Bloomberg Línea — “Produzir, produzir, produzir”. Este é o mantra da fast fashion, que até alguns anos atrás era considerado uma tendência passageira, mas hoje ainda é o modelo dominante no setor.
Um ano depois que as Nações Unidas rotularam a moda como uma emergência climática em 2018, o Morgan Stanley (MS) informou que a indústria estava enfrentando um declínio estrutural à medida que as pessoas atingiam o pico de consumo e ficavam cada vez mais conscientes do meio ambiente. Mas isso não aconteceu, e a indústria até encontrou novas maneiras de se expandir.
A fast fashion é representada por grandes volumes de roupas que são confeccionadas de forma rápida e barata, tornando-as descartáveis e impactando o meio ambiente em diferentes níveis.
“Uma nova geração de varejistas de fast fashion acelerou o ritmo da indústria e reduziu ainda mais os custos, graças às compras on-line e ao marketing de influenciadores, o que leva os produtos do conceito para a venda on-line em questão de semanas”, diz Carry Somers Line, cofundador da organização Fashion Revolution, à Bloomberg.
As microtendências, que geram dezenas de coleções por ano, provocam nos consumidores uma nova necessidade de renovar continuamente seus guarda-roupas. Hoje compramos “60% mais roupas do que há 15 anos”, diz a Aliança das Nações Unidas para a Moda Sustentável.
Isso ficou ainda mais evidente em 2020, quando o comércio reabriu após uma das muitas fases de lockdown devido à pandemia de covid-19 em vários países, e longas filas apareceram imediatamente nas portas das principais lojas do setor – principalmente Forever 21 e H&M (HM-B).
Assim, o tempo de uso daquele seu look fica mais reduzido que nunca, e 60% das peças, que podem levar até 200 anos para se biodegradar, são descartadas sem controle em até um ano de sua fabricação.
Greenwashing?
A moda é uma indústria global de US$ 2,4 trilhões e, de acordo com a empresa de análise Ibis World, o mercado deve crescer 4,3% em 2022. No entanto, o setor perde cerca de US$ 500 bilhões em valor todos os anos devido à falta de reciclagem e às roupas que acabam em aterros sanitários sem sequer serem vendidas.
Menos de 1% dos artigos têxteis produzidos são reciclados – uma perda de material de mais de US$ 100 bilhões por ano. Enquanto países como a Alemanha reciclam cerca de 65% das peças, no México, segundo o Centro Mexicano de Direito Ambiental (Cemda), apenas 5% delas são recicladas.
Portanto, quase 90% das fibras são incineradas ou vão diretamente para o aterro, resultando no aterramento ou na queima equivalente a um caminhão de lixo, ou seja, 2,6 toneladas -- o suficiente para encher 1,5 prédios do tamanho do Empire State por dia – segundo relatório da Fundação Ellen MacArthur.
A implementação de modelos circulares (revenda, aluguel, reparos e reciclagem), que contém a produção, pode valer US$ 700 bilhões até 2030, representando 23% do mercado mundial, segundo Ellen MacArthur.
Elizabeth Cline, diretora de defesa e políticas da organização Remake, diz à Bloomberg Línea que as marcas podem vir a buscar esses modelos “precisamente porque são uma oportunidade de crescimento, e esse é o problema. Marcas como Levi’s, H&M e Lululemon estão expandindo as opções de revenda, mas ainda vendem tantos produtos novos quanto antes. Para que a circularidade ajude o planeta, é necessário reduzir a produção. Caso contrário, isso nada mais é que greenwashing”.
Em novembro, a agência AFP divulgou imagens que revelaram um grande sintoma do quanto essa contaminação é preocupante: enormes dunas de roupas descartadas por outros nações que acabaram no deserto chileno do Atacama.
O Chile tem sido o destino final de roupas usadas e não comercializadas que percorrem o mundo, originárias da China ou de Bangladesh, para serem revendidas na América Latina Das 59 mil toneladas que chegam anualmente ao porto de Iquique, algumas peças de vestuário são contrabandeadas para outros países latino-americanos e 39 mil toneladas permanecem no deserto, informou a agência.
“Estamos praticamente importando lixo”, disse Guillermo González, chefe da secretaria de economia circular do Ministério do Meio Ambiente, ao site especializado em questões ambientais Codexverde, que anunciou em setembro que o setor seria incluído na legislação da Política Nacional de Economia Circular.
Este avanço abre um precedente para estabelecer que o vestuário será o próximo produto a ser regulamentado.
Vamos analisar os ‘looks’ contaminantes para dar adeus à fast fashion:
- É uma das indústrias mais contaminantes do planeta
Foi apontado que essa é a segunda indústria mais poluente, sendo responsável por 10% das emissões globais de carbono. Organizações e especialistas no assunto como a Remake, a Global Fashion Agenda e o Fórum Econômico Mundial, entre outros, especificaram, com base em diferentes métricas, que o setor é responsável por entre 4% e 8%, sendo assim a terceira ou quarta indústria mais poluente.
- 70% das emissões da indústria têxtil são provenientes do processamento de matérias-primas, devido ao uso de fibras sintéticas provenientes do petróleo.
- Se a fast fashion continuar como modelo de negócios, as emissões aumentariam em quase 50% até 2030, segundo as Nações Unidas.
- Desperdício de água: segunda indústria que mais utiliza água
O setor utiliza 93 bilhões de metros cúbicos de água por ano – o suficiente para a sobrevivência de cinco milhões de pessoas. Outras estimativas apontam que o consumo é de cerca de 215 bilhões de litros por ano. Fazer uma calça jeans, por exemplo, requer 7,5 mil litros de água – a quantidade que uma pessoa média ingere em sete anos.
