajudam a encurralar os legisladores para aprovar leis.
Governar também requer burocracias e agências administrativas funcionais. Leis ou decretos executivos são apenas palavras no papel até que os ministérios de educação, saúde, agricultura, economia, defesa e outros os coloquem em prática.
As nações da América Latina tiveram grande sucesso em primeira instância: com algumas exceções proeminentes, eleições livres e justas representam fielmente a vontade dos eleitores. No entanto, uma vez no poder, esses líderes geralmente têm poucas ferramentas para atender a essas mesmas demandas – ou seja, governar.
Partidos políticos efêmeros e sistemas partidários fragmentados dificultam, se não impossibilitam, aprovar uma legislação substancial. Burocracias fracas significam que, mesmo com reformas políticas, a disponibilidade e a qualidade dos serviços públicos geralmente não mudam na ponta, para os usuários. E a falta de agências independentes ou de vigilância para responsabilizar os servidores públicos significa que o clientelismo, o nepotismo e a corrupção acabem se espalhando como uma metástase. Sem ferramentas reais para atuar, novos presidentes continuarão se debatendo e a frustração dos eleitores aumentará. A incapacidade de governar deixa esses líderes e, em última análise, os sistemas políticos e as economias da América Latina, vulneráveis a crises e convulsões sociais.
As duas eleições mais recentes da América do Sul refletem a importância da governança para o sucesso. Tanto no Peru quanto no Chile, a democracia prevaleceu nas urnas. No entanto, os dois novos presidentes enfrentam caminhos muito diferentes no que diz respeito ao cumprimento de seus mandatos eleitorais.
O peruano Pedro Castillo parece ter o caminho mais difícil. Os partidos políticos tradicionais do Peru desapareceram na década de 1990, depois que Alberto Fujimori fechou o Congresso, e ele e outros candidatos criaram partidos “lâmpadas” que acendiam e apagavam antes e depois das eleições. Onde antes um punhado de partidos tradicionais estáveis capturava rotineiramente 9 em cada 10 votos, agora nenhum consegue chegar perto desse nível de apoio.
Essa fragmentação e transitoriedade política levaram à paralisia política. Em vez de aprovar leis e implementar planos, o Executivo e o Legislativo dedicaram seu tempo e capital político para derrubar um ao outro: o presidente Pedro Pablo Kuczynski renunciou para evitar o impeachment em 2018; o presidente subsequente, Martín Vizcarra, dissolveu o congresso em 2019 apenas para ser cassado na próxima legislatura em 2020. O atual congresso do Peru tentou derrubar Castillo em dezembro passado, depois de apenas quatro meses no cargo. Tal atitude política tem deixado pouco espaço para governar.
As burocracias do Peru também são fracas. As revelações de recebimento de propina por centenas de juízes e promotores minaram o sistema de justiça. As forças policiais e os sistemas escolares são prejudicados pela falta de treinamento e fundos, especialmente fora da capital, Lima. E todos os tipos de programas sociais e obras públicas definham com as frequentes mudanças de gabinete. Mesmo o político mais talentoso lutaria contra essa paralisia; nos últimos seis meses, Castillo mostrou que é tudo menos isso.
Em contraste, o presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, tem uma chance muito maior de atender a pelo menos algumas das demandas dos eleitores e manter a estabilidade econômica e política pela qual o Chile é conhecido. Embora as coalizões políticas tradicionais que dominaram a política chilena desde o final dos anos 1980 tenham se desintegrado, os partidos políticos estáveis tanto da esquerda quanto da direita ocuparam seu lugar. Apesar de todas as divisões políticas que existem no Chile, o Congresso rotineiramente aprova leis substanciais.
As agências governamentais e as burocracias são eficazes. Poucos duvidam da independência ou capacidade do banco central do Chile, dos tribunais ou das organizações de vigilância criadas para supervisionar as finanças do governo, relatar abusos de direitos humanos ou verificar estatísticas do governo. E enquanto seu sistema de educação pública favorece os mais abastados em relação aos menos favorecidos, o país tem notas altas em testes internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, em comparação com outras nações latino-americanas. O Chile conseguiu trazer a maioria de suas crianças em idade escolar de volta às salas de aula, um feito que muitos de seus vizinhos ainda não alcançaram.
Enquanto Boric recentemente refletiu sobre como será difícil governar, as instituições do Chile lhe dão uma chance muito mais robusta.
Em 2022, Brasil e Colômbia elegerão novos presidentes. O processo democrático parece prevalecer novamente, apesar dos candidatos não convencionais atualmente terem uma vantagem eleitoral e das reflexões antidemocráticas do presidente Jair Bolsonaro, no Brasil. A questão da governança é menos clara, embora ambas as nações tenham uma vantagem institucional sobre alguns de seus vizinhos.
No Brasil, as chances são de que os eleitores tragam de volta o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sua crescente aceitação e até mesmo aceitação por investidores internacionais e domésticos têm muito a ver com a capacidade percebida de Lula para governar. O ex-presidente sabe como trabalhar o complicado sistema político do país, já tendo reunido muitos dos líderes políticos e partidos centristas baseados no clientelismo para sua causa, incluindo o ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o peso-pesado do “centrão”, Renan Calheiros. Ele também sabe manejar suas burocracias, tendo implantado durante sua gestão o Bolsa Família, o Fome Zero e outros programas sociais que atingiram com eficiência milhões de famílias brasileiras e reduziram a pobreza e a desigualdade.
A Colômbia também tem seus pontos fortes de governança, incluindo vários partidos políticos de longa data, um sistema judicial que resistiu aos narcotraficantes e uma constituição que protege a propriedade privada. Muitos se preocupam com a direção que o esquerdista Gustavo Petro pode dar à nação se vencer. No entanto, além de ajudar os presidentes a operacionalizar seu trabalho, as instituições governamentais em funcionamento também ajudam a modular rupturas acentuadas do passado. Com um congresso em funcionamento e tribunais independentes, a Colômbia tem espaço para encontrar um equilíbrio entre as demandas dos eleitores e os freios e contrapesos democráticos.
Certamente, ferramentas de governo eficazes nas mãos de autocratas podem ameaçar tanto a democracia quanto os mercados. No México, o presidente Andrés Manuel López Obrador usou sua posição e a maioria de seu partido político nas duas casas do Congresso para minar as barreiras democráticas, incluindo a supervisão do Congresso, a independência do órgão de vigilância eleitoral e a autonomia da Suprema Corte. Os líderes da Venezuela e da Nicarágua usaram as ferramentas do governo para destruir suas democracias e economias.
No entanto, em uma região tão conturbada como a América Latina hoje, eleições livres e justas não são suficientes. Seus novos líderes precisam mostrar que conseguem desempenhar sua função. Seu maior desafio é a capacidade de realizar mudanças políticas. A esse respeito, aqueles que se opõem aos seus chamados projetos de esquerda não devem se alegrar se forem incapazes de governar efetivamente. A sobrevivência do sistema democrático como um todo importa mais do que a faixa ideológica daqueles que o dirigem. Dadas as dificuldades recentes da América Latina e os complexos desafios que estão por vir, se esses governos livremente eleitos falharem, eles podem levar consigo as democracias baseadas no mercado da região. Esse é um resultado que apenas autocratas poderiam desejar.
Shannon O’Neil é pesquisador sênior de Estudos da América Latina no Conselho de Relações Exteriores de Nova York.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e seus proprietários.
– Esta notícia foi traduzida por Marcelle Castro, Localization Specialist da Bloomberg Línea.
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