Bloomberg Línea — Vai viajar? Quem sabe para sua próxima viagem você abra espaço em suas malas e arrume novos planos socioambientais que o levem a se tornar um viajante regenerativo (explico mais à frente), considerando a crise climática que exige novas dinâmicas para reverter os danos ao planeta em todos os aspectos da vida.
O turismo tem lugar de destaque em várias economias latino-americanas devido à sua capacidade de gerar divisas, favorecer investimentos, desenvolvimento de negócios e, portanto, geração de empregos.
De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, durante as décadas de 1970 e 1980, os governos começaram a promover o turismo como um setor que poderia impulsionar o crescimento econômico. “Nessas décadas, foram construídos grandes centros turísticos que se beneficiaram de investimentos públicos e privados em infraestrutura”.
A maioria desses resorts teve muito sucesso comercial e formou as bases da indústria. Mas aquele modelo em que importava o número de visitantes e quartos trouxe consigo uma superlotação turística com efeitos ambientais negativos, e tornou-se obsoleto diante das necessidades atuais. A escala revelou a forte pressão exercida sobre ecossistemas, recursos naturais, paisagens e comunidades locais.
E embora a indústria do turismo tenha trabalhado para reduzir seu impacto negativo no meio ambiente sob o rótulo de sustentabilidade, atualmente, ele é responsável por 8% das emissões de gases de efeito estufa em todo o mundo, segundo a Nature Climate Change. A Universidade de Sydney diz que sua pegada de carbono pode aumentar 40% até 2025, chegando a 6,5 bilhões de toneladas de CO2.
Em meio a esse panorama desafiador, o turismo regenerativo surge como uma proposta holística que oferece uma nova dimensão ao turismo sustentável, indo além dos esforços de conservação e com o objetivo de focar no crescimento dos povos nativos.
O turismo regenerativo não busca retardar o impacto das mudanças climáticas, mas começar a revertê-lo. Assim, a proposta quer a renovação ativa do ambiente. “Parece que ‘ser mais sustentável’ está cada vez mais ‘cool’, mas realmente chegou a hora de agir”, diz Nani Angulo, sócia-fundadora da Green Pepper Travel, agência europeia que oferece viagens à América Latina com base no novo modelo.
Essa atividade representa 42% e 10% do total das exportações do Caribe e da América Latina, respectivamente, segundo relatório de 2019 da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a Cepal. Além disso, o turismo representa 26% do PIB total do Caribe e 10% da América Latina.
Contudo, a prática afetou os ecossistemas desproporcionalmente. “Muitos dos habitantes da América Latina e do Caribe sofrem os efeitos do uso insustentável de recursos, falta de acesso a serviços e, consequentemente, um futuro sombrio”, segundo Jacqueline Álvarez, diretora do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. na América Latina.
“(Temos que) perceber que sustentabilidade não é suficiente. Etimologicamente, ‘sustentar’ é manter o que temos, e se continuarmos como estamos, vamos ficar muito mal”, afirma Alexa Pauls, diretora da Área de Turismo Sustentável da Universidade do Meio Ambiente, a UMA. “É acreditar novamente no potencial de intervir positivamente como espécie em nosso meio ambiente e melhorar as condições existentes.”
Houve alguns casos em que o turismo excessivo cobrou seu preço na região. Na Costa Rica, quando uma onda de turistas impediu centenas de milhares de tartarugas de desovar nas praias há alguns anos; ou na lagoa Bacalar, em Quintana Roo, que vem perdendo os matizes das sete cores que compõem sua natureza única; e no Peru, o governo teve que implementar novas medidas para restringir o acesso a alguns altares em Machu Picchu.
Oportunidades e novas tendências após a pandemia
A pandemia pode ser considerada um catalisador para que os atores da indústria do turismo comecem a trabalhar nas transformações que devem implementar em um mercado que começou a buscar destinos que não estejam superlotados.
As especialistas consultadas pela Bloomberg Línea consideram que existe uma tendência crescente em que o viajante, sobretudo as gerações mais jovens, têm a necessidade de se reconectar com a natureza e com quem são, em hotéis menores, com gastronomia e população local que contam suas histórias para que a viagem seja uma experiência autêntica podendo viver muitas realidades, também devido à flexibilidade de seus empregos.