- Cerca de 20% das águas residuais do mundo são provenientes do tingimento e tratamento de têxteis.
- Todos os anos, 200 milhões de árvores são cortadas para fazer tecidos celulósicos, de acordo com o que foi relatado na Fashion Revolution Week 2021.
“Uma das grandes preocupações é o desmatamento ilegal na Amazônia, onde é criado o gado que vira nossas bolsas e jaquetas. Além disso, com a ascensão da internacionalização da produção, cada vez mais marcas estão considerando ter a América Latina como centro de produção”, explica Cline.
- Milhares de microfibras chegam aos oceanos
Meio milhão de toneladas de microfibras sintéticas são despejadas no mar a cada ano, o equivalente a 50 bilhões de garrafas plásticas ou três milhões de barris de petróleo.
- Milhões de pessoas sem salários dignos e em condições precárias
A indústria emprega 300 milhões de pessoas em todo o mundo, estabelecendo a fabricação em países em desenvolvimento, nos quais a mão de obra é de custo muito baixo, como Bangladesh, Índia e Indonésia, cujos marcos regulatórios tendem a se confundir e onde algumas fábricas correm sério risco de inundações.
- Mais de 90% das grandes marcas não pagam a seus trabalhadores um salário digno, e 80% da força de trabalho são mulheres jovens, que geralmente recebem menos do que seus pares masculinos, segundo o site Fashion Checker. A remuneração por gênero tem ligação direta com agressão verbal, física e sexual.
-O trabalho forçado e infantil na moda é evidente em 10 países, incluindo Argentina, Brasil e México, segundo documento do Departamento do Trabalho dos Estados Unidos.
“Se essas práticas de trabalho fossem evitadas, a fast fashion não existiria”, diz Cline.
Um feixe de esperança
De acordo com o relatório McKinsey State of Fashion 2022, a sustentabilidade agora domina as prioridades do consumidor e a agenda da moda. “Os consumidores querem saber de onde vêm os materiais, como eles são feitos e se as pessoas envolvidas estão sendo tratadas de forma justa”.
É assim que enxergamos a luz no fim do túnel, mas as mudanças são muito lentas e a pandemia expôs ainda mais as implicações de uma indústria insustentável.
Um exemplo disso é que as 250 maiores marcas do mundo alcançaram apenas uma pontuação média de 23% no Índice de Transparência da Moda 2021, publicado pela Fashion Revolution, que reúne informações sobre políticas, práticas e impactos socioambientais.
“Com a aceleração da pandemia e da catástrofe econômica que alguns dos trabalhadores mais vulneráveis enfrentam, muitas das grandes marcas se esquivaram da responsabilidade, assim como o fizeram após o colapso da fábrica Rana Plaza em Bangladesh em 2013″, alerta Somers.
Na ocasião, a fábrica têxtil localizada em Bangladesh desmoronou por estar em más condições, causando a morte de 1.130 pessoas.
“Quando as lojas de todo o mundo fecharam em 2020, as marcas cancelaram os pedidos com seus fornecedores praticamente de um dia para o outro. Produtos que até já haviam sido embarcados ficaram aguardando em portos e armazéns. Consequentemente, muitos trabalhadores ficaram sem remuneração”, expõe o Índice de Transparência.
Os cancelamentos foram avaliados em US$ 40 bilhões, estimou o Worker Rights Consortium.
“Isso causou demissões em massa. Muitos desses confeccionistas estavam fadados à insegurança alimentar e habitacional (...) e muitos continuam sem se vacinar, trabalhando em jornadas surreais, enquanto a maioria das marcas voltou à lucratividade”, explica Cline.
Mudança para a ‘slow fashion’
A América Latina é um mercado que aos poucos emergiu para se posicionar como um expoente da slow fashion, uma reação à produção em massa para criar e consumir de forma mais consciente, a partir de resenhas em publicações como a Vogue, com o surgimento de marcas sustentáveis e iniciativas como como a promoção de brechós ou a Mola Week, encontro que promove a moda sustentável na região.
Quando Somers visitou a Argentina, ele notou os esforços artísticos e inovadores que são feitos através do Feboasoma, que se autodenomina um ‘laboratório de resíduos sólidos urbanos’.
Por outro lado, a região também foi registrada pela Fashion Revolution como um dos maiores consumidores do mundo. O Chile é o maior consumidor latino, e o México é o líder na maior abertura de shopping centers.
Segundo o Cemda, há alguns anos, o número de importações supera o de exportações no México. “A maioria vem da China e dos EUA, mas há cada vez mais produtos no mercado de países asiáticos, como roupas mais baratas e de qualidade inferior”.
Os ativistas consultados pela Bloomberg Línea concordam que as marcas não apresentarão mudanças reais a menos que sejam obrigadas a fazê-lo por lei. “Não esperamos que consigam fazer a transição para a economia circular sem uma regulamentação por parte dos governos ou uma transformação do nosso sistema financeiro”.
A verdadeira economia circular já existe ao nosso redor. Só precisamos apoiar nossos brechós locais, ateliês de costura, trocas de peças e expandir o acesso a esses serviços. Em geral, muitas pequenas empresas são mais sustentáveis do que as grandes. É aí que temos vislumbres de esperança e vemos empresas que se dedicam a produzir roupas estilosas, feitas com respeito ao planeta”, destaca Cline.
“Moda sustentável não é um produto. É um estilo de vida e uma mudança de cultura (...) é transformar a moda em uma força do bem”, enfatiza.
--Esta notícia foi traduzida por Bianca Carlos, localization specialist da Bloomberg Línea.
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