A startup mexicana Kavak inaugurou seu espaço de recondicionamento de veículos e filial em São Paulo há seis meses. Novata no mercado de compra e venda de veículos seminovos no Brasil, a Kavak chegou ao maior mercado da América Latina com grandes ambições. Uma delas é a expansão para o Rio de Janeiro, anunciada nesta segunda-feira (31).
No ano passado, a Kavak disse que investiria R$ 2,5 bilhões (US$ 500 milhões) no Brasil. Desse valor, a empresa separou inicialmente R$ 550 milhões para o estado do Rio, que serão usados para estabelecer a operação e comprar carros usados.
A partir de agora, a Kavak oficialmente passa a operar site e aplicativo no Rio de Janeiro e inaugura um showroom no Botafogo Praia Shopping. Uma segunda loja está prevista para o dia 7 de fevereiro, no Shopping Nova América.
Capitalizada, a Kavak tem apostado na experiência do consumidor para ganhar clientes no País. Na chamada “Kavak City”, infraestrutura na área industrial de Barueri, em São Paulo, a startup criou uma jornada para mostrar para o cliente que é possível comprar carros seminovos por e-commerce.
Portas automáticas direcionam os clientes para salas com telas que mostram o passo a passo de como vender e comprar um carro pelo site da Kavak. Funciona assim: a Kavak compra o veículo usado que tenha menos de 10 anos de fabricação, faz análise desse carro e o recondiciona para o chamado “padrão Kavak”. As falhas são corrigidas na Kavak City, que conta com mecânicos, borracharia, além de estrutura de iluminação para identificar falhas e um estúdio para as fotos do carro que são publicadas no marketplace.
Mas nem todo o recondicionamento é feito na Kavak City. A empresa também tem parcerias com terceiros, como funilaria e pintura, o que faz com que o veículo leve cerca de 15 dias para ser colocado à venda.
Para quem quer vender o carro para a Kavak, o orçamento é feito de forma online e a precificação usa um algoritmo de tecnologia própria da startup. O negócio pode ser fechado online e o cliente pode receber o pagamento no mesmo dia. A Kavak também tem parceria com cartórios que checam e cuidam da parte documental da transação.
A Kavak oferece garantia de dois anos e tem uma política de devolução de sete dias ou 300km, além de parcerias com instituições financeiras para financiamento dos veículos. O cliente de São Paulo pode optar por receber o carro em casa. No Rio, essa opção ficará disponível em março. Para quem vende o veículo, a entrega pode ser feita em um dos showrooms da empresa.
Na Kavak City, tudo é feito para apresentar a empresa não como uma concorrente do setor de veículos, mas como uma big tech. Pelo caminho, o consumidor tem à disposição computadores para olhar o site da empresa. A ideia é mostrar que tudo aquilo poderia ser feito de forma digital. Com Mercedes e BMWs à mostra, a Kavak quer fazer com que comprar seminovos também seja algo “cool”, para além do carro popular. É um modelo similar ao da empresa americana Carvana, varejista online de carros usados que mais cresce nos Estados Unidos.
O hub para clientes nos moldes da unidade de São Paulo também deve chegar ao Rio de Janeiro em breve. O plano da startup é construir um inventário de mais de 4 mil veículos no Rio. A partir de março, a empresa planeja inaugurar 11 novos espaços físicos no estado, criando quase mil novas vagas de trabalho.
Os números da empresa, avaliada em US$ 8,7 bilhões, já preocupam os revendedores de automóveis no Brasil. Na América Latina, a Kavak tem 40 centros logísticos e espaços de recondicionamento de veículos além de mais de 5 mil empregados (2 mil apenas no Brasil). Até o final deste ano, a Kavak espera superar 100 mil veículos comprados para inventário e vender 50 mil carros no Brasil. A empresa não divulgou quanto vendeu em 2021.
O presidente da Fenauto (Federação Nacional das Associações dos Revendedores de Veículos Automotores), Enilson Sales, disse que as empresas que hoje estão no mercado enxergam a Kavak “a princípio como um predador, que talvez venha abocanhar uma fatia da pizza do mercado”.
“Mas, seguramente essa empresa vai fazer com que o mercado se movimente muito mais e, na minha opinião, a Kavak acabará se ajustando como mais uma empresa que compra e vende veículos nesse ambiente. Com muito mais dinheiro, com uma estratégia muito mais agressiva para o mundo virtual, mas basicamente uma réplica de uma loja de automóvel em um tamanho super grande, com vários tentáculos e várias filiais atuando em vários lugares, e uma estratégia de marketing basicamente focada no ambiente virtual”, disse Sales.
A Fenauto tem debatido com a Kavak para que essa entrada no mercado brasileiro “seja feita de forma positiva para complementar o mercado, e não canibalizar”, comentou Sales.
Além dos revendedores tradicionais, no Brasil, a Kavak vai brigar pelo mercado com as locadoras, como a Unidas e a Localiza, que também entraram como competidores de alto poder aquisitivo. O unicórnio brasileiro Creditas também anunciou no ano passado sua unidade de negócios de compra e venda de seminovos, complementando o ecossistema de veículos da fintech, que trabalha com financiamento e empréstimos com garantia.
“Quando qualquer player entra em qualquer mercado com um poder aquisitivo muito alto, ele desequilibra as relações em um primeiro momento, mesmo que essas relações se ajustem depois”, explica Sales.