A fundadora da Green Pepper destaca que Costa Rica, México, Colômbia e Chile são os principais destinos da região onde esse tipo de turismo pode ser encontrado. “É o jeito de ser, a identidade cultural – e eu sou apaixonada por isso – na Europa não temos essa conexão profunda que vocês têm”, referindo-se às raízes com a natureza e os ancestrais, os costumes e a conexão entre territórios e povos originários.
Para que esse tipo de turismo chegue ao auge, as mudanças devem ocorrer a nível de políticas governamentais, afirma Pauls. Um exemplo disso é a Costa Rica, que reconhece em nível federal a riqueza de sua biodiversidade e que, por meio de seu Plano Nacional de Turismo, estabelece que o modelo deve ser sustentável e inclusivo da natureza. Além disso, o Plano promove as PMEs do setor em vez das grandes redes e a descentralização da oferta. Confira duas iniciativas de turismo regenerativo na Colômbia e no México:
Regenerando com Top Che na selva de Chiapas
Localizado no coração da Selva Lacandona nesta entidade mexicana que faz fronteira com a Guatemala está o Centro de Ecoturismo Top Che (que significa flor na língua maia), um acampamento localizado em algumas ruínas maias e certificado pela Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Naturais, com instalações e atividades que, ao longo dos anos, estiveram ligadas aos fundamentos do que hoje chamamos de turismo regenerativo.
Sua história começa há cerca de 30 anos, quando “Don Enrique” (Chankin), “Doña Lola” (Chanuk) e sua família vieram se estabelecer na subcomunidade lacandona de Lacanjá Chansayab, no município de Ocosingo.
Antes que houvesse estradas que levassem à zona arqueológica de Bonampak, Chankin guiava os viajantes pela selva por horas até chegar a essas ruínas maias. Ele permitia que acampassem em suas terras até que um dia, depois de conversar com uma pessoa, surgiu a ideia de construir um chalé para alugar. O projeto cresceu até se consolidar no ecoturismo em 2013 com 16 cabines equipadas com biodigestores, ecotecnologia, que, por meio de contêineres, transforma resíduos em biofertilizante ou biogás.
O centro, que emprega 15 pessoas no local e outras 15 indiretamente, segue quatro preceitos básicos em seu cotidiano:
- O viajante se torna parte da família “e isso implica que ele terá a responsabilidade de cuidar de tudo o que encontra quando chegar, e de conhecer (o lugar) porque ao conhecê-lo profundamente, o viajante ama e respeita o local”.
- A família lacandona preserva suas tradições e compartilha lendas, experiências e o significado da cultura maia com os viajantes: “por estar tão intimamente ligada à natureza e suas raízes, como diz o ‘velho Chan Kin’: cada árvore está ligada às estrelas – quando uma árvore morre, uma estrela também morre”.
- O Top Che trabalha com o sistema de milpa tradicional baseado no “saber ancestral dos astros” e que, diferentemente de culturas que ocupam grandes hectares, ocupa pequenos terrenos onde se cultivam diferentes sementes e, assim, dispensa-se o uso de produtos químicos e fertilizantes porque as próprias plantas se sustentam contra todos os tipos de pragas. A origem náuatle da palavra milpa traduz-se como “campo cultivado” ou “terreno semeado” e é um sistema agrícola tradicional de policultura. A combinação de milho, feijão e abóbora é conhecida como “a tríade mesoamericana”.
- 80% da comida servida no refeitório é produzida localmente, tanto a partir da agricultura como da piscicultura, conta Raquel. “Você se surpreende com o quanto é possível produzir em pequenos lotes” como urucum, mandioca, milho, tomate, feijão, abóbora, cana-de-açúcar, mamão e banana.
O Top Che também está envolvido em ações de reflorestamento por meio do programa do presidente Andrés Manuel López Obrador, Sembrando Vida, no qual a cada seis meses devem ser plantadas pelo menos 1,8 mil árvores nativas em 2,5 hectares com um apoio mensal de 4.500 pesos mexicanos (US$ 213).
Este ecoturismo só recebe um máximo de 50 pessoas para evitar uma carga excessiva sobre o meio ambiente. Os visitantes podem curtir o rafting no Rio Lacanjá, repleto de cachoeiras e nascentes, e as caminhadas na selva lideradas por guias locais que compartilham seus conhecimentos culturais e sobre água, flora e fauna ao longo do caminho.
