Moïse Kabamgabe, Beto Freitas e o Mercado de Capitais

Não haverá avanços reais na agenda ESG sem uma boa compreensão do que seja a extensão da responsabilidade corporativa e uma boa reflexão e análise das externalidades causadas

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Bloomberg Línea Ideias — Não é impossível que muitos partícipes do mercado de capitais não saibam quem sejam Moïse Kabamgabe e Beto Freitas. É também bem possível que boa parte daqueles que reconheçam estes nomes deixem de lembrá-los em um par de anos.

Há também um grupo que até empatiza com a dor da crueldade de suas mortes, mas se distancia dos episódios, normalizando-os: afinal, quantos casos semelhantes existem no dia a dia que não vem à tona? Este parece ser o triste pensamento predominante.

A tendência é achar que a questão de violência urbana é problema do Estado e não uma questão privada.

A tendência é olhar para seu próprio arredor e perceber que casos dessa natureza raramente ocorrem, e, portanto, esta questão não lhes pertence. A tendência é até lamentar e sentir revolta com o trágico fim de Moïse e Beto, mas a indignação não é grande o suficiente para se transformar em atitude. Na prática, fica-se de braços cruzados apenas aguardando qual será o próximo nome. Bem possivelmente será preto e pobre.

Ambos morreram brutalmente espancados. Moïse ao cobrar o pagamento a que fazia jus. Beto após realizar suas compras em um supermercado. Ambos exercendo seus direitos de cidadão.

Mas o que o Mercado de Capitais tem a ver com isso?

Nos anos 90, provavelmente a resposta quase uníssona seria um retumbante “nada”, com enormes chances de a pergunta sequer ser compreendida pela “ausência de lógica”. Ainda que alguns se recusem a perceber ou aceitar, o mundo está em acelerada mudança e a questão de responsabilidade corporativa foi ressignificada.

Há pouco mais de três anos, no Brasil, o mundo corporativo e o mercado financeiro muito raramente mencionavam o acrônimo ESG. Agora, apressam-se a postar suas ações e condutas como se fosse uma competição. Ambas as atitudes merecem severas críticas.

Não há nem haverá avanços reais na agenda ESG sem uma boa compreensão do que seja a extensão da responsabilidade corporativa e uma boa reflexão e análise das externalidades causadas.

Também não perceberemos avanços concretos se não forem estipuladas metas e elas serem perseguidas com o mesmo afinco das metas financeiras.

Qual empresa de capital aberto não tem meta de receita e margem? Praticamente todas têm. Quais empresas têm metas sociais? Silêncio na sala.

O Brasil é um dos países mais desiguais do planeta. Segundo dados do World Inequality Lab de 2021, os 50% mais pobres possuem apenas 0,4% da riqueza brasileira, ao passo que os 1% mais ricos possuem praticamente metade (48,9%) da riqueza nacional.

Em 2021, quando começaram a chegar as vacinas contra a covid-19 no Brasil, houve intenso debate sobre como elas seriam distribuídas. Começariam pelos mais idosos? Profissionais da saúde? Pessoas com comorbidade?

Uma das propostas era que os professores fossem incluídos na lista de prioridades para que as crianças pudessem voltar às escolas presencialmente. Certo? Em partes. Ainda que a motivação seja nobre, a proposta apresentada reflete o olhar estrutural sem empatia pelos mais vulneráveis: como se a escola pudesse funcionar sem a equipe da faxina, da segurança ou da merenda... Com o afã de resolver um problema, eventualmente agrava-o. Raciocínios semelhantes ocorrem recorrentemente na adoção das práticas ESG, que precisam de um maior cuidado.

Levantamento divulgado em 2020 por Renato Chaves, um dos maiores especialistas em governança corporativa do país, aponta uma enorme discrepância na remuneração dos CEOs em relação à média dos funcionários: em 17 das 70 empresas de capital aberto estudadas o presidente ganha mais de 200 vezes a renda média dos colaboradores, número que ultrapassa as 600 vezes em alguns casos.

A desigualdade social observada em nosso país se reflete no mundo corporativo da mesma forma, incrementando e perpetuando o quadro social. A métrica de discrepância salarial faz parte das boas práticas ESG, mas é absolutamente irrelevante nos debates da temática, que segue circunscrito à emissão de carbono e eventualmente equidade de gênero. Que fique claro: estes temas – carbono e empoderamento feminino - são extremamente relevantes, mas não podem ser vistos como únicos e, muito menos, como o significado do ESG.

Em um olhar puramente pragmático e financista, acentuar a pirâmide da desigualdade social também significa reduzir o poder de compra de consumidores e diminuir o tamanho do mercado. Neste ritmo, um país que poderia hipoteticamente ter 200 milhões de consumidores, terá uma microfração deste número, o que significa, na prática, que não trabalhar pela redução da desigualdade é, no mínimo, miopia. Ou seja, mesmo diante de um olhar cínico, reduzir desigualdade é um bom negócio.

O papel corporativo no combate à desigualdade é fundamental. Violações de direitos humanos e trabalhistas precisam ser combatidos em toda a cadeia, incluindo fornecedores terceirizados e quarteirizados.

Regras justas de remuneração, especialmente nas bases, precisam ser observadas. Políticas sérias de inclusão de minorias sociais em todos os seus espectros – gênero, raça, orientação sexual, pessoas com deficiência, imigrantes, indígenas etc também são efetivas para atenuar este abismo. Evitar a disparidade salarial nas empresas também serve para reduzir tais gaps. Estes são alguns poucos exemplos de políticas ESG que o mercado deve cobrar do mundo corporativo.

Se o mercado realmente quiser entrar na campanha “Justiça por Moïse” talvez sejam estas as ferramentas mais efetivas de protesto.

A via alternativa é aguardar que os “distantes” nomes de Moïse e Beto um dia lhes soem bem familiares. Mas aí talvez já será tarde demais e terá passado do ponto de ação.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião dos conselhos editoriais da Bloomberg Línea, da Falic Media ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.