Bloomberg Opinion — Há pouquíssimas maneiras pelas quais a Grã-Bretanha ainda pode reivindicar ser uma potência global. Ela não estabelece os termos do comércio mundial como a China. Ela foi superada no mar pela Marinha americana, que possui dez vezes mais porta-aviões. Não tem poder regulatório ou normatizador, ao contrário da União Europeia, de onde saiu brigada. Claro, o Reino Unido tem armas nucleares. Mas a Coreia do Norte também tem.
O que a Coreia do Norte não tem, para sua grande perda, é a British Broadcasting Corporation. Até hoje, a BBC abrange o mundo todo tão facilmente quanto a Marinha Real já fez; na verdade, pode ser o único legado imperial que ainda tem um propósito no século XXI. É por isso que é profundamente preocupante que o governo conservador do primeiro-ministro Boris Johnson, repleto de impulsionadores da “Grã-Bretanha Global” e defensores do passado imperial do país, pareça determinado a perder este último grande ativo britânico.
Os temores foram desencadeados por um tweet no fim de semana passado da secretária de Cultura, Nadine Dorries, relacionado a uma notícia do Daily Mail sobre sua intenção de congelar a taxa de licença cobrada dos proprietários de televisão do Reino Unido para financiar a BBC em 159 libras por dois anos; Dorries declarou que este anúncio de uma nova taxa seria “o último”. O objetivo, de acordo com o jornal britânico, é manter os aumentos de taxas sob a inflação até que a Carta Real da BBC expire em 2027, privando-a de bilhões de fundos. O objetivo final seria instituir “um novo modelo de financiamento que reflita a crescente dominação de serviços de assinatura como Netflix e Amazon Prime”.
Chega a ser hilário ver esses “pequenos ingleses”( ou “Little Englanders”, como se fala na Inglaterra) agitando bandeiras, como Dorries e o Mail, comparando uma grande instituição britânica com, bem, a Netflix. Ainda assim, encolher o financiamento da BBC e forçá-la a atender aos caprichos dos assinantes é perigoso e míope.
Para alguns conservadores, a BBC é inútil e injusta – um bastião liberal que persegue jovens espectadores, embora financiado por seus avós. Estranhamente, muitos na esquerda odeiam muito a emissora pública, insistindo que ela foi parcialmente responsável por transformar o ex-líder trabalhista esquerdista, Jeremy Corbyn, em criptonita eleitoral. E, presumivelmente, os centristas estão ocupados demais assistindo à Netflix para se importar.
Na verdade, eles deveriam se importar profundamente – e o resto do mundo também. Deixemos de lado o fato de que a BBC continua sendo o modelo mais bem-sucedido de emissora pública global. Seus serviços de notícias buscam constantemente imparcialidade e independência. Embora reconheçam que ficarão para sempre aquém, seus esforços para melhorar são a razão pela qual os noticiários da televisão britânica continuam racionais e informativos, especialmente em comparação com seus pares em outras democracias. A emissora também produz conteúdo muito bom e diversificado - documentários sobre a natureza, thrillers de sucesso, programas de culinária e até várias séries sobre um membro do partido conservador britânico idoso pegando o trem.
O que importa ainda mais é que em muitas partes do mundo, quando as pessoas querem informações em que podem confiar, elas recorrem a programas de notícias que começam com “This is London”. Durante décadas, em todo o mundo em desenvolvimento, o primeiro instinto de todos em tempos de crise foi sintonizar para ver o que o serviço mundial da BBC está dizendo.
Esse instinto não morreu mesmo em nossa era pós-verdade. Em meio a toda desinformação e fake news, em meio a narrativas nacionalistas conflitantes e niilismo conspiratório, a BBC produz calmamente jornalismo antiquado em uma dúzia de mídias diferentes e 40 idiomas distintos. E sua ambição só aumentou: em 2017, começou a transmitir em quatro idiomas indianos adicionais – Marathi, Gujarati, Telugu e Punjabi.
É fácil ver a importância desta programação. O espaço midiático da Índia está repleto de fontes de notícias que são abertamente corruptas, politicamente alinhadas ou cheias de discurso de ódio. Enquanto isso, nossa emissora pública nunca foi confiável para ser outra coisa senão um porta-voz de qualquer governo que esteja no poder.
Duvido que Nadine Dorries e o Mail possam se importar com a qualidade do discurso no resto do mundo, já que aparentemente não se importam em torná-lo ainda pior em seu próprio país. Mas Dorries, pelo menos, faz parte de um governo comprometido em devolver um pouco de brilho à desbotada marca britânica. Ela deve reconhecer que, mesmo que a pegada econômica e política da Grã-Bretanha tenha diminuído, a BBC é ouvida e assistida por centenas de milhões, até bilhões de pessoas, em todo o mundo.
A tentativa de influenciar comportamentos indiretamente, o soft power, ainda é um poder – e é difícil ver por que o centro administrativo de Londres iria querer desmantelar este último grande instrumento de influência britânica. Talvez não seja o caso: quando Dorries anunciou oficialmente seus planos na Câmara dos Comuns na segunda-feira (17), ela mencionou apenas o congelamento de taxas e não a ideia de descartar completamente a BBC. De acordo com o Financial Times, isso pode ser por causa de uma ação de retaguarda travada no Gabinete pelo chanceler do Tesouro, Rishi Sunak, e a secretária de Relações Exteriores, Liz Truss.
Qualquer intervenção desse tipo seria bem-vinda. O Ministério das Relações Exteriores da Grã-Bretanha certamente deve ter uma palavra a dizer antes que a arma global mais poderosa do Reino Unido seja forçada a se transformar em um Netflix.
Mihir Swarup Sharma é colunista da Bloomberg Opinion. Ele é membro sênior da Observer Research Foundation em Nova Délhi e chefe de seu Programa de Economia e Crescimento. Ele é o autor de “Restart: The Last Chance for the Indian Economy” e co-editor de “What the Economy Needs Now”.
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– Esta notícia foi traduzida por Marcelle Castro, Localization Specialist da Bloomberg Línea.
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