Turistas também aprendem palavras na língua maia enquanto avançam até chegar à zona arqueológica de Lacanjá ou a Cidade Perdida. Além disso, podem participar de uma oficina de artesanato em que confeccionam peças com sementes como âmbar da selva, entre outras atividades.
“Gostaríamos que as pessoas soubessem que ainda é possível fazer muito em seus lugares de origem. No caso da cultura maia, é algo integrado, é uma responsabilidade de vida”, afirma Raquel.
Preservando a Amazônia
No meio da Amazônia colombiana, entre Puerto Nariño e Leticia, fica a Reserva Natural de Calanoa. É um paraíso que abriga o casal Marlene e Diego Samper, e que se torna ponto de parada para viajantes que buscam conhecer mais sobre a cultura indígena e participar de projetos ambientais.
Diego é antropólogo, arquiteto, artista, fotógrafo, músico e escultor; Marlene é educadora ambiental, editora e conservacionista. Juntos, realizaram muitos sonhos, incluindo a construção da pousada ecológica Calanoa Amazonas.
Este casal fugiu da guerra duas vezes, mas nunca esqueceu sua paixão pela selva. Aos 18 anos, Diego decidiu se mudar para a Amazônia e depois de vários anos conseguiu construir uma fazenda autossustentável Com o tempo, sua esposa e filhas se juntaram a ele. Todos estavam felizes em colaborar com as comunidades, conta Marlene, até que uma mina de ouro chegou à região.
“A violência começou, o tráfico de drogas chegou e saímos em uma noite, perdemos tudo”. Depois de fugiram, eles retomaram seus sonhos e formaram uma editora em Bogotá dedicada a publicações sobre ecossistemas, tribos, arte e arquitetura. Mas depois de 17 anos de estabilidade, a guerra voltou e eles fugiram para o Canadá.
E, embora tenham deixado sua casa a milhares de quilômetros de distância, seus conhecimentos nunca os abandonaram. “Fizemos exposições nos melhores museus do Canadá sobre a Amazônia, demos aulas, e foi nessas aulas pediram para que voltássemos a orientar grupos de alunos pela Amazônia. Então, voltamos, e o amor total por esta terra e seu povo voltou”.
A paixão era tanta que há 10 anos eles formaram a Reserva d Calanoa, e desde então não se mudaram. “Queríamos trabalhar com preservação, arte e educação, e a forma de nos financiar sem ter que sair pedindo dinheiro era um abrir hotel. Então abrimos esta pousada ecológica com sete chalés”.
A construção, projetada pelo próprio Samper, foi feita com base em pesquisas de técnicas tradicionais, com materiais locais e reflorestamento. Além disso, a pousada funciona com energia solar e água da chuva ozonizada.
“Não viemos para Calanoa com o plano de construir um hotel e ver como poderíamos torná-lo sustentável. Chegamos com a sustentabilidade como conceito e estrutura principal e a partir daí ela fizemos a construção”, conta.
Mas o que faz com que a pousada brilhe em prêmios internacionais por seu de turismo regenerativo?
- Meio ambiente: garrafas plásticas não são aceitas no hotel. É possível pegar água pura em cantis. O hotel também conta com um programa de desperdício zero e, de fato, as lixeiras só ficam na cozinha e nos banheiros. Além disso, há programas de plantio e reflorestamento.
- Comunidade: A pousada conta com guias nativos cheios de conhecimento ancestral que fazem passeios pelo rio e selva. Dessa forma, são quatro grupos de famílias diretamente impactadas pelo projeto. Além das pessoas que participam das aulas, do transporte e fazem outras tarefas.
- Sabedoria indígena: os serviços oferecidos em Calanoa incluem aulas sobre plantas medicinais, lendas e mitos do ponto de vista indígena da floresta, oficinas de cestaria, entre outros. Todas ministradas por membros da comunidade. Calanoa é apenas uma ponte entre alunos e professores. *A comunidade propõe os serviços que deseja que a pousada os ajude a promover.
- Preservação ancestral: projetos de registro do uso de plantas medicinais, música, dança e preservação da língua ticuna. Os Sampers se dedicam a registrar as histórias e canções dos avós, gerando assim um arquivo à disposição da comunidade.
“Não paramos. Fazemos o que podemos para preservar a cultura e a selva porque é a única coisa que resta para este planeta sobreviver. Canaloa é feita na região, com a região e para região”, diz Marlene.
--Este texto foi traduzido por Bianca Carlos, localization specialist da Bloomberg Línea.
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