A proposta da associação é que a Kavak privilegiasse os associados da Fenauto para que eles tivessem acesso a repor os estoques de veículo comprando da Kavak com preços mais competitivos, ou que os veículos fossem primeiramente apresentados para os associados antes de serem disponibilizados no marketplace para o público geral.
Mas, o cofundador da Kavak e presidente da operação brasileira, Roger Laughlin, disse que o foco da Kavak durante o primeiro ano no Brasil foi comprar carros de pessoas físicas para construir o inventário. “Chegamos em um momento bem atípico globalmente onde há escassez de produção de carros novos, temos uma dinâmica onde a demanda aumentou muito mas a oferta não aumentou. Um dos diferenciais da Kavak é que compramos diretamente dos consumidores finais”, disse.
Segundo Laughlin, a Kavak está disposta a oferecer inventário para os afiliados da Fenauto no futuro, mas disse que hoje “os carros que a gente tem são carros para os nossos consumidores, justamente porque não tem excesso de carro no mercado”.
“Nosso propósito é tentar chegar na maior quantidade de brasileiros. Somos uma marca de consumo, uma marca de compra e venda de carros. Nossa proposta de valor nunca foi oferecer um canal de venda para B2B, para que empresas comprem carros da Kavak. Não tem excesso de veículos para a gente conseguir explorar outros canais de venda. Por outro lado, acho que o mercado é grande o suficiente para todos nós”.
O mercado de seminovos no Brasil
Segundo Laughlin, o Brasil tem o terceiro maior mercado de seminovos no mundo, mas também um dos mais pulverizados, em que 50% das transações são feitas por pessoas físicas por meio de portais como a Webmotors, OLX e Mercado Livre.
“Não é que a Kavak está vindo aqui para tirar players do mercado. A gente está formalizando e trazendo uma oportunidade diferente para que os consumidores tenham a melhor experiência de compra. Acreditamos que isso vai beneficiar todos do mercado”.
Segundo a Fenauto, em 2021, o Brasil teve mais de 15 milhões de carros usados comercializados, um aumento de 17,8% em relação a 2020. Considerando que o preço médio de um carro usado é de R$ 40 mil, anualmente o mercado brasileiro de seminovos gera R$ 600 bilhões.
“O carro seminovo está supervalorizado, com preços muito altos porque faltam carros novos. Normalmente quando uma mercadoria falta no mercado, todas as mercadorias que a substituem ganham preço”, lembrou Sales.
Do México para o mundo
Laughlin é venezuelano, mas deixou o país em 2009 porque não enxergava oportunidades profissionais devido à crise econômica e política do país. Ele se mudou para a Argentina com sua família. Mas, na crise econômica global, foi no Brasil que Laughlin encontrou trabalho. Fez um curso intensivo de três meses, aprendeu português e se mudou para São Paulo em janeiro de 2010. “Era a terra das oportunidades, tudo estava acontecendo no Brasil”, disse.
A primeira experiência de Laughlin no Brasil foi como consultor da Bain and Company. Depois, passou três anos trabalhando no Groupon até gerenciar a operação de vendas em todo o país. Em agosto de 2014, ele se mudou para o México para ser o diretor de vendas do e-commerce Linio.
Foi onde ele conheceu seu sócio e CEO da Kavak, Carlos Ottati. “Ele teve uma experiência ruim vendendo o carro dele na Colômbia. Quando a gente começou a falar sobre isso vimos que era um problema muito grande, ainda mais nesse tipo de mercado em países emergentes”.
Laughlin, Carlos e Loreanne Ottati fundaram a Kavak em 2016. Depois de quatro anos e meio, expandiram a empresa para além da Cidade do Mexico, chegando em Guadalajara e depois comprando a Checkars para iniciar as operações na Argentina em 2020, ano que a Kavak virou a primeira startup bilionária do México.
“Foi nosso primeiro empreendimento próprio, mas já fomos parte de outras empresas que ensinaram muito para a gente, então acho que isso foi fundamental para o tipo de negócio que a gente construiu para que a Kavak conseguisse escalar de forma saudável em diferentes mercados”, disse Laughlin.
O negócio que a Kavak construiu é intensivo em capital e demanda infraestrutura. Se precisava de dinheiro, a Kavak conseguiu vender sua ideia de corrigir a assimetria da informação da venda de carros usados - o vendedor sabe o que está vendendo mas o comprador não sabe o que está comprando - para os maiores investidores de capital de risco do mundo, como a Tiger Global, D1 e SoftBank.
“Nosso negócio é muito mais do que solucionar essa parte transacional. Queremos acompanhar o consumidor ao longo da vida dele. A gente não vem com background da indústria de carros. A gente vem de diferentes indústrias e nosso background é solucionar problemas complexos para os clientes da forma mais simples possível”.
A Kavak ainda não é rentável porque financia seu crescimento e expansão. Antes de gerar liquidez para esses investidores com um IPO (que não deve acontecer este ano, segundo Laughlin) a Kavak tem uma estratégia de crescimento não só na América Latina, mas também fora da região.
“A gente sempre olhou a Kavak como uma solução global”, disse Laughlin. Para a Bloomberg, uma pessoa familiarizada com o assunto disse que a startup está olhando para a Turquia como próximo alvo. “Procuramos mercados grandes e complexos onde a experiência de comprar, vender carro é muito problemática”, afirmou o executivo.
(Este texto foi atualizado; o valor do investimento no Rio de Janeiro é de R$ 550 milhões, e não R$ 500 milhões)